Em dia de festas, a curiosidade de Soares mudou as ideias de um mascarado
Perante 300 convidados, de "todos os sectores", Soares agradeceu a ciência de António Damásio e o exemplo dos jovens. Optimista como sempre, ouviu ainda António Costa desafiar (com um sorriso) Jorge Sampaio para se recandidatar à Presidência.
O grupo de adolescentes e jovens que se concentra desde manhã à porta do Centro de Congressos de Lisboa espera pela abertura da festa Holi Christmas, uma espécie de rave em horário de matinê, com DJs e “holi blasts”, “lançamento de pós coloridos”. Isso talvez justifique que rapazes e raparigas esperem ao frio com calções curtos e tops de alças. Lá dentro, quanto menos roupa mais efeito terá o colorido dos pós (cada saquinho custa 1,5 euros, mas um bilhete de entrada, por 18 euros, dá direito a dois sacos).
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O grupo de adolescentes e jovens que se concentra desde manhã à porta do Centro de Congressos de Lisboa espera pela abertura da festa Holi Christmas, uma espécie de rave em horário de matinê, com DJs e “holi blasts”, “lançamento de pós coloridos”. Isso talvez justifique que rapazes e raparigas esperem ao frio com calções curtos e tops de alças. Lá dentro, quanto menos roupa mais efeito terá o colorido dos pós (cada saquinho custa 1,5 euros, mas um bilhete de entrada, por 18 euros, dá direito a dois sacos).
Não podia ser maior o contraste, geracional, de indumentária e propósitos, dos dois grupos que vinham festejar este domingo à antiga FIL, junto ao Tejo. Quando os primeiros convidados para o almoço comemorativo do 90º aniversário de Mário Soares começaram a chegar, houve surpresa do lado dos miúdos.
Tanta gravata junta, e tanta comunicação social à volta só podia querer dizer uma coisa: “Políticos…”. Por entre risos, alguns iam passando atrás das câmeras, mostrando cachecóis do Sporting. Outros tentavam gritar para os microfones: “Ladrões.” Vagner andava, de um lado para o outro, sempre com a máscara posta. Só um dos engravatados parou para o cumprimentar. O próprio aniversariante, Mário Soares, acompanhado por Maria Barroso, estendeu a mão para Vagner e recebeu de volta um cumprimento.
Vagner ainda não estava em si. “Era o Mário Soares? Fogo… Noventa anos? É um grande guerreiro.”
A curiosidade é um bom antídoto contra os julgamentos precipitados. E, no fundo, o desafio que a máscara de Vagner representa, hoje, já Soares o protagonizou, muitas vezes, ao longo de quase um século.
A medida desse tempo passa, em frente do olhos da nova geração de rebeldes que espera pela festa: Mário Ruivo, Edmundo Pedro, Eduardo Lourenço, contemporâneos de Soares, homens que viveram a morte de Hitler, Estaline e Salazar. E é precisamente a passagem do tempo que todos vêm comemorar. “É bonito chegar aos 90 anos”, resume, à entrada, Jorge Sampaio.
No restaurante Espaço Tejo, que fica no primeiro andar do centro, estão postas 28 mesas com 11 lugares. Os copos que se destacam são vermelhos e vêm, apropriadamente nesta circunstância, do depósito da Marinha Grande. Há cinco mesas reservadas. Na do aniversariante sentam-se Almeida Santos, velho amigo e advogado, António Costa, líder do PS, Fernando Henrique Cardoso, ex-Presidente do Brasil, João Soares, filho, Jorge Sampaio, ex-Presidente da Republica, Maria Barroso, sua mulher “há 66 anos”. Soares senta-se entre as mulheres de Costa e de Sampaio. E tem de abraçar e beijar toda a gente, “amigos e não amigos”, como diria, desconcertante, assim que pegou no microfone para agradecer a festa.
Vítor Ramalho e José Manuel dos Santos, seus colaboradores há décadas, organizaram tudo. Até há bem pouco tempo, a ocasião era para ser privada, e pequena. “Viu-se que não era possível”, explica Ramalho ao PÚBLICO. Fechar a lista nos 300 nomes foi uma tarefa difícil.
Os dois candidatos derrotados por Soares nas duas eleições para a Presidência, Freitas do Amaral e Basílio Horta, vieram. Tal como Adriano Moreira, ex-líder do CDS. Na sala estão também os dois últimos jornalistas que entrevistaram Soares, Clara Ferreira Alves e Mário Mesquita. O último acaba de publicar um livro que reúne algumas das entrevistas que fez ao histórico fundador do PS, antes e depois do 25 de Abril, e que termina com um “epílogo” inédito: uma entrevista recente, feita por escrito, em que Soares revê algumas das suas posições sobre a primeira República, confessa que nunca conseguiu ler Marx ( “nunca tive a capacidade de o entender”), fala da descolonização, zurze em Tony Blair (“Nunca gostei dele e nunca me enganou”). Publicado pela Tinta da China, o livro de Mário Mesquita, (“Mário Soares na Construção da Democracia”), revela um Soares optimista: “Tudo vai ter de mudar”.
Na sala, perante os convidados, não será menos. Lembra que esteve, no sábado, num encontro da Juventude Socialista, e viu ali motivos de esperança: “Como é possível dizer que nunca vamos conseguir mudar isto?”
Num improviso cheio de emoção, Soares lembrou a ajuda do neurocientista António Damásio que, “com a sua mulher”, acompanharam “dia-a-dia” a evolução da encefalite que, há dois anos, deixou o ex-Presidente entre a vida e a morte. Damásio, na mesa ao lado, ouviu o agradecimento.
De seguida, Soares revelou que o que junta, na mesma sala, tantas “personalidades eminentíssimas” de “todos os sectores” são os valores da “liberdade, da democracia e do respeito pelos outros”. A sala aplaudiu, quando o ex-Presidente ia acrescentar uma frase sobre a actualidade política. “Estamos numa situação muito difícil”, resumiria, sem endereçar críticas. Coube aos dois netos mais novos iniciar um curto período de discursos. Jonas, de 11 anos, formulou um desejo: “Cá estaremos daqui a 10 anos para festejar os 100.”
António Costa, a quem Júlio Isidro passou o microfone de seguida, também trouxe um desejo: “Ainda tem muito para dar à política. E Jorge Sampaio está em muito boa idade para se recandidatar.” O tom do discurso do líder socialista tinha suficiente humor para acomodar esta passagem. Mas só o futuro dirá se o repto tinha ou não a intenção de pôr Sampaio a pensar. Para que conste, e mesmo que não se tivesse ouvido na sala, a resposta do ex-Presidente foi um “era o que faltava…”, pontuado por um sorriso.
Quem já deixou de ser pressionado para se recandidatar é Fernando Henrique Cardoso, antecessor de Lula, e último Presidente do centro-direita no Brasil. Lembrou que conheceu Soares no Chile, onde estava exilado, no início dos anos 70. Classificou o exemplo de Soares como “inspirador”.
Amigos de tantas ocasiões
Há outra faceta de Soares que se descobre, com atenção. Não parece importar-se muito com os humores colectivos do momento. E tanto abraça um amigo consensual, como Fernando Henrique, como um ex-banqueiro caído em desgraça, como Jardim Gonçalves.
Dá a mão a palmatória com facilidade (diz, no livro citado, de Mário Mesquita, que se deixou enganar pela simpatia de Passos Coelho), e consegue reunir, com uma mesa de distância, João Semedo, do Bloco de Esquerda, e Daniel Proença de Carvalho, advogado. Ou Ângelo Correia e Carvalho da Silva. Ou Leonor Beleza e Arnaldo de Matos. Ou João Marcelino e Ferro Rodrigues. Ou…
A nova geração dirigente do PS está presente, em peso: Fernando Medina, Pedro Nuno Santos, João Galamba, Pedro Delgado Alves, Duarte Cordeiro, Sérgio Sousa Pinto. Soares foi, sempre, um agregador desta geração de jovens políticos, tendo muitas vezes apoiado as suas iniciativas quando estas desafiavam as linhas oficiais das lideranças de Guterres, Sócrates e Seguro.
A política é, naturalmente, uma grelha de análise. Mas não é, necessariamente, a política que explica a presença de tantos ex-adversários - como Francisco Pinto Balsemão, o fundador e militante número um do maior rival político do PS de Soares, o PSD. Ou de jornalistas tão diferentes como João Marcelino e José Carlos Vasconcelos.
Júlio Isidro, a quem foi pedido que apresentasse os oradores, desembrulhou uma das prendas que chegaram à mesa do aniversariante, a edição do Diário de Notícias de 7 de Dezembro de 1924, o dia em que nasceu Mário Alberto Nobre Lopes Soares. Numa breve a anunciar o nascimento, lida pelo apresentador, o presságio de que a criança iria agitar “este século e o próximo”.
Hoje, em pleno “próximo” século, nem todas as capas de jornal serão tão agradáveis para Soares, nem tão certeiras.
Mas não foi em nada disto que Vagner ficou a pensar quando viu Soares entrar na antiga FIL. Ficou a fazer contas à idade de ambos. Aos 73 anos de intervalo entre o miúdo que desconfia de políticos e o nonagenário que deposita esperanças na juventude.