O congresso do PS: dois avanços e um impasse
O PS tem o dever de registar a conclusão de que é pouco crível fazer entendimentos com quem liminarmente os rejeita, a não ser por masoquismo político.
O mais recente desses avanços consistiu na realização de eleições primárias para a escolha do candidato a primeiro-ministro, largamente participadas, de que resultou um líder com legitimidade reforçada. Ninguém pode negar que se tratou de um passo concreto no sentido de reaproximar os cidadãos da política, de contrariar o tão diagnosticado e pranteado afastamento entre eleitos e eleitores. Uma iniciativa que subverteu a lógica das escolhas dentro dos aparelhos partidários. Não constituindo uma panaceia, as primárias alargaram o espaço de participação dos cidadãos na política e inauguraram uma fórmula que certamente irá fazer escola no país. De facto, em quase todos os documentos programáticos dos partidos portugueses, da esquerda à direita, se proclama – naquele jargão de que andamos tão fatigados – a necessidade de “abrir o partido à sociedade civil”. Pois bem, o PS passou, nesse capítulo, das palavras aos actos. Tratou-se de uma data assinalável para a nossa democracia. Na verdade, dada a escassa curiosidade e a ainda mais escassa leitura dos documentos programáticos partidários, a escolha dos eleitores tende a recair nas personalidades dos candidatos muito mais do que nos seus projectos políticos ou no seu posicionamento ideológico, até porque as ideias dependem, para vingar, das personalidades que as incorporam e veiculam. Algo que escapou à análise dos politólogos que criticaram as primárias com base num alegado e excessivo culto da personalidade que estas propiciariam. Mas como compreender que, por um lado, se lamente a falta de líderes fortes – e se diagnostique mesmo os falhanços da Europa como resultantes da pusilanimidade dos líderes europeus –, ao mesmo tempo que se critica o debate centrado nas características que podem revelar as forças e as fraquezas dos que ambicionam ser líderes? As primárias do Partido Socialista vieram demonstrar o quão importante é a confrontação entre personalidades, e que a fuga a esse confronto é também uma fuga à política.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O mais recente desses avanços consistiu na realização de eleições primárias para a escolha do candidato a primeiro-ministro, largamente participadas, de que resultou um líder com legitimidade reforçada. Ninguém pode negar que se tratou de um passo concreto no sentido de reaproximar os cidadãos da política, de contrariar o tão diagnosticado e pranteado afastamento entre eleitos e eleitores. Uma iniciativa que subverteu a lógica das escolhas dentro dos aparelhos partidários. Não constituindo uma panaceia, as primárias alargaram o espaço de participação dos cidadãos na política e inauguraram uma fórmula que certamente irá fazer escola no país. De facto, em quase todos os documentos programáticos dos partidos portugueses, da esquerda à direita, se proclama – naquele jargão de que andamos tão fatigados – a necessidade de “abrir o partido à sociedade civil”. Pois bem, o PS passou, nesse capítulo, das palavras aos actos. Tratou-se de uma data assinalável para a nossa democracia. Na verdade, dada a escassa curiosidade e a ainda mais escassa leitura dos documentos programáticos partidários, a escolha dos eleitores tende a recair nas personalidades dos candidatos muito mais do que nos seus projectos políticos ou no seu posicionamento ideológico, até porque as ideias dependem, para vingar, das personalidades que as incorporam e veiculam. Algo que escapou à análise dos politólogos que criticaram as primárias com base num alegado e excessivo culto da personalidade que estas propiciariam. Mas como compreender que, por um lado, se lamente a falta de líderes fortes – e se diagnostique mesmo os falhanços da Europa como resultantes da pusilanimidade dos líderes europeus –, ao mesmo tempo que se critica o debate centrado nas características que podem revelar as forças e as fraquezas dos que ambicionam ser líderes? As primárias do Partido Socialista vieram demonstrar o quão importante é a confrontação entre personalidades, e que a fuga a esse confronto é também uma fuga à política.
O outro avanço, a outra inovação, aconteceu na cidade do Porto, no plano autárquico. Falo da coligação entre o PS e o movimento independente de Rui Moreira. Essa coligação tem permitido assegurar uma governação estável da cidade. Não sendo lícito, transcorrido um ano sobre as eleições, exigir o cumprimento integral das medidas programáticas sufragadas pelos portuenses, a mudança de postura e de relacionamento com a cidade constitui, em si mesma, uma vitória política: o executivo deixou de ser um foco de conflito, de discórdia e de hostilidade e passou a ser um foco de coesão, diálogo e moderação. Trata-se de uma solução inédita na história da nossa democracia. Pela primeira vez há um entendimento pós-eleitoral entre uma candidatura independente e um dos principais partidos políticos portugueses. Neste caso, o PS dá provas não só de espírito inovador, como de humildade democrática, uma vez que não é a força maioritária do entendimento, que compreende, para mais, o CDS e ex-vereadores de Rui Rio.
O PS mostra com isto que é o partido mais progressista, mais ousado e mais atento aos sinais provenientes da sociedade civil, o mais capaz de dar respostas às necessidades e expectativas de cada momento, o mais dotado de imaginação democrática. Já o tinha, aliás, mostrado nas causas ditas “fracturantes”, tanto mais que o tê-las encabeçado lhe valeu o ressentimento envernizado do Bloco de Esquerda, com o qual agora se preconizam consonâncias impossíveis.
Há, todavia, uma lição que o PS deve a si mesmo, mas que teima em não aprender: não há, na história do PS e dos sucessivos governos que protagonizou desde o 25 de Abril, registo de alianças com os partidos à sua esquerda (antes pelo contrário: houve combate e oposição às soluções autoritárias que estes perseguiram). Acontece que, no congresso do PS agora realizado, pretenderam alguns socialistas, ostentando com brio o que consideram ser os pergaminhos matriciais do PS, que a defesa do Estado social, depauperado pelo actual Governo, e a adopção de políticas que encorajem o investimento e o emprego implicam uma aproximação aos partidos da extrema-esquerda no caso de não se obter a maioria absoluta. Ora, o PS tem o dever de registar a conclusão de que é pouco crível fazer entendimentos com quem liminarmente os rejeita, a não ser por masoquismo político. Nunca os partidos à esquerda do PS colaboraram na governabilidade do país, mesmo nos momentos em que o PS adoptou políticas e medidas de recorte social indiscutivelmente favoráveis às classes trabalhadoras e às camadas mais frágeis da população, promotoras da igualdade de oportunidades e de carácter redistributivo (nalgumas delas, convenhamos, acompanhado pelos sectores sociais-democratas do PSD com os quais o actual Governo austerocrata pouco ou nada tem em comum). Poder-se-á esperar que esses partidos façam agora o que antes não fizeram, num contexto nacional e europeu tão adverso, defendendo mesmo, alguns deles, que Portugal se deve colocar à margem da União Europeia e agravar a sua condição periférica?
À luz das três questões atrás referidas, permito-me fazer a seguinte leitura do XX Congresso do Partido Socialista: o congresso do PS assumiu nos seus estatutos a eleição futura do seu líder com a participação dos simpatizantes, rematando, como era devido, o indiscutível sucesso das eleições primárias; o PS assumiu a abertura a coligações autárquicas em função das vantagens que daí derivem para os cidadãos, mesmo que esteja em minoria e com a participação da direita, como sucedeu no Porto, tendo consagrado implicitamente essa doutrina ao acolher Manuel Pizarro no secretariado nacional; por fim, o Partido Socialista escusou-se a enfrentar em toda a sua latitude o leque de possibilidades que poderão abrir-se, caso não venha a obter a desejada maioria absoluta. Não vem longe o dia em que terá de o fazer. Nesse dia, a emotividade latente em muitos dos discursos que marcaram o congresso, com pouco suporte na realidade e decantada de signos há muito esvaziados de significado, deixará de ser o exercício masoquista de quem sabe que a extrema-esquerda não deseja coligar-se com o PS. Eis o impasse.
Escritor, investigador doutorado em Literatura Portuguesa, membro do secretariado da concelhia do PS-Porto