Racismo e violência policial nos EUA exigem "desafios mais profundos"
Metade do país acusa a polícia de racismo, a outra metade defende as forças de segurança. Causas da violência podem estar na educação e no sistema de saúde, que "desvalorizam" a vida das minorias.
A frase "Não consigo respirar!" tornou-se símbolo do protesto contra a morte de Eric Garner, em Nova Iorque, juntando-se ao "Mãos no ar, não disparem" que se ouve nas ruas de Ferguson.
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A frase "Não consigo respirar!" tornou-se símbolo do protesto contra a morte de Eric Garner, em Nova Iorque, juntando-se ao "Mãos no ar, não disparem" que se ouve nas ruas de Ferguson.
"Não consigo respirar" foi a última frase proferida por Garner antes de morrer. Uma frase repetida 11 vezes, depois de o agente Daniel Pantaleo lhe ter aplicado uma gravata e de ter sido atirado ao chão e subjugado por cinco polícias.
A estes dois casos somam-se o de Tamir Rice, uma criança negra de 12 anos morta no dia 22 de Novembro com dois tiros disparados por um polícia branco em Cleveland, no estado do Ohio; e o de Rumain Brisbon, um negro de 34 anos morto por um polícia branco em Phoenix, no estado do Arizona, na terça-feira.
Quase todos os casos têm um elemento comum, e a única excepção será ainda mais trágica do que os restantes – Brown, Gardner e Brisbon não estavam armados, e Rice, de apenas 12 anos, estava num parque público a brincar com uma pistola de ar comprimido, catalogada nos Estados Unidos como um brinquedo.
Para além das acusações de uso desproporcionado da força e de falta de treino, a polícia norte-americana voltou a estar no centro de uma discussão sobre racismo.
Na cidade de Cleveland, onde uma investigação lançada pelo Departamento de Justiça norte-americano detectou "um padrão de uso excessivo da força em violação dos direitos constitucionais dos cidadãos", os casos que surgem nas imagens divulgadas pelos jornais locais envolvem cidadãos negros.
Um deles é Gregory Love, um homem que foi mandado parar por um agente da polícia de Cleveland na madrugada de 23 de Junho de 2013 devido a uma "pequena contra-ordenação de trânsito", de acordo com os resultados da investigação, revelados na noite de quinta-feira pelo procurador-geral dos Estados Unidos, Eric Holder.
"Um agente aproximou-se do seu veículo com a arma em punho e ordenou a Love que desligasse a ignição e que mostrasse as mãos. O agente disse que Love não obedeceu às ordens. Love disse que levantou as mãos. Quando o agente se inclinou para desligar o veículo com a mão direita, a arma, que estava na mão esquerda, disparou. A bala entrou no peito de Love e ficou alojada no braço direito. Foi algemado e levado para o Centro Médico MetroHealth", lê-se no relatório.
O painel que investigou este caso concluiu que "a decisão [do agente] de se inclinar com a arma na mão, com o dedo no gatilho, é difícil de explicar, e neste caso terminou com um homem desarmado baleado, que apenas se tinha envolvido numa pequena contra-ordenação de trânsito".
Quase todos estes casos têm particularidades próprias, que provocaram uma divisão na sociedade norte-americana entre os que defendem a actuação dos polícias, por terem reagido a situações potencialmente perigosas para as suas vidas, e os que centram a questão no racismo, por todos eles envolverem polícias brancos e cidadãos negros.
Os testemunhos contraditórios sobre a alegada postura ameaçadora de Michael Brown; o facto de Tamir Rice estar a brincar com uma pistola sem a peça cor de laranja que a identificaria como um brinquedo; e a fuga e o posterior confronto físico no caso de Rumain Brisbon deram alguma margem de manobra a quem quis relativizar o problema, mas o tom geral das reacções mudou a meio da semana, quando um grande júri de Nova Iorque decidiu não levar a julgamento o agente que asfixiou Eric Garner – as imagens, captadas pela câmara de um telemóvel e postas a circular no YouTube, contribuíram para aproximar democratas e republicanos, liberais e conservadores.
"Penso que o povo americano quer perceber melhor os factos. Os americanos têm muitas perguntas sem resposta, e eu também tenho", declarou o líder da Câmara dos Representantes, o republicano John Boehner. Em Boston, a democrata Hillary Clinton, apontada como provável candidata à Casa Branca em 2016, fez as suas próprias perguntas. "Estão a partir-se muitos corações, e nós estamos a perguntar-nos a nós mesmos: 'Estas pessoas não são os nossos filhos? Não são os nossos irmãos?'"
O antigo juiz Andrew Napolitano, conhecido comentador do canal Fox News, foi uma das vozes mais críticas no sector conservador: "Isto não é Ferguson. Ninguém tentou tirar a arma [ao polícia]. Não se trata de disparar ou ser atingido. Trata-se de sufocar até à morte uma pessoa cujo único crime foi vender cigarros sem cobrar impostos. Não é um caso que exija o uso de força letal, seja qual for o limite da nossa imaginação."
O facto é que a América voltou a debater o racismo, como já o tinha feito após o espancamento de Rodney King, em 1991, ou seis anos mais tarde, quando o haitiano Abner Louima foi espancado e sodomizado com o cabo partido de uma vassoura por agentes da polícia de Nova Iorque.
"Os homens afro-americanos estão a receber uma lição de como esta sociedade valoriza, ou desvaloriza, as nossas vidas. Sempre disse que a ideia de que o racismo é uma coisa do passado é absurda – e que todos os que aceitaram o mito 'pós-racial' são ingénuos ou dissimulados", escreveu no The Washington Post o colunista Eugene Robinson.
Para o maior sindicato da polícia dos Estados Unidos, o Fraternal Order of Police, o problema está no país e não na polícia – e é um problema de pobreza e não de racismo.
"Temos de discutir o racismo de forma aberta, mas o facto é que temos comunidades deprimidas, o que origina uma maior taxa de criminalidade, o que, por sua vez, leva a uma maior presença da polícia, o único braço do governo que as pessoas dessas comunidades vêem. As forças de segurança são usadas até em casos que envolvem crianças. Na maioria dos estados, os assistentes sociais não podem levar uma criança da casa dos seus pais: a lei exige que seja a polícia a fazer isso. Mesmo quando não se trata de matéria criminal, são os polícias que têm de intervir", disse o presidente do sindicato, Chuck Canterbury.
A ideia de que a falta de confiança de muitos norte-americanos na sua polícia poderá resolver-se apenas com mais treino e câmaras de filmar é contestada pelo professor de Direito Christopher Edley Jr., da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Ouvido pelo The Washington Post, Edley defende uma reavaliação das políticas de educação e do sistema de saúde, que "desvalorizam" a vida das minorias.
"O Presidente deve guiar-nos nessa direcção, para além do comportamento da polícia, em direcção a esses desafios mais profundos. As respostas que estão em cima da mesa são excessivamente tecnocráticas e, em último caso, terão poucos resultados sem que haja uma mudança nas prioridades", considera o especialista.