Como se salvar do pesadelo de ter sido um jovem homossexual num meio operário

Édouard Louis é um bom rapaz que viveu cenas sujas. Transma-as num discurso pungente: a tortura de uma infância homossexual vivida numa classe operária desapossada. A criança martirizada tornou-se um intelectual brilhante,

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Claro que está exausto devido à digressão promocional, que já não suporta aeroportos e as estúpidas filas de espera diante dos detectores de metais, que lamenta o seu novo corte de cabelo e protesta contra certos jornalistas ou programas cujos convites optou por declinar. Mas ao levantar-se da mesa, preocupa-se em saber se dois euros chegam para pagar dois cafés e conta as moedas. Ouve sem interromper e agradece mil vezes.

Édouard Louis é um bom rapaz que viveu cenas sujas e que as transforma num discurso pungente, em acção política: a tortura de uma infância homossexual vivida como a de um sub-homem numa classe proletária desapossada, ela própria esmagada e sofredora, vencida no jogo implacável da reprodução social. A criança martirizada tornou-se um intelectual brilhante cuja voz chega longe. Próximo do sociólogo e escritor Didier Eribon, aluno da muito elitista École Normale Supérieure, especialista em Bourdieu, escreve com um virtuosismo espantoso na sua idade. Relato cru, traduzido em 19 línguas e com 250 mil exemplares vendidos, da pancada, dos escarros e das humilhações incessantes, pois ser frágil e visivelmente homossexual é fazer surgir o inexplicável, a diferença, um outro caminho, e isso é inaceitável. O turbilhão do livro transformou-se em tornado, em primeiro lugar entre a população gay francesa. Testemunhos emocionados dos leitores, choques múltiplos tão violentos que alguns fechavam o livro, não conseguindo mergulhar de novo no que era, na verdade, a sua própria história. Depois, a tempestade mediática, com as suas capelinhas, as suas tribunas, os seus cismas e controvérsias.
Édouard Louis, elevado aos píncaros, atravessa tudo isto naturalmente. Como ele é: sereno, doce, luminoso, mas com a certeza inabalável de fazer da sua escrita uma arma maior. E a determinação de transformar um conceito sociológico um pouco abstracto em carne viva, rasgada, palpitante.

Há quanto tempo conhece Lisboa e que sentimentos evoca em si?
Estive em Lisboa pela primeira vez há dois anos. Vim para descobrir a cidade e, nessa altura, estava a terminar de escrever Acabar com Eddy Bellegueule. No que reparei imediatamente, para além da beleza da cidade, foi nos fortes contrastes coexistentes nos mesmos bairros. Vê-se gente muito rica e gente muito pobre no mesmo lugar, e isso vê-se menos em França, o que dá muito que pensar. Em França há as mesmas desigualdades, só que estão mais dissimuladas.

Como é que está a ser recebido o seu livro aqui?
Ainda não posso ter uma ideia precisa, porque acaba de sair. O que é certo é que, em alguns encontros com jornalistas, gerou-se imediatamente um debate sobre o tema da violência, que eu procurei colocar no centro de Acabar com Eddy Bellegueule – toda aquela violência que nos define desde que chegamos ao mundo e nos atribui um lugar: “Tu és mulher”, “Tu és maricas”, “Tu és pobre”, “Tu és árabe”, a violência que constitui os fundamentos mais ou menos invisíveis do que somos. Talvez isso se deva à história recente de Portugal, mas esta questão da violência que se abate sobre nós e das formas como podemos livrar-nos dela, desfazer-nos dela, como faz Eddy Bellegueule no livro, criou imediatamente um espaço de diálogo com as pessoas que tive oportunidade de conhecer aqui.

O público português fica admirado com o conteúdo do livro, dada a ideia fantasiada que se pode ter de França no estrangeiro?
Penso que sim, porque uma das armadilhas da violência, uma das suas astúcias é o facto de, muitas vezes, ela não parecer violenta ou não ser falada. Em Acabar com Eddy Bellegueule, por exemplo, quando conto que na escola, todos os dias, dois rapazes estavam à minha espera para me bater e me cuspir em cima, porque me consideravam “maricas” – isto é, um depravado que era preciso punir –, eu não ia contar aos adultos que tinha sido maltratado. Pelo contrário, fazia tudo para ocultar a realidade porque tinha vergonha de ser maltratado. Nada me parecia pior do que dizer “sou dominado”, tê-lo-ia considerado como uma confissão de fraqueza. Portanto, Eddy esconde a violência.
A mãe de Eddy, quando conta que abandonou a escola aos 16 anos, diz que foi por opção sua. Não vê que foi porque era mulher e porque vinha de um meio pobre que não estudou, ou seja, que foi por uma espécie de dupla violência, não por escolha própria. Lá está, esta violência não se nos afigura como tal, e eu procurei lançar luz, através da escrita, sobre todas estas violências invisíveis.

Portugal contrariou a sua imagem muito conservadora e religiosa ao votar a favor do casamento gay, em vez da agitação que se verificou em França.
As estruturas sociais em Portugal não são idênticas às francesas. Fala de religião, mas é preciso ter em conta a política, o meio intelectual, a arte, a literatura… Isso leva-me a dizer que contextos diferentes produzem comportamentos diferentes. É uma ideia muito simples e, no entanto, fui muito criticado por dizer isto. Quando demonstrei que existe uma grande hostilidade para com a homossexualidade nos meios populares (e poder-se-ia dizer o mesmo da alta burguesia católica), disseram-me: “Mas também a há noutros meios!” Não o ignoro, mas ela manifesta-se de outra maneira, e é evidente que é preferível ser gay no Marais [bairro], em Paris, que numa pequena vila operária isolada. Há contextos que permitem mais o surgimento da violência, homofóbica ou outra, e essas condições estavam mais reunidas em França que em Portugal, tal como o estão mais num meio muito popular que, digamos, num meio urbano e privilegiado. Não percebo porque é que se tornou tão difícil dizer uma coisa tão simples.

Os homossexuais franceses e as associações militantes adormeceram? Há uma falta de consciência política e de radicalismo que permitiu um ressurgimento homofóbico?
Trata-se de uma questão difícil que exigiria uma longa análise. Provavelmente existe uma falta de empenho, sim, mas talvez seja preciso encontrar outras formas de activismo. Como, por exemplo, a literatura. Escrevi Acabar com Eddy Bellegueule como uma arma política, um livro que me permitiu falar do que os políticos não falam, ou não falam o suficiente, há anos: a homofobia, a exclusão social, a pobreza, etc.

Um tema desenvolvido em Acabar com Eddy Bellegueule é o sofrimento ligado à homossexualidade. Esse lugaré um ponto de passagem obrigatório? Pode existir homossexualidade sem esse sofrimento original?
É verdade que o sofrimento pode constituir o ponto de partida da criação. O insulto diz-nos “Paneleiro!”, e foi a partir daí que emergiram movimentos como o Gay Pride, ou Gide, ou Proust, toda a literatura sobre o tema. Tal como o “Não passas de uma mulher!” foi o ponto de partida dos movimentos feministas, da sua magnífica inventiva, de Simone de Beauvoir, Judith Butler… Contudo, devemos combater esse sofrimento de que fala, há outras maneiras de criar. Não se pode fazer o elogio do sofrimento.

As aptidões desenvolvidas pelos homossexuais, os talentos e as funções sociais, os papéis que, por vezes, podem desempenhar parecem encontrar as suas raízes nesse sofrimento que têm de domar, de ultrapassar. Se não conhecerem esses tormentos, perdem alguma coisa?
Efectivamente, em Acabar com Eddy Bellegueule conto que Eddy, a criança que fui, consegue libertar-se graças à sua homossexualidade. Os outros, a sua família, a sua aldeia, rejeitam-no por causa dessa diferença, e Eddy não tem outro remédio senão fugir. Os escarros na escola, o pai que lhe diz que ele é a vergonha da família porque não é suficientemente masculino… Ele sufoca e tem de partir. E é o único da sua família a partir, a libertar-se. No entanto, e mais uma vez, creio que existem outras formas de libertação e que não podemos comprazer-nos com o sofrimento. Isso é uma velha ideologia romântica. Muita gente se libertou sem ser pelo sofrimento.

O outro tema do livro é a endogamia, que é apresentada frequentemente como a reprodução das elites entre si, bloqueando o acesso de outras classes a posições vantajosas. Ao lê-lo, e também ao ler Didier Eribon [sociólogo, professor, escritor] ou Annie Ernaux [escritora], dir-se-ia que há uma vontade, por parte dos meios desfavorecidos, de impedir que as pessoas escapem, para a cidade, para a escola, etc. Vou resumir isto de uma forma bastante brutal: o pior inimigo do pobre é o pobre?
O pior inimigo do pobre é, acima de tudo, o sistema que o amarra à pobreza, é a dominação social, a violência do capitalismo, tudo o que Bourdieu demonstrou. Mas esse sistema é justamente integrado pelos dominados que reproduzem, eles próprios, a sua dominação, como quando os rapazes das classes populares resistem à escola por pensarem que a sua masculinidade passa por isso, que ser um “duro”, ser um rapaz como deve ser passa pela recusa da escola. Eles reproduzem a sua própria exclusão.
Também é verdade que – e conto-o no livro –, quando Eddy se interessa pela escola e inicia os seus estudos, a família lhe diz: “Mas quem pensas tu que és?”, “Porque queres ser diferente de nós?”, “Como vais estudar, achas que és melhor que nós.” Ao mesmo tempo, porém, essa vontade de que fala, e que é real, está sempre misturada com outra coisa, e eu quis mostrar essa complexidade. O pai de Eddy censura-o por ser diferente mas, simultaneamente, diz estar orgulhoso de que o filho estude, diz que está orgulhoso porque o filho vai ser rico, etc. Esses dois discursos coexistem sempre: por um lado, o ódio pela diferença e, por outro, o desejo de que os filhos não tenham a mesma vida dos pais.

Surgiu, depois de Acabar com Eddy Bellegueule, uma tomada de consciência, iniciativas desenvolvidas em meios escolares, um olhar mais atento sobre estas questões? O fenómeno que constituiu o seu livro atingiu precisamente meios complicados onde poderá ter um efeito benéfico?
As coisas estão a encaminhar-se, sim. E isso toca-me profundamente. Acredito muito na força política da literatura e estou certo de que o dia-a-dia dos negros não seria o mesmo sem Angela Davis ou James Baldwin, tal como todos os avanços em prol das classes populares nunca poderiam existido sem Zola ou outros autores.

 

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Claro que está exausto devido à digressão promocional, que já não suporta aeroportos e as estúpidas filas de espera diante dos detectores de metais, que lamenta o seu novo corte de cabelo e protesta contra certos jornalistas ou programas cujos convites optou por declinar. Mas ao levantar-se da mesa, preocupa-se em saber se dois euros chegam para pagar dois cafés e conta as moedas. Ouve sem interromper e agradece mil vezes.

Édouard Louis é um bom rapaz que viveu cenas sujas e que as transforma num discurso pungente, em acção política: a tortura de uma infância homossexual vivida como a de um sub-homem numa classe proletária desapossada, ela própria esmagada e sofredora, vencida no jogo implacável da reprodução social. A criança martirizada tornou-se um intelectual brilhante cuja voz chega longe. Próximo do sociólogo e escritor Didier Eribon, aluno da muito elitista École Normale Supérieure, especialista em Bourdieu, escreve com um virtuosismo espantoso na sua idade. Relato cru, traduzido em 19 línguas e com 250 mil exemplares vendidos, da pancada, dos escarros e das humilhações incessantes, pois ser frágil e visivelmente homossexual é fazer surgir o inexplicável, a diferença, um outro caminho, e isso é inaceitável. O turbilhão do livro transformou-se em tornado, em primeiro lugar entre a população gay francesa. Testemunhos emocionados dos leitores, choques múltiplos tão violentos que alguns fechavam o livro, não conseguindo mergulhar de novo no que era, na verdade, a sua própria história. Depois, a tempestade mediática, com as suas capelinhas, as suas tribunas, os seus cismas e controvérsias.
Édouard Louis, elevado aos píncaros, atravessa tudo isto naturalmente. Como ele é: sereno, doce, luminoso, mas com a certeza inabalável de fazer da sua escrita uma arma maior. E a determinação de transformar um conceito sociológico um pouco abstracto em carne viva, rasgada, palpitante.

Há quanto tempo conhece Lisboa e que sentimentos evoca em si?
Estive em Lisboa pela primeira vez há dois anos. Vim para descobrir a cidade e, nessa altura, estava a terminar de escrever Acabar com Eddy Bellegueule. No que reparei imediatamente, para além da beleza da cidade, foi nos fortes contrastes coexistentes nos mesmos bairros. Vê-se gente muito rica e gente muito pobre no mesmo lugar, e isso vê-se menos em França, o que dá muito que pensar. Em França há as mesmas desigualdades, só que estão mais dissimuladas.

Como é que está a ser recebido o seu livro aqui?
Ainda não posso ter uma ideia precisa, porque acaba de sair. O que é certo é que, em alguns encontros com jornalistas, gerou-se imediatamente um debate sobre o tema da violência, que eu procurei colocar no centro de Acabar com Eddy Bellegueule – toda aquela violência que nos define desde que chegamos ao mundo e nos atribui um lugar: “Tu és mulher”, “Tu és maricas”, “Tu és pobre”, “Tu és árabe”, a violência que constitui os fundamentos mais ou menos invisíveis do que somos. Talvez isso se deva à história recente de Portugal, mas esta questão da violência que se abate sobre nós e das formas como podemos livrar-nos dela, desfazer-nos dela, como faz Eddy Bellegueule no livro, criou imediatamente um espaço de diálogo com as pessoas que tive oportunidade de conhecer aqui.

O público português fica admirado com o conteúdo do livro, dada a ideia fantasiada que se pode ter de França no estrangeiro?
Penso que sim, porque uma das armadilhas da violência, uma das suas astúcias é o facto de, muitas vezes, ela não parecer violenta ou não ser falada. Em Acabar com Eddy Bellegueule, por exemplo, quando conto que na escola, todos os dias, dois rapazes estavam à minha espera para me bater e me cuspir em cima, porque me consideravam “maricas” – isto é, um depravado que era preciso punir –, eu não ia contar aos adultos que tinha sido maltratado. Pelo contrário, fazia tudo para ocultar a realidade porque tinha vergonha de ser maltratado. Nada me parecia pior do que dizer “sou dominado”, tê-lo-ia considerado como uma confissão de fraqueza. Portanto, Eddy esconde a violência.
A mãe de Eddy, quando conta que abandonou a escola aos 16 anos, diz que foi por opção sua. Não vê que foi porque era mulher e porque vinha de um meio pobre que não estudou, ou seja, que foi por uma espécie de dupla violência, não por escolha própria. Lá está, esta violência não se nos afigura como tal, e eu procurei lançar luz, através da escrita, sobre todas estas violências invisíveis.

Portugal contrariou a sua imagem muito conservadora e religiosa ao votar a favor do casamento gay, em vez da agitação que se verificou em França.
As estruturas sociais em Portugal não são idênticas às francesas. Fala de religião, mas é preciso ter em conta a política, o meio intelectual, a arte, a literatura… Isso leva-me a dizer que contextos diferentes produzem comportamentos diferentes. É uma ideia muito simples e, no entanto, fui muito criticado por dizer isto. Quando demonstrei que existe uma grande hostilidade para com a homossexualidade nos meios populares (e poder-se-ia dizer o mesmo da alta burguesia católica), disseram-me: “Mas também a há noutros meios!” Não o ignoro, mas ela manifesta-se de outra maneira, e é evidente que é preferível ser gay no Marais [bairro], em Paris, que numa pequena vila operária isolada. Há contextos que permitem mais o surgimento da violência, homofóbica ou outra, e essas condições estavam mais reunidas em França que em Portugal, tal como o estão mais num meio muito popular que, digamos, num meio urbano e privilegiado. Não percebo porque é que se tornou tão difícil dizer uma coisa tão simples.

Os homossexuais franceses e as associações militantes adormeceram? Há uma falta de consciência política e de radicalismo que permitiu um ressurgimento homofóbico?
Trata-se de uma questão difícil que exigiria uma longa análise. Provavelmente existe uma falta de empenho, sim, mas talvez seja preciso encontrar outras formas de activismo. Como, por exemplo, a literatura. Escrevi Acabar com Eddy Bellegueule como uma arma política, um livro que me permitiu falar do que os políticos não falam, ou não falam o suficiente, há anos: a homofobia, a exclusão social, a pobreza, etc.

Um tema desenvolvido em Acabar com Eddy Bellegueule é o sofrimento ligado à homossexualidade. Esse lugaré um ponto de passagem obrigatório? Pode existir homossexualidade sem esse sofrimento original?
É verdade que o sofrimento pode constituir o ponto de partida da criação. O insulto diz-nos “Paneleiro!”, e foi a partir daí que emergiram movimentos como o Gay Pride, ou Gide, ou Proust, toda a literatura sobre o tema. Tal como o “Não passas de uma mulher!” foi o ponto de partida dos movimentos feministas, da sua magnífica inventiva, de Simone de Beauvoir, Judith Butler… Contudo, devemos combater esse sofrimento de que fala, há outras maneiras de criar. Não se pode fazer o elogio do sofrimento.

As aptidões desenvolvidas pelos homossexuais, os talentos e as funções sociais, os papéis que, por vezes, podem desempenhar parecem encontrar as suas raízes nesse sofrimento que têm de domar, de ultrapassar. Se não conhecerem esses tormentos, perdem alguma coisa?
Efectivamente, em Acabar com Eddy Bellegueule conto que Eddy, a criança que fui, consegue libertar-se graças à sua homossexualidade. Os outros, a sua família, a sua aldeia, rejeitam-no por causa dessa diferença, e Eddy não tem outro remédio senão fugir. Os escarros na escola, o pai que lhe diz que ele é a vergonha da família porque não é suficientemente masculino… Ele sufoca e tem de partir. E é o único da sua família a partir, a libertar-se. No entanto, e mais uma vez, creio que existem outras formas de libertação e que não podemos comprazer-nos com o sofrimento. Isso é uma velha ideologia romântica. Muita gente se libertou sem ser pelo sofrimento.

O outro tema do livro é a endogamia, que é apresentada frequentemente como a reprodução das elites entre si, bloqueando o acesso de outras classes a posições vantajosas. Ao lê-lo, e também ao ler Didier Eribon [sociólogo, professor, escritor] ou Annie Ernaux [escritora], dir-se-ia que há uma vontade, por parte dos meios desfavorecidos, de impedir que as pessoas escapem, para a cidade, para a escola, etc. Vou resumir isto de uma forma bastante brutal: o pior inimigo do pobre é o pobre?
O pior inimigo do pobre é, acima de tudo, o sistema que o amarra à pobreza, é a dominação social, a violência do capitalismo, tudo o que Bourdieu demonstrou. Mas esse sistema é justamente integrado pelos dominados que reproduzem, eles próprios, a sua dominação, como quando os rapazes das classes populares resistem à escola por pensarem que a sua masculinidade passa por isso, que ser um “duro”, ser um rapaz como deve ser passa pela recusa da escola. Eles reproduzem a sua própria exclusão.
Também é verdade que – e conto-o no livro –, quando Eddy se interessa pela escola e inicia os seus estudos, a família lhe diz: “Mas quem pensas tu que és?”, “Porque queres ser diferente de nós?”, “Como vais estudar, achas que és melhor que nós.” Ao mesmo tempo, porém, essa vontade de que fala, e que é real, está sempre misturada com outra coisa, e eu quis mostrar essa complexidade. O pai de Eddy censura-o por ser diferente mas, simultaneamente, diz estar orgulhoso de que o filho estude, diz que está orgulhoso porque o filho vai ser rico, etc. Esses dois discursos coexistem sempre: por um lado, o ódio pela diferença e, por outro, o desejo de que os filhos não tenham a mesma vida dos pais.

Surgiu, depois de Acabar com Eddy Bellegueule, uma tomada de consciência, iniciativas desenvolvidas em meios escolares, um olhar mais atento sobre estas questões? O fenómeno que constituiu o seu livro atingiu precisamente meios complicados onde poderá ter um efeito benéfico?
As coisas estão a encaminhar-se, sim. E isso toca-me profundamente. Acredito muito na força política da literatura e estou certo de que o dia-a-dia dos negros não seria o mesmo sem Angela Davis ou James Baldwin, tal como todos os avanços em prol das classes populares nunca poderiam existido sem Zola ou outros autores.