Seria decerto ingénuo relacionar directamente a perenidade do génio de Fernando Pessoa com a profusão de edições do autor que têm marcado o panorama editorial português nos últimos meses. No entanto, essa presença deverá ser tida em conta. E, quase no rescaldo do ano, talvez valha a pena destacar o aparecimento de alguns títulos (apenas alguns, sublinhe-se) que dão visibilidade actual a este autor da nossa maioridade cultural.
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Seria decerto ingénuo relacionar directamente a perenidade do génio de Fernando Pessoa com a profusão de edições do autor que têm marcado o panorama editorial português nos últimos meses. No entanto, essa presença deverá ser tida em conta. E, quase no rescaldo do ano, talvez valha a pena destacar o aparecimento de alguns títulos (apenas alguns, sublinhe-se) que dão visibilidade actual a este autor da nossa maioridade cultural.
Um desses livros é assinado por Fernando Cabral Martins, que produziu uma admirável síntese em torno de alguém que pouco se presta a sumas proveitosas. Há demasiadas variáveis no seu “teatro existencial” (Eu Sou Uma Antologia, Tinta-da-China, 2013, ed. Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari). Se o terreno biográfico é escasso e friável, a obra, de tão polimórfica, mostra-se de quase impossível cartografia. Fernando Pessoa albergava “uma sociedade dentro de si” (como notou Richard Zenith, em Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, 2014), e encontrou no trabalho de Cabral Martins um tratamento simultaneamente exaustivo e arejado. Introdução ao Estudo de Fernando Pessoa é exactamente o contrário do que a singeleza do seu título poderia fazer adivinhar. Delineia, pelo contrário, um roteiro de grande amplitude para o “no man’s land em que decorre toda a aventura de Pessoa e dos heterónimos” (Introdução, p. 151). Uma obra que, dada a sua complexa vastidão, nos sugere um movimento perpétuo; uma vida que incorpora aquilo a que Pessoa chamou o seu “drama em gente”, na Tábua Bibliográfica que publicou na revista Presença (n.º 17, Dezembro de 1928).
A relação com Teixeira de Pascoaes — nas suas tensões e nos seus desvios, detectáveis quer em relação à obra, quer no que toca ao seu autor — é estudada de forma exímia. Especialmente atreita a mal-entendidos e simplificações precipitadas, a dinâmica entre os dois autores é um dos vértices mais interessantes, e porventura menos percebidos, do poliedro Pessoa. O acerto de Cabral Martins surge também em complemento a esses aspectos mais basilares da questão Pessoa. Como quando fala de uma “tradução-síntese” (p. 56), a respeito do Jorge de Sena pessoano, ou ao lembrar a pertinência das máscaras em Wilde para o estudo de Fernando Pessoa. Mas também Nietzsche, enquanto poeta, é sagazmente recordado, num fragmento de importância nada negligenciável, quando se trata de abordar a teoria do fingimento poético — “O poeta que é capaz de mentir/ ciente e voluntariamente,/ é o único que pode falar verdade” (p. 227) De resto, Cabral Martins relembra, ainda, que Álvaro de Campos e Nietzsche partilham a data de nascimento.
Apenas um conhecimento profundo da constelação pessoana permite a Cabral Martins um manejo tão articulado dos materiais à sua disposição. O que, por exemplo, lhe dá oportunidade para contrabalançar a importância do já citado Wilde com a denegação do mesmo autor num trecho de Pessoa — “Ao contrário do que Oscar Wilde disse, só a arte é que é útil”. O fenómeno dos heterónimos merece-lhe a fórmula “apoteose da montagem” (p. 91); ao longo do seu estudo, converge para a heteronímia — ou “heteronimismo”, já que é esta a palavra mecanografada por Pessoa (Eu Sou Uma Antologia) — um amplo conjunto de fluxos interpretativos, que se vão retomando e ampliando, em leituras progressivamente enriquecedoras. O poeta que se analisava com um diagnóstico como “Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha” (Teoria da Heteronímia, ed. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2012) não podia deixar de ser estudado sob a perspectiva capital dos heterónimos que o habitaram. Cabral Martins avança, além disso, propostas idiossincráticas que ajudam a observar este objecto nunca totalmente identificado da cultura portuguesa — “A poesia e o ensaísmo têm em Pessoa uma dimensão ficcional, desde logo no que à função de autor diz respeito” (p. 208).
Dos heterónimos de Pessoa, Álvaro de Campos é certamente o mais complexo, o único que trilha um percurso com etapas claramente distintas, e porventura o mais fascinante deles. Numa conhecida carta enviada por Pessoa, enquanto Campos, à Contemporanea, e endereçada a José Pacheco, está patente essa “evolução”, mas também o risco de falácia que essa noção envolve: “Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já o não sou” (Obra Completa, Álvaro de Campos, ed. Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello, Tinta-da-China, 2014, p. 544) Como confirmam Pizarro e Cardiello, Campos é “a síntese de uma evolução poética e ficcional”. No entanto, uma vez que esta edição congrega não só a poesia mas também a prosa de Campos — o que acontece pela primeira vez —, os organizadores destacam um aspecto que deveria merecer reflexão: “Não conhecemos a prosa decadente de Campos, nem a sua prosa sensacionista (…), nem a prosa tardo-modernista, mas uma prosa mais ou menos sempre idêntica a si mesma, muito semelhante à de Fernando Pessoa, embora com algumas diferenças que parecem de ‘carácter’” (p. 16). Sobretudo quando temos em conta que, como lembram, “falta estudar a modernidade da prosa de Campos” (p. 16). Esta edição surge na sequência de um volume, igualmente assinado por Pizarro e Cardiello, devotado unicamente à prosa de Campos (Ática, 2013), mas em relação a ele há duas diferenças: a exclusão de um texto, “escrito por Ofélia Queiroz fingindo ser Álvaro de Campos” (p. 26) e a inserção de um outro, entretanto detectado e atribuído a Campos: mais um capítulo na polémica entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Onde Reis defendera “Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente e que Campos estabelece” (Prosa, Ricardo Reis, Assírio & Alvim, 2003) e “A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas per contra, um grau superior do domínio dela” (id.), replica Campos, entre outras investidas, que “Tudo é prosa, A poesia é aquella fórma da prosa em que o rhythmo é artificial” (Obra Completa, p. 506). No tocante ao corpus dos poemas, a revisão do cânone é substancialmente mais profunda, e as propostas de leitura são, em alguns casos, razoavelmente distintas de leituras anteriores. Logo o primeiro poema — aquele cujo incipit é “Tão pouco heráldica a vida!” (p. 33) — apresenta uma leitura conjectural e um verso parcialmente corrigido: “Levae-me para longe de eu saber que vivo e que sinto” (id.). Mas mesmo um poema tão omnipresente como Ode Marítima, por exemplo, enverga nada menos do que três emendas. O trabalho de Pizarro e Cardiello resultou numa edição histórica, profusamente anotada e comentada, que autoriza uma sólida visão de conjunto do heterónimo pessoano.
Entre os 136 “subautores e tarefeiros criados por Fernando Pessoa” (Eu Sou Uma Antologia), encontra-se o Sr. Pantaleão, “desdobramento natural de um Pessoa inconformado com um país corrompido, plantado à beira do abismo” (Cartas, Visões e Outros Textos do Sr. Pantaleão, Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva e Ana Maria Freitas, p. 7). Mas também “um ensaísta com vocação de agitador” e “um visionário”, como lhe chamou Teresa Rita Lopes (Pessoa por Conhecer I, Estampa, 1990). Este livro não vai mudar a nossa imagem de Pessoa, mas é verdade que ela fica mais completa com esta adição ao cosmos pessoano. A edição dos escritos de mais esta “personalidade fictícia” (p. 17) é menos do que uma novidade explosiva, mas mais do que uma simples curiosidade. Não totalmente inédita, embora em grande medida por publicar, a obra de Pantaleão ajuda a compreender Pessoa, especialmente o jovem — estes escritos datam dos 19, 20 anos do autor. Há, contudo, sinais que antecipam o autor da maturidade. Pensemos nós no palco dos heterónimos — “Mais do que actores, nas nossas almas somos teatros” (p. 43) —, em poemas como A Ceifeira — “Há naturezas inconscientemente conscientes” (p. 32) —, ou até no Livro do Desassossego — “No meio da existência sinto-me sonha” (p. 78) —, Pantaleão antecipa já, ainda que de forma embrionária, muito Pessoa posterior.
Como dizia Eduardo Lourenço, “os heterónimos são a Totalidade fragmentada” de Pessoa. O estabelecimento rigoroso dos escritos que nos legou, o estudo deles e a leitura crítica da sua vida são a melhor forma de garantir que este movimento se perpetua.
Texto corrigido: O livro de Fernando Pessoa, Cartas, Visões e outros Textos do Sr. Pantaleão tem como editoras Ana Maria Freitas e Manuela Parreira da Silva (que era a única referida no artigo).