A presunção de inocência – parte II
A consequência desta transferência do princípio jurídico da presunção de inocência para o espaço público não é neutra – ela transforma-se com a maior das facilidades num refúgio de gente duvidosa.
O meu texto da passada semana deu origem a um cacharolete de reacções, algumas das quais civilizadas, como foi o caso de Manuel Carvalho e João Pedro Marques, aqui no PÚBLICO, ou de Oscar Mascarenhas, no Diário de Notícias. Civilizadas, mas com frequência absurdas, como quando João Pedro Marques classifica o direito que eu invoco a presumir a culpabilidade de José Sócrates como um “tipo de juízo” que “equivale a um linchamento”, ou quando Manuel Carvalho anuncia que a minha posição “faz regressar a barbárie”.
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O meu texto da passada semana deu origem a um cacharolete de reacções, algumas das quais civilizadas, como foi o caso de Manuel Carvalho e João Pedro Marques, aqui no PÚBLICO, ou de Oscar Mascarenhas, no Diário de Notícias. Civilizadas, mas com frequência absurdas, como quando João Pedro Marques classifica o direito que eu invoco a presumir a culpabilidade de José Sócrates como um “tipo de juízo” que “equivale a um linchamento”, ou quando Manuel Carvalho anuncia que a minha posição “faz regressar a barbárie”.
Dada a impossibilidade de responder detalhadamente a cada um dos meus críticos, permitam concentrar-me na argumentação de Oscar Mascarenhas, sobretudo quando no final do seu longo texto intitulado “Eis que chega a mais patusca teoria da irresponsabilidade dos colunistas” ele resume a minha posição da seguinte forma: “João Miguel Tavares limitou-se a afirmar o princípio de que ‘tem todo o direito a presumir que fulano é culpado’ – mas não passou à prática de afirmar de peito aberto que é mesmo culpado. Ficou-se pela água chilra, quando prometia aguarrás.” O curioso nesta observação de Oscar Mascarenhas é que ela é absolutamente correcta – deixem-me, aliás, agradecer-lhe em público a capacidade que revelou em resumir de forma tão hábil o meu pensamento. O passo que lhe falta dar para chegar à perfeição sintética é este: aceitar que eu não me outorgo o direito de dizer que fulano é culpado quando não tenho provas disso, mas que me outorgo todo o direito de presumir que fulano é culpado, ou de achar que ele é culpado, se considerar ter suficientes indícios para tal. Mais: considero até, no caso de Sócrates, que para ver esses indícios não é necessária a perspicácia de Sherlock Holmes. Bastará não ter a vesguice dos dois irmãos Dupondt.
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Eu não quero ser aguarrás, caro Oscar – pretendo apenas contribuir modestamente para um debate aberto no espaço público, sem as hipocrisias do costume, nem as premissas que vestem o casaco de um suposto civismo (“então a presunção de inocência não é um princípio tão bonito?”) para, na verdade, esconderem a trágica amálgama entre os campos político e judicial. Amálgama essa, já agora, que José Sócrates sempre utilizou habilmente, e que lhe permitiu a sua reeleição em 2009 apesar da longuíssima cauda de casos mal explicados – se nenhum tribunal o tinha acusado de nada, então nada havia a explicar, não é?
A consequência desta transferência do princípio jurídico da presunção de inocência para o espaço público não é neutra – ela transforma-se com a maior das facilidades num refúgio de gente duvidosa, que se aproveita alegremente da confusão entre o escrutínio da esfera pública e as regras da investigação judicial. É contra este equívoco perigosíssimo que eu me insurjo, e me insurgirei sempre. Isto nada tem que ver com barbárie justicialista. Bem pelo contrário: é uma forma de lutar contra uma outra barbárie, bem mais insidiosa, porque bastante mais escondida – a barbárie de uma sociedade domesticada e de cabecinha baixa, em que tanta gente parece conformada que lhe assaltem a inteligência e ainda exijam um pedido de desculpas no final.