João Caupers: "A Constituição está claramente desajustada"

Juiz do Tribunal Constiitucional defende uma revisão da Constituição, mas não acredita que seja possível fazê-la. E não gostou de ver o “circo americano" da prisão de José Sócrates.

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João Caupers, juiz do Tribunal Constitucional Miguel Manso

A qualidade das leis feitas em Portugal é o ponto forte do seu livro. As leis são mal feitas? Porquê?
Não diria que são especialmente mal feitas nem bem feitas. O país que estudei mais em pormenor foi o Reino Unido, comparativamente é natural que sejam mais bem feitas porque há mais recursos, mais técnicos, mais preocupação com o cuidado da lei. Só há preocupações em fazer leis bem desde os anos 70 do século XX. Estamos a falar de uma preocupação que não tem 50 anos. A lei faz-se como um instrumento para atingir um objectivo. O juízo sobre o que é uma lei boa ou uma lei má pode ser colocado em várias perspectivas. Pode olhar-se para a lei do ponto de vista do sistema constitucional… A dificuldade está em que, frequentemente, as pessoas confundem esse juízo com o juízo de simpatia pela lei. Evidentemente que não podemos estar à espera que os deputados do PCP e os deputados dos do CDS tenham a mesma opinião sobre uma lei, mas isso não é um problema de qualidade da lei, mas de ideologia subjacente à lei, que é uma coisa completamente diferente.

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A qualidade das leis feitas em Portugal é o ponto forte do seu livro. As leis são mal feitas? Porquê?
Não diria que são especialmente mal feitas nem bem feitas. O país que estudei mais em pormenor foi o Reino Unido, comparativamente é natural que sejam mais bem feitas porque há mais recursos, mais técnicos, mais preocupação com o cuidado da lei. Só há preocupações em fazer leis bem desde os anos 70 do século XX. Estamos a falar de uma preocupação que não tem 50 anos. A lei faz-se como um instrumento para atingir um objectivo. O juízo sobre o que é uma lei boa ou uma lei má pode ser colocado em várias perspectivas. Pode olhar-se para a lei do ponto de vista do sistema constitucional… A dificuldade está em que, frequentemente, as pessoas confundem esse juízo com o juízo de simpatia pela lei. Evidentemente que não podemos estar à espera que os deputados do PCP e os deputados dos do CDS tenham a mesma opinião sobre uma lei, mas isso não é um problema de qualidade da lei, mas de ideologia subjacente à lei, que é uma coisa completamente diferente.

O problema em Portugal é que algumas leis surgem descontextualizadas…
A qualidade da decisão legislativa tem a ver com a resposta a perguntas fundamentais que, normalmente, não se fazem. É preciso fazer uma lei? Uma boa parte das leis são feitas sem se responder a esta pergunta, portanto são formalmente inúteis. São desnecessárias. Depois, sendo necessário regular um certo sector da nossa vida, é indispensável que isso se faça por lei? Porque há outras alternativas. Por exemplo, a auto-regulação profissional. Muitas vezes não se justifica uma lei do Estado. As notas que justificam uma lei da Assembleia da República ou do Governo nunca têm estudos económicos sobre coisa nenhuma. Quer dizer, ninguém sabe qual é a realidade e fazem-se leis. Às vezes até se podem fazer boas leis, pode-se acertar por acaso ou por sorte, já tem acontecido. Estatisticamente, a probabilidade de uma lei ser mais ajustada à realidade depende do ponto de partida. Às vezes, vemos informação nos preâmbulos dos diplomas de um país que não parece o nosso. Quem prepara a lei não deve ajuizar se é melhor prosseguir o objectivo que está no programa do partido A ou do B. Se se vai fazer uma lei é porque é necessária e supostamente serve para atingir aquele objectivo. Se esse objectivo é bom ou mau, não se pode perguntar a quem faz a lei, isso é uma opção política. É muito difícil em qualquer Parlamento todos os deputados estarem de acordo quanto ao sentido de uma lei. Aliás, seria estranho. Nós aqui não demoramos cinco anos, como no Reino Unido, a fazer uma lei, às vezes demoramos uma semana e, muitas vezes, o resultado é trágico porque foi uma precipitação, por exemplo para responder a apelos… A utilização da lei para satisfação da opinião pública é absolutamente trágico.

Acha que há utilização da agenda legislativa para ir ao encontro do que não é o interesse público?
Acho que o problema é exactamente o contrário. Não há planeamento legislativo em Portugal. Num estudo que fiz há uns anos com uns alunos da minha faculdade, analisámos o Código do IVA durante um período de quatro anos. Se a memória não me falha, foi alterado 21 vezes. O Código do IVA é aquilo que permite às empresas estabelecer os seus planos. Como é que é possível alguém planear um negócio com esta instabilidade fiscal? Devia ser absolutamente estável, devia ser possível saber quanto é que vai ser o IVA para o ano e daqui a dois anos… Não há estratégia nenhuma.

O que está a dizer é que se legisla para responder a necessidades imediatas?
Na gíria legislativa chama-se legislar por impulso. É, na maior parte das vezes, uma desgraça. É a utilização da lei como se fosse uma espécie de carro de bombeiros. Mas posso dar o exemplo de um caso em Portugal em que a preparação da lei foi absolutamente excepcional, um exemplo de escola. A preparação da reforma do contencioso administrativo quando António Costa era ministro da Justiça com João Tiago Silveira [então director do gabinete de política legislativa do ministério da Justiça]. Esses dois anos de reforma foram absolutamente excepcionais. Se virem os trabalhos preparatórios, é uma coisa que nunca tinha sido feita em Portugal. Mais de uma dezena de debates universitários, um site para o qual se dirigiram centenas de juízes, procuradores da República, ainda hoje os trabalhos estão publicados pelo ministério da Justiça. Não sei se o resultado é assim tão magnífico, mas, pelo menos, foi muito participado. É um exemplo raríssimo, onde é que está uma reforma que tenha demorado dois anos como esta demorou a fazer-se? O Código de Processo Civil (CPC) é também um exemplo de escola, a dada altura tinha uma vacatio legis de seis meses – o período entre o momento de publicação da lei e a sua entrada em vigor. No caso dos grandes códigos pode ser seis meses, um ano… O CPC tinha uma vacatio legis de seis meses. Pois foi alterado antes da vacatio legis acabar. Ainda não estava em vigor e já alguém se tinha arrependido e alterado a lei, o que é absolutamente extraordinário.

É curiosa a sua exposição sobre a ausência de estudos económicos para a elaboração das leis quando o TC tem sido acusado pelo Governo de não atentar ao estado de emergência financeira do país. As decisões judiciais não têm em conta essa preocupação?
Não respondo a qualquer pergunta sobre a actividade do TC. Em geral, o que posso dizer é que essa crítica é verdadeira. Os juristas em geral não têm formação económica ou têm muito insipiente. Isso vale para os ministros, para os deputados, para os juízes de todos os tribunais. Basta dizer que a primeira vez que se ensinou contabilidade numa faculdade de Direito foi em 1996. Como é que é possível? Os juízes fazem coisas nos tribunais para as quais se exige uma formação especializadíssima. Se for ver os processos de contra-ordenação quer na CMVM, quer no Banco de Portigal aos administradores do BCP, 90% daquilo são coisas económicas…

Então a critica que tem sido feita ao TC é justa?
Não acho que seja justa, mas não me vou pronunciar sobre ela.

Esse é um dos principais problemas da Justiça ou há outros? Como a morosidade, a falta de aplicação de penas efectivas em processos de grande suporte mediático…
Porque é que a justiça demora muito tempo? Por boas e más razoes. As boas é porque achamos que um inocente deve sempre poder provar que está inocente, um credor deve sempre poder receber o dinheiro… Estas duas coisas têm limitações. Nós não podemos garantir que todas as dívidas sejam pagas e que todos os criminosos sejam punidos ou que não haja algum inocente que seja condenado. Como é que os sistemas procuram reduzir a possibilidade destas coisas acontecerem? Uma delas é com a formalização do processo. É por isso que temos prazos para tudo, número de testemunhas… E pensamos que, se pusermos mais cabeças a pensar, a solução se aproximará da verdade, com as várias instâncias judiciais. Mas isto tem um preço. Quantas mais pessoas fazemos intervir, para mais nos aproximarmos da verdade, mais tempo e recursos consumimos. O grande problema que se põe no sistema de justiça é encontrar o equilíbrio entre as duas coisas. Chega a uma altura em que começamos a entrar numa espécie de prejuízo da comunidade. Isto parece complicado e é complicado.

O problema é que a morosidade anda muitas vezes aliada à falta de eficácia…
É verdade. Temos excesso de pessoas que intervêm judicialmente. Se um processo demorar três ou quatro anos, as únicas pessoas que ganham são os advogados, todos os outros perdem. Esse ritmo da justiça é também muito alimentado…

Dada a actualidade, temos que lhe perguntar como observa o comportamento da Justiça no caso José Sócrates… Causa-lhe estranheza a forma como, por exemplo, foi detido? E, depois, preso preventivamente?
Vamos esclarecer o que não sei: não conheço a pessoa, não tenho nenhuma ideia formulada sobre a pessoa do ponto de vista profissional, moral. Conheço o que toda a opinião pública conhece, algumas controvérsias do seu passado. Presumo, como toda a gente deve presumir, que é inocente. Essas são as regras do sistema. Não gosto de uma coisa. Não gosto do circo, do espectáculo feito à volta disto.

Há uma mudança de atitude da própria justiça neste processo?
Há uma coisa bizarra, uma espécie de americanização do espectáculo da Justiça sem os recursos que têm os americanos. Ao menos, os americanos fazem bem feito. Aqui faz-se uma pálida cópia, má.

Não acha que a justiça ainda não encontrou uma forma eficaz de comunicar?
E isso é tanto mais lastimável quanto a verdade que a justiça toca num sentimento comum às pessoas, que é toda a gente achar que sabe o que é justo e injusto. Este tipo de espectáculo da Justiça atrai o pior das pessoas. As reflexões mais animalescas, mais absurdas. O que agora se chama linchamento. Resulta da conjugação de duas coisas extraordinárias, uma é uma certa comunicação social, o espectáculo judiciário é de graça, sai mais barato do que uma telenovela. Outra, é a combinação disso com a apetência que os operadores judiciários têm pelo espectáculo televisivo. Onde é que num país decente se vêem juízes a opinar em programas de televisão como comentadores, sobre futebol, sobre as coisas mais variadas? É um aspecto particularmente triste. Olha-se para um painel de comentadores de futebol estão lá advogados e juízes, um cirurgião… Não é que eu ache deprimente comentar futebol, mas porque é que há pessoas que se colocam nessa exposição?

Quando foi cooptado para o TC citaram sobejamente a sua frase “a pobre da Constituição já é pouco mais do que um papel”. É a favor de uma revisão constitucional, já está desajustada?
Eu não sou constitucionalista, embora conheça bem a Constituição e a aplique o melhor que possa. Mas se me pergunta se está desajustada, está claramente desajustada. Não podia deixar de ser assim, é uma Constituição de 1976, com quase 40 anos, revista sete vezes. As revisões dependeram sempre de acordos de maioria de dois terços, o que não é fácil reunir no quadro parlamentar português. Não tenho nenhum problema em dizer que sou muito crítico em relação ao sistema de fiscalização da constitucionalidade. Valia a pensa rever este aspecto da Constituição e outros, mas qual a probabilidade de isso acontecer? Zero. A retórica ofensiva e defensiva em relação à Constituição impede uma reflexão séria.

Acredita noutro sistema de nomeação dos juízes para o TC que não o actual de eleição pelo Parlamento e cooptação inter pares?
Não tenho opinião firme sobre isso. Há sistemas em que o presidente da República também nomeia alguns.

Não poderia ficar melindrado na sua independência?
Não pensei nisso. Mas o Presidente no nosso sistema não é o chefe do executivo…

Participou nas conferências Novo Rumo organizadas pelo então secretário-geral do PS, António José Seguro. Defendeu uma proposta polémica de criação de uma única Polícia Nacional…
Proposta que já tinha feito há mais de dez anos e que tem que ver com a rentabilização de meios, recursos. As pessoas, em geral, não negam as vantagens, mas receiam que as vantagens ponham termo às especificidades de cada uma das polícias. Porque é que há duas polícias deste género em Portugal? É uma tradição da Europa do Sul ter uma polícia rural e outra urbana. Isso fazia sentido quando Portugal tinha 60% das pessoas a viver no campo. Agora tem 4,5%. Não há nenhuma razão para haver duas polícias num país deste tamanho. O problema está em que uma polícia nacional não podia ter as funções todas que têm estas duas polícias. A meu ver isto era acompanhado do reforço das polícias municipais. Só nós é que temos um comandante em Lisboa que tem polícias de Mogadouro a Vila Real de Santo António.