“A negação do racismo torna-o ainda mais enigmático e difícil de combater”

A chegada de Barack Obama à presidência não fez dos Estados Unidos um país menos racista, diz David Theo Goldberg. O académico e ensaísta sul-africano define o pós-racismo como “uma forma de tornar menos óbvias" as formas de um fenómeno ainda presente.

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Nelson Garrido

A África do Sul, onde viveu até ser adulto e ter "mais de 20 anos”, deu-lhe uma consciência política e uma sensibilidade quase à flor da pele para os conceitos de raça e de racismo, e para os quais contribui com novas leituras e interpretações frequentemente rejeitadas pela ala política mais conservadora nos Estados Unidos, mas não só. O autor de The Threat of Race (A Ameaça da Raça, 2003) ou The Racial State (O Estado Racial, 2003) passou a sua juventude na parte mais rica Cidade do Cabo. Desde cedo sentiu que “algo estava errado” naquele país onde escolheu transpôr as barreiras da segregação: para comprar marijuana, entrava nos bairros de negros (townships) e convivia naturalmente com os dealers. “Não devia dizer isto a alta voz.” Mas di-lo com descontracção também para mostrar que essa experiência o salvou do desconhecimento total de um mundo, tão próximo mas ocultado pelo regime do apartheid. Esteve na passada semana em Braga a convite do Núcleo de Educação para os Direitos Humanos do Instituto da Educação da Universidade do Minho, para a apresentação de uma conferência, sob o título Já somos todos pós-raciais? – o mesmo que deu ao seu próximo livro, com saída prevista para Maio.

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A África do Sul, onde viveu até ser adulto e ter "mais de 20 anos”, deu-lhe uma consciência política e uma sensibilidade quase à flor da pele para os conceitos de raça e de racismo, e para os quais contribui com novas leituras e interpretações frequentemente rejeitadas pela ala política mais conservadora nos Estados Unidos, mas não só. O autor de The Threat of Race (A Ameaça da Raça, 2003) ou The Racial State (O Estado Racial, 2003) passou a sua juventude na parte mais rica Cidade do Cabo. Desde cedo sentiu que “algo estava errado” naquele país onde escolheu transpôr as barreiras da segregação: para comprar marijuana, entrava nos bairros de negros (townships) e convivia naturalmente com os dealers. “Não devia dizer isto a alta voz.” Mas di-lo com descontracção também para mostrar que essa experiência o salvou do desconhecimento total de um mundo, tão próximo mas ocultado pelo regime do apartheid. Esteve na passada semana em Braga a convite do Núcleo de Educação para os Direitos Humanos do Instituto da Educação da Universidade do Minho, para a apresentação de uma conferência, sob o título Já somos todos pós-raciais? – o mesmo que deu ao seu próximo livro, com saída prevista para Maio.

Na conferência e no livro, descreve as novas configurações que o racismo assume nas sociedades de hoje?
David Theo Goldberg – Tanto a conferência como o meu próximo livro são sobre as novas formas da expressão de racismo ou racismos. Para a questão “Já somos todos pós-raciais?” – que dá o título a ambos –, a resposta habitual vinda de críticos e académicos é “claro que ainda não somos todos pós-raciais”. E possivelmente nunca o seremos. O que eu digo é que, na grande maioria das sociedades modernas no mundo, a questão é sim, somos todos pós-raciais, mas apenas no sentido em que existem novas formas estruturais de racismo que prolongam os racismos do passado e assumem uma nova forma expressão. O livro – e o trabalho que tenho feito – expõe as formas de expressão que o racismo hoje assume. O pós-racismo é afinal uma maneira de encobrir, deslocar ou tornar menos óbvias as formas de uma expressão racista que permanece.

Quais as características desse novo racismo?
As formas estruturais mais profundas estão presentes, mas o que é identificado como pós-racialismo são acontecimentos racistas sem ligação entre si. Surgem num momento pontual e como o produto da má acção de uma pessoa ou de várias pessoas. Pode ser uma força policial ou um grupo de cidadãos, ao mesmo tempo que a sociedade aparece, nesta narrativa, como totalmente alheia a atitudes racistas.

Exemplo de um desses acontecimentos foi o que se passou em Ferguson, no Missouri [onde o polícia que matou o adolescente negro Michael Brown não foi acusado]?
É exactamente um desses acontecimentos, que se querem discretos e se apresentam como não sendo racistas, mas mostram, nesta nova narrativa, como funciona o racismo. Ao negar-se uma intenção racista, parece estar a negar-se a própria negação. Com isto, a sociedade recusa reconhecer que somos movidos por considerações de raça. O acontecimento é visto como um acto individual de uma pessoa mal-intencionada.

Como se apenas houvesse racismo na cabeça de quem pensou nisso e acusou o outro de ser racista?
De certo modo, a pessoa que invoca o racismo é vista como estando fora do tempo, perante esta ideia de que o racismo deixou de existir. Algumas pessoas identificam a existência de um racismo sem raça, no caso em que se discrimina uma pessoa negra ou latina mas sem se estar a pensar nesses termos. E assim, estas situações continuam no tempo e não são travadas. A negação do racismo torna-o ainda mais enigmático. Logo, mais difícil de combater. Evapora-se à frente dos nossos olhos, no momento em que está a acontecer e torna-se mais difícil de combater. É o que eu caracterizo como o pós-racial. Passa a ser mais difícil sensibilizar a sociedade para a realidade de que ele continua a existir e a condicionar a sociedade em que vivemos. Mas é a sua existência que nos explica a desigualdade tão profunda e estrutural que vemos quando olhamos os dados de quem vai para a prisão ou de quem não entra na universidade, ou as diferenças no rendimento e riqueza das pessoas.

Fala em especial dos Estados Unidos?
Falo dos Estados Unidos, como caso óbvio mas não único. A ênfase do pós-racialismo numa sociedade como os Estados Unidos, ou a África do Sul ou alguns países da Europa, é colocada sob a forma de um recuo do multiculturalismo. Ouvimos [David] Cameron e [Angela] Merkel a expressarem esse desejo de não serem mais parte de uma tendência para o multiculturalismo.

A crise é apenas um pretexto para esse discurso?
A crise económica, em parte, sustenta esse discurso. Mas ele não se reduz à crise económica que apenas acentua as condições para o discurso aparecer.

Nos Estados Unidos, relativamente às questões da raça, existe um pré-Obama e um pós-Obama?
As condições de vida dos negros pioraram muito nos Estados Unidos durante a presidência de Barack Obama. Os Estados Unidos são agora racistas de uma forma diferente, mas certamente não são um país menos racista. Obama, ele próprio, tem sido identificado em termos racistas nas redes sociais, em imagens em blogues, Twitter, Facebook, muitas vezes ligado ao [ultraconservador] Tea Party. Mas isso é algo que não pode reduzir-se ao Tea Party. Basta procurar na Internet para encontrar milhares de imagens de Obama transformado num bruxo, babuíno ou outro animal. Ele não liga e nunca responde. Mas é horrível. Por isso, o pós-racial invocado em nome da sua eleição abriu caminho a uma proliferação de expressões racistas, sob diversas formas, e permitiu às pessoas dizer quase tudo o que lhes passa pela cabeça.

As pessoas sentem-se mais livres e essa forma de liberdade pode ser ofensiva?
Sim, e eu relaciono isso com a polémica na Dinamarca em 2012 com a publicação dos cartoons [de Maomé], e com esta ideia de que na Europa podemos exprimir tudo sem qualquer restrição, podendo essa expressão assumir uma forma racista.

O seu interesse por este tema surgiu do seu passado na África do Sul onde nasceu e cresceu?
Está nos meus genes sociais, sim. Nasci na África do Sul, cresci na Cidade do Cabo, onde frequentei a escola e a faculdade. Nasci nos primeiros anos da década de 1950 e vivi lá até ao final da década de 1970. Cresci com o apartheid. Crescemos numa sociedade muito segregada, frequentávamos escolas em separado, vivíamos num bairro separado, mas sempre tivemos mulheres negras em casa, como empregadas domésticas. Cuidavam de mim. Eram ou não parte da família? Trabalharam durante mais de três décadas na casa dos meus pais, partilhavam com a minha mãe histórias de filhos e netos. Existia uma proximidade, mas também uma separação. Talvez não devesse dizer isto muito alto, mas a verdade é que fumar marijuana levou-nos, a mim e aos meus amigos, a desenvolver relações e a entrar nos townships (bairros onde vivia segregada a população negra). Éramos convidados a entrar na casa do dealer e a fumar com ele. Conversávamos e isso transformava a nossa maneira de pensar e de ver aquela pessoa com quem havia uma partilha de interesses comuns. Muito cedo, eu questionei a separação destes mundos. Quando cheguei à faculdade, envolvi-me por pensar que o que se passava era errado. Isso está, desde sempre, comigo.

Juntou-se então aos protestos contra o Governo?
Nos anos da faculdade, sim, estávamos muito envolvidos nas marchas [de protesto]. A Cidade do Cabo estava em estado de sítio, cercada por tanques. As marchas começaram por ser apenas participadas por adolescentes negros, que saíam dos townships, fora da cidade, mas os estudantes brancos da faculdade juntaram-se a eles no percurso. Em retrospectiva, podemos apontar 1976 como o princípio do fim do apartheid, mas não o sabíamos na altura. Nos 13 anos seguintes assistimos ao desfazer do apartheid, com a população negra a tornar os townships ingovernáveis e a repressão a aumentar, com a quebra abrupta da actividade económica e a pressão social, política e económica internacional. Mas desde muito cedo, certamente a partir da década de 1950, o anti-apartheid era uma luta multirracial.

Se a população branca tivesse contestado verdadeiramente o regime, o apartheid não teria sobrevivido tanto tempo?
É verdade. A maioria da população branca não estava apenas confortável com o apartheid. Estava empenhada em manter o apartheid. Os nacionalistas afrikaners conseguiram unificar os brancos. Ao mesmo tempo tinham como objectivo desunir os negros, tentando delinear diferenças entre eles em função dos seus grupos étnicos, como forma de os dividir, e uniam os brancos sob o lema comum de poderem beneficiar com o apartheid. Nesse sentido, os portugueses brancos que migraram para a África do Sul, depois das independências de Angola e Moçambique [em 1975], tornaram-se numa população significativa que também se empenhou na manutenção do apartheid, por segurança.

A África do Sul ultrapassou essas divisões do passado? A decisão muito recente de condenar o antigo atleta Oscar Pistorius por homicídio involuntário e não qualificado, [acusado da morte da namorada e condenado a cinco anos de prisão e não a prisão perpétua] revela algo mais sobre a forma como a África do Sul vive as questões da raça?
É inegável que houve grandes transformações de sociabilidade na África do Sul. No caso específico de Pistorius, tentaram por tudo passar a imagem de que a sua fama e dinheiro não faziam qualquer diferença. Mas a verdade é que se ele fosse negro, e não tivesse a fama e o dinheiro que tem, não teria aguardado o julgamento em liberdade. O livro Black Diamond [de ZAkes Mda, Penguin, 2009], é exactamente sobre estas considerações de ter ou não ligações, de ter ou não poder e de a raça ser ou não um obstáculo. Seja como for, o facto de termos um bom funcionamento da justiça e uma imprensa livre significa que, em certa medida, justiça foi feita. Durante o apartheid, Pistorius poderia nunca ser condenado.

A África do Sul e o apartheid correspondem um modelo isolado de racismo? 
O racismo em qualquer parte do mundo ganha capacidade e apoio pelo racismo noutra qualquer parte do mundo. O tipo de racismo que pode existir em Portugal, por exemplo, com esta questão de quem pode ou quem não pode entrar [no país], sustenta-se no tempo devido à relação do país com a União Europeia e com as ex-colónias. O racismo não existe num vazio, é parte de uma ordem racial global, que se reforça a si mesma por várias formas.