Richard Linklater: um realizador à procura de si mesmo

Temos sempre, com Linklater, a sensação de estar perante um cineasta ansioso por se encontrar a si mesmo e ao que quer, realmente, fazer.

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Em Double Play, o realizador Gabe Klinger teve a ideia de juntar Richard Linklater e James Benning

À partida, o encontro e a associação não eram nada óbvios. Oriundos de gerações diferentes (Benning nasceu nos anos 40, Linklater 20 anos depois), o cinema de um e de outro também não aparenta, pelo menos à superfície, pontos de contacto por aí além – se é que alguma coisa, de facto, pode ligar os filmes muito paisagísticos, muito contemplativos, sem um pingo de “narrativa”, que Benning vem fazendo há décadas, quase sempre em 16mm (só recentemente se converteu ao “digital”), com aquilo que tem sido a obra de Linklater.

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À partida, o encontro e a associação não eram nada óbvios. Oriundos de gerações diferentes (Benning nasceu nos anos 40, Linklater 20 anos depois), o cinema de um e de outro também não aparenta, pelo menos à superfície, pontos de contacto por aí além – se é que alguma coisa, de facto, pode ligar os filmes muito paisagísticos, muito contemplativos, sem um pingo de “narrativa”, que Benning vem fazendo há décadas, quase sempre em 16mm (só recentemente se converteu ao “digital”), com aquilo que tem sido a obra de Linklater.

Mas Linklater admira a obra de Benning (porventura mais do que Benning admira a obra de Linklater) e há um momento, particularmente significativo, em que revela, mais do que admiração, uma espécie de inveja pela atitude e pela posição de Benning, cineasta quase solitário, que faz o que quer quando bem lhe apetece e sem depender em nada dos circuitos industriais ou tangentes à indústria, nem do reconhecimento “alternativo” do circuito dos festivais.

Que é como quem diz que, nesse momento, Linklater tem à sua frente a materialização perfeita do sonho da “independência”, uma independência total e absoluta. De certo modo, a perseguição desse sonho é a ferida essencial do seu cinema, sendo razoavelmente certo que através dos ziguezagues da obra de Linklater, dos seus altos e baixos, dos seus avanços e recuos, também se podia ilustrar um bocadinho do que tem sido a enorme ambiguidade dos caminhos do chamados “cinema independente” americano nas últimas duas décadas, sempre oscilando entre um desejo de marginalidade segura dela própria e a facilidade com que cai dentro do mesmo remoinho, da mesma escala de valores (de produção e de recepção), do cinema da grande indústria.

O projecto que trouxe Linklater para uma audiência muito mais vasta do que a encontrada pelos seus dois primeiros filmes (esses objectos de “culto”, muito “geração X”, muito “alt-rock”, que foram Slacker e Dazed and Confused, no princípio dos anos 90) foi Antes do Anoitecer, o primeiro encontro entre Ethan Hawke e Julie Delpy, num dia fugaz durante uma paragem do inter-rail em Viena. Pleno de uma teen angst muito característica da época, foi um sucesso porventura inesperado para o próprio Linklater. Catapultou-o para um patamar de expectativas com que ele possivelmente teve dificuldade em lidar, visto que é sobretudo depois desse momento que começa a instalar-se na sua obra uma grande irregularidade, e pôs ao seu alcance meios e condições que não estão disponíveis para qualquer “independente”, iniciando o seu “flirt” com um regime de produção mais “mainstream”.

As duas sequelas, Antes do Amanhecer e Antes da Meia-Noite, não estavam inicialmente previstas, e se acabaram por ser uma resposta ao sucesso do primeiro episódio (assim como uma tentativa da sua repetição), tornaram-se também uma espécie de “plataforma” segura, um porto de abrigo, aonde Linklater pode voltar nos intervalos das suas deambulações por universos tão distintos como Philip K. Dick (A Scanner Darkly), os malefícios da indústria da carne (Fast Food Nation) ou comédias rock and roll (School of Rock). No fundo, é através desse percurso, estendido no tempo de maneira a ser também uma crónica do seu crescimento e envelhecimento, com os actores Ethan Hawke e Julie Delpy, que mais facilmente se encontra um traço de união na tão díspar obra de Linklater. Que haja similitudes, a partir desse princípio de integrar o tempo na estrutura dos filmes, de fazer da cronologia um objecto de observação, entre a saga dos Antes de… e Boyhood, porventura o filme de Linklater que maior aclamação encontrou em toda a sua carreira, eis o que talvez seja significativo: temos sempre, com Linklater, a sensação de estar perante um cineasta ansioso por se encontrar a si mesmo e ao que quer, realmente, fazer.