Por mérito próprio
Se me tivesse portado bem, hoje seria um funcionário público, com emprego garantido para o resto da vida, um bom salário e pouco trabalho, férias no estrangeiro uma vez por ano e montes de fotografias no Facebook
A diferença entre os capazes e os bem sucedidos resume-se à qualidade das interacções sociais e às pessoas com as quais vamos para os copos. Se, por um lado, nunca tive autorização para me dar com o Miguel (porque o pai era pedreiro), já com o João e o Pedro (porque os pais estavam bem colocados a nível governamental) a história era outra. Amizade, mas com "gourmet".
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A diferença entre os capazes e os bem sucedidos resume-se à qualidade das interacções sociais e às pessoas com as quais vamos para os copos. Se, por um lado, nunca tive autorização para me dar com o Miguel (porque o pai era pedreiro), já com o João e o Pedro (porque os pais estavam bem colocados a nível governamental) a história era outra. Amizade, mas com "gourmet".
Logo por azar, e porque a adolescência tem esta embirrenta mania de querer ditar as suas próprias regras (ou talvez apenas por um assomo de liberdade), acabei sempre nos copos com o Miguel. Resultado prático: o João e o Pedro estão hoje colocados na administração pública naqueles lugares nem demasiado importantes para terem que pular fora da cerca a cada ciclo de quatro anos, nem demasiado pequenos para terem que pular fora da cerca a cada ciclo de quatro anos.
Quanto a este que vos escreve e ao meu amigo Miguel dos copos, tivémos ambos de emigrar, um para Inglaterra, outro para o Luxemburgo, e nunca mais nos voltámos a ver, tal como queria a minha mãe (porque o pai era pedreiro).
Duas lições
Lição número um: não vás para os copos. Lição número dois: e se quiseres ir para os copos, vai, mas só se fores com as pessoas certas.
Se me tivesse portado bem, hoje seria um funcionário público, com emprego garantido para o resto da vida, um bom salário e pouco trabalho, férias no estrangeiro uma vez por ano e montes de fotografias no Facebook, para meter inveja a mil amigos e familiares, assim justificando onze meses de letargia num faz de conta espectacular. Se me tivesse portado bem, teria votado nos partidos certos. E por votar nos partidos certos, teria ganho, por mérito próprio, o direito a um lugar no Olimpo português. Mas não votei.
Estúpida e orgulhosamente achei sempre por bem pensar pela minha própria cabeça. Liberdade, sim, mas só para bater com a cabeça à vontade. E por querer bater com a cabeça, paguei com os próprios dentes o bilhete de saída do país, sem regresso marcado. Afinal, se não fazes parte do grupo, se não queres baixar as calças, se não queres dever favores a ninguém, se quiseres ser um homem, nada mais te resta para além do caminho da vida, o caminho dos homens e dos pais que levam pela mão os líderes do amanhã. Por isso, parti e, com os tomates no lugar, nunca mais voltei. Cá fora, onde não devemos favores a ninguém, fui de tudo um pouco, fui empregado e fui patrão, fui amigo e fui amante, fui estrangeiro e fui aventureiro, viajei por metade do mundo e conheci países distantes, casei, comprei casa, fiz-me cidadão Inglês e nunca mais falei em Português.
Quanto ao João e ao Pedro, hoje passam os dias a maldizer os cortes tão orçamentais como salariais em conversas de café, enquanto se preparam para votar no mesmo partido aquando das próximas legislativas. Porque o emprego pode ser pouco, mas é bom e é certo, e mais vale o diabo que se conhece... O destino troca-nos constantemente as voltas e não pára de baralhar e voltar a dar: um dia destes hei-de estar de volta a Portugal para uns valentes copos com o meu amigo Miguel mais aquele abraço e pode ser que, entre risos e lágrimas, nos lembremos de como foi bom um dia viver em Portugal. Até porque teremos dinheiro para tal, por mérito próprio.