Os dois caminhos da Justiça
Um pilar do Estado de direito não poder descer ao terreno da luta partidária
Temos em cima da mesa o caso mais grave da democracia portuguesa. Um ex-primeiro-ministro foi detido pelas autoridades judiciais no âmbito de um inquérito que investiga suspeitas de crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção. Ainda mal refeitos das buscas e prisões de altos quadros da Administração Pública e da demissão de um ministro na sequência do escândalo dos vistos gold, eis que outra vaga de detenções acontece, com José Sócrates no epicentro deste novo caso. Mas é preciso não esquecer que não passaram ainda muitos meses desde que o centro das atenções foi o banqueiro do regime, que acabou por sair arguido do Campus da Justiça sob a imposição de uma caução milionária. Este tipo de acontecimentos provoca sentimentos mistos: por um lado, a satisfação de se perceber que o longo braço da lei não se inibe perante ninguém; por outro, a incomodidade de se constatar que nem sempre ao frenesim da justiça correspondeu a descoberta da verdade. Isto também acontece porque os interesses são grandes e os mecanismos de fiscalização e escrutínio são já muitas vezes construídos com fragilidades úteis para serem aproveitadas por quem tem a informação necessária para as aproveitar. A facilidade com que o dinheiro se desloca e “foge” é inversamente proporcional à capacidade da justiça para acompanhar esses movimentos e cooperar entre si. Mas esse não é, de todo, um problema da justiça, mas antes, um problema decisivo da política.
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Temos em cima da mesa o caso mais grave da democracia portuguesa. Um ex-primeiro-ministro foi detido pelas autoridades judiciais no âmbito de um inquérito que investiga suspeitas de crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção. Ainda mal refeitos das buscas e prisões de altos quadros da Administração Pública e da demissão de um ministro na sequência do escândalo dos vistos gold, eis que outra vaga de detenções acontece, com José Sócrates no epicentro deste novo caso. Mas é preciso não esquecer que não passaram ainda muitos meses desde que o centro das atenções foi o banqueiro do regime, que acabou por sair arguido do Campus da Justiça sob a imposição de uma caução milionária. Este tipo de acontecimentos provoca sentimentos mistos: por um lado, a satisfação de se perceber que o longo braço da lei não se inibe perante ninguém; por outro, a incomodidade de se constatar que nem sempre ao frenesim da justiça correspondeu a descoberta da verdade. Isto também acontece porque os interesses são grandes e os mecanismos de fiscalização e escrutínio são já muitas vezes construídos com fragilidades úteis para serem aproveitadas por quem tem a informação necessária para as aproveitar. A facilidade com que o dinheiro se desloca e “foge” é inversamente proporcional à capacidade da justiça para acompanhar esses movimentos e cooperar entre si. Mas esse não é, de todo, um problema da justiça, mas antes, um problema decisivo da política.
Estes epifenómenos de mediatização da justiça, a que muitas vezes se seguem períodos de refluxo e de esvaziamento dos casos que lhes dão origem, são extremamente negativos, pois geram sentimentos de frustração e de impunidade que acabam por fragilizar a democracia. É por isso que um processo destes não pode falhar. Deve estar construído na base de elementos de prova sólidos, obtidos através de meios legais inequívocos e garantidos os direitos de todos os envolvidos. Mas temos que convir que não começou bem e não só porque, na hora da detenção, lá estavam as câmaras televisivas para garantir o espectáculo. Repare-se que só se soube da existência de mais três detidos, depois de ser conhecida a situação de José Sócrates. Mas desde há cerca de um mês que circulavam informações sobre a iminência da detenção do ex-primeiro ministro e corriam rumores dando conta de investigações em curso. Também havia teorias da conspiração para todos os gostos e gente de mais a dar a entender ter conhecimento de movimentações judiciais que, à luz dos acontecimentos actuais, se percebe terem extravasado as fronteiras das diligências em curso. É absolutamente relevante que esse tipo de informações circulasse nos meios políticos e muitas vezes fosse apresentada como forma de atingir ou ser atingido no terreno da luta partidária. A justiça deveria pensar bem se quer ser parte nessa guerra ou se, pelo contrário, consegue resistir a essa voragem exibicionista e cumprir apenas o papel fundamental que lhe compete no Estado de direito.