Zwarte Piet
Estamos cientes que todas as sociedades, mesmo a mais civilizada ou mais próspera, abrigam todo o tipo de sujeitos e todo o tipo de dogmas. Existem santos e canalhas, hereges e beatos, honra e perversão, compaixão e cinismo. Todo o tipo de carácter incluindo aquele sujeito que todo o primeiro-mundista se recusa a admitir que existe: o racista alfabetizado. Uma figura inconveniente que se esconde nas saias da tradição sempre que lhe faltam argumentos para justificar a sua idiotice.
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Estamos cientes que todas as sociedades, mesmo a mais civilizada ou mais próspera, abrigam todo o tipo de sujeitos e todo o tipo de dogmas. Existem santos e canalhas, hereges e beatos, honra e perversão, compaixão e cinismo. Todo o tipo de carácter incluindo aquele sujeito que todo o primeiro-mundista se recusa a admitir que existe: o racista alfabetizado. Uma figura inconveniente que se esconde nas saias da tradição sempre que lhe faltam argumentos para justificar a sua idiotice.
Todos os anos, no festival holandês Sinterklaas, São Nicolau chega de barco a vapor em meados de Novembro e passa um mês no país. Faz-se acompanhar de dezenas de Peters, um grupo de palhaços animados que espalham biscoitos, chocolate e outras guloseimas para as crianças. Uma celebração pré-natalícia que culmina na noite de 5 de Dezembro, altura em que as famílias se entregam ao ritual da troca de presentes.
Até aqui parece ser uma celebração inofensiva, não fosse os Peters serem negros. Sim, negros como este cronista que vos escreve. Zwarte Piet ou Black Peter tal como é celebrado hoje na Holanda, Luxemburgo, Bélgica, Curaçao e Aruba apareceu pela primeira num livro datado de 1850 e da autoria de Jan Schenkman: No livro o autor descreve Zwarte Piet como sendo um mouro vindo de Espanha. Os actores que o têm representado nas procissões anuais do festival Sinterklaas tentam manter-se fiéis ao personagem original, pintando o rosto de preto, os lábios de vermelho e usando uma peruca com cabelo carapinha. Em nome da tradição.
Esta tradição é ofensiva e o debate sobre esta figura já se arrasta há anos. As vozes que se insurgem contra este costume têm vindo a subir de tom, dividindo uma nação que se diz tolerante e não tem por hábito protestar sobre coisíssima nenhuma, nem muitos menos sair para a rua reivindicando isto ou aquilo. Mas com o Zwarte Piet a coisa parece ser diferente. Verene Shepherd, chefe do Grupo de Trabalho de Peritos da ONU que analisa esse tipo de situações, depois de estudar a polémica, veio à televisão afirmar não compreender porque é que as pessoas na Holanda não conseguem ver que essa tradição representa um retrocesso no que respeita à escravidão, e que no século XXI este tipo de prática deve parar.
O primeiro-ministro Mark Rutte afirmou: "Black Peter é negro. Não há muito que eu possa fazer para mudar isso". Abraçar a tradição ou ir para casa. Essa é a palavra de ordem que tem alimentado as tensões entre a população nativa e os imigrantes. “O mundo esta de olho” disse Quinsy Gario, artista holandês nascido em Curaçao que emergiu nos últimos dois anos como a face pública do movimento anti- Zwarte Piet e que tem sofrido insultos e ameaças de morte por falar contra a tradição e os valores racistas que esta invoca. O que não é de espantar, porque esse tipo de situações servem, acima de tudo, de barómetro para a tolerância das sociedades ditas civilizadas.