Suspeitemos da literatura
Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão, o novo livro de Mário de Carvalho, reúne anos de reflexão sobre o acto de escrever. A experiência, argumenta, confirma que são poucos os génios e muitos mais os charlatões.
Leia, observe, anote, pense no que quer fazer — e trabalhe muito. Numa sinalética simplista, esta podia ser a síntese, incompleta e até talvez até errada, porque isso de se “dever fazer” assusta este autor que insiste na suspeita, embora não se coíba de apontar caminhos e fale mesmo de pactos essenciais em ficção, como o que se faz entre o escritor e o leitor. Não um pacto tranquilo, mas que permita passar a emoção, perceber a ironia; que a partir de uma série de referências comuns – culturais, de vida – haja uma relação de entendimento, nem que seja pelo desacordo. Por isso também o leitor está sempre a ser para aqui chamado. Ele e escritor são um uno. Na obra a construir e em todas as partilhadas na construção do tal colectivo para que qualquer escritor quer falar. “Dificilmente levo a sério um escritor que não tenha uma base de leituras. Não quer dizer que sejam aquelas que eu sindico no livro, simplesmente temos de partir de um cânone — nem que seja para o rejeitar, mas quando rejeitamos temos saber o que estamos a rejeitar. Uma escrita que não tenha em conta a tradição literária, que ignore uma espessura que vem de trás e esteja sempre a descobrir coisas que já estão descobertas, é uma escrita que não vale a pena”, refere Mário de Carvalho para começo de uma conversa com o Ípsilon sobre um livro que é também uma resposta a muito “charlatanismo” numa área que se convencionou chamar, tantas vezes de forma abusiva, de ensino da escrita criativa. “Isto é um negócio de auto-ajuda e muitas vezes essas regras são-nos apresentadas com um grande assertivismo. Eu tento demostrar no meu livro que grandes autores, dos tais que se ‘devem’ frequentar, como o Maupassant ou o Flaubert ou o Tchékhov, transgrediram essas normas habituais nos cursos de escrita criativa — e transgrediram em grande, a ponto de muitas vezes fazerem o contrário”, continua Mário de Carvalho, cauteloso sempre que usa a palavra “deve-se” a não ser quando se trata do dever de se conhecer, enquanto leitor, obras fundadoras.
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Leia, observe, anote, pense no que quer fazer — e trabalhe muito. Numa sinalética simplista, esta podia ser a síntese, incompleta e até talvez até errada, porque isso de se “dever fazer” assusta este autor que insiste na suspeita, embora não se coíba de apontar caminhos e fale mesmo de pactos essenciais em ficção, como o que se faz entre o escritor e o leitor. Não um pacto tranquilo, mas que permita passar a emoção, perceber a ironia; que a partir de uma série de referências comuns – culturais, de vida – haja uma relação de entendimento, nem que seja pelo desacordo. Por isso também o leitor está sempre a ser para aqui chamado. Ele e escritor são um uno. Na obra a construir e em todas as partilhadas na construção do tal colectivo para que qualquer escritor quer falar. “Dificilmente levo a sério um escritor que não tenha uma base de leituras. Não quer dizer que sejam aquelas que eu sindico no livro, simplesmente temos de partir de um cânone — nem que seja para o rejeitar, mas quando rejeitamos temos saber o que estamos a rejeitar. Uma escrita que não tenha em conta a tradição literária, que ignore uma espessura que vem de trás e esteja sempre a descobrir coisas que já estão descobertas, é uma escrita que não vale a pena”, refere Mário de Carvalho para começo de uma conversa com o Ípsilon sobre um livro que é também uma resposta a muito “charlatanismo” numa área que se convencionou chamar, tantas vezes de forma abusiva, de ensino da escrita criativa. “Isto é um negócio de auto-ajuda e muitas vezes essas regras são-nos apresentadas com um grande assertivismo. Eu tento demostrar no meu livro que grandes autores, dos tais que se ‘devem’ frequentar, como o Maupassant ou o Flaubert ou o Tchékhov, transgrediram essas normas habituais nos cursos de escrita criativa — e transgrediram em grande, a ponto de muitas vezes fazerem o contrário”, continua Mário de Carvalho, cauteloso sempre que usa a palavra “deve-se” a não ser quando se trata do dever de se conhecer, enquanto leitor, obras fundadoras.
Mário de Carvalho fala agora de originalidade, uma qualidade que se “exige” a quem escreve. Para a defender enquanto valor, recupera a tal tradição em que se deve fundar a escrita. “Os livros fazem-se sobre livros e contra livros. Há uma tradição literária. Não estou a defender o conservantismo, estou a falar de formas artísticas que se transmitem de geração em geração e entram no tal acervo que aceitamos ou rejeitamos — temos de trabalhar com ele ou contra ele. É preciso conhecê-lo e depois toca a rebelar-nos. Entendo isso perfeitamente. Há imensos exemplos históricos que já se tornaram canónicos de gente que se rebelou contra o cânone.” Muita da história da literatura do século XX é feita de rebeliões contra os cânones literários, lembra: “Estou a pensar nos dadaístas e nos surrealistas, que ainda hoje são lidos e que não podemos deixar de frequentar quando pensamos numa literatura transgressiva. Temos de ver que aquilo existiu, que já está lá, não vamos repeti-los.” Não faltam exemplos de textos com sucesso mas que revelam essa falta de saber para trás e que “não resistiriam ao simples teste da página 99”. Outra regra simples, defendida por muitos para aferir da qualidade de um texto: abra-se um livro na página 99 e percebe-se se vale a pena continuar. “Não vale a pena comer um ovo estragado todo para saber se ele está mesmo estragado. Basta uma página ou duas de um livro para ver em que base é que se afirma, se o autor é original ou nos está a dar fórmulas requentadas, repisadas por séculos e séculos de literatura. O autor pensa que está a inventar, mas está apenas a repetir, a reproduzir. Isso é um bocado penoso de ver. A utilização muito alegre e desprevenida da banalidade, do lugar-comum; ao fim e ao cabo, a repetição do que está feito.”
Partindo de exemplos de obras que considera referências literárias (e aqui é preciso ter sempre em conta alguma subjectividade, a da escolha do autor), Mário de Carvalho dá uma enorme e completa aula de escrita. Dividido em seis capítulos, por sua vez subdivididos em 59 pontos práticos, o guia agora publicado desmonta o trabalho oficinal por trás de uma obra de ficção. Dá conselhos, aponta erros comuns, desfaz ideias feitas, mostra que o óbvio nem sempre é assim tão clarividente, revela dicas para o bom uso da língua e os efeitos que cada decisão tem na obra de ficção que se está a construir. No tom provocatório que Mário de Carvalho gosta de colocar no que faz e diz, este podia se um guia comportamental. Mas Mário de Carvalho prefere a justificação simples e clara: “Partindo da minha já longa experiência de escrita e de todas as contingências pelas quais o escritor passa, pensei que poderia ter interesse, nomeadamente para jovens autores, mas até para o próprio leitor, perceber a génese destas coisas."
Uma valsa a dois
Autor de cerca de 30 livros, sobretudo de romance e conto, Mário de Carvalho tem ensaiado universos intemporais, cruzando tempos, experimentando personagens que congregam um saber nada datado, parodiando a língua, não resistindo à ironia, que distingue do chiste. “O Machado de Assis dizia: a pena da galhofa molhada na tinta da melancolia. Quando falamos em ironia eu penso logo em Eça de Queirós. É um bocadinho aquele riso elegante, em brando." Ironia aqui entendida mais do que enquanto figura de estilo: o sentido, mais amplo, é “o de um olhar brando e sorridente, às vezes melancólico sobre as coisas, vendo o seu lado mais risível": "Sim, eu muito dificilmente consigo resistir a isso. É um bocado a rejeição da gravitas, da solenitas, das atitudes à romana, antigas, de fazer acreditar, de se impor através da autoridade. A empatia merece o riso, o comentário risonho, e o dia-a-dia, com as suas mágoas e contrariedades, é mais bem encarado e combatido se houver esse toque. Eu tenho a ideia de que os grandes autores têm graça e de que se um grande autor não tiver graça tem de pagar um preço alto por isso.”
O título nasceu um pouco disso — e da transgressão, também, da desconfiança como ponto de partida possível. “Foi uma reminiscência de uma velha questão, já não me recordo se dos dadaístas se dos surrealistas, dessa gente que abanou o mundo literário do século XX pronunciando-se contra a literatura e a tradição literária e querendo instaurar qualquer coisa de novo, introduzindo até factores de irracionalidade e de absurdo. Foi à volta destas discussões sobre o absurdo e sobre quem tem razão e quem não tem que essa frase me surgiu”, conta.
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Como ressalva já na página 166, “não foi bem para encorajar o amadorismo perpétuo" que Mário de Carvalho se meteu a escrever Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão, sublinhando que no trabalho de escrita a progressão da descoberta é o grande auxiliar. E cita Hemingway, que disse a Scott Fitzgerald: “Avance com isso até ao fim." Concorda. “A primeira coisa é levar a tralha até ao fim.” Na primeira versão, mais vale a quantidade do que a qualidade, argumenta. “Depois da primeira versão é que começa a escrita, aí é que vamos trabalhar sobre a coisa.”
O computador veio alterar esse processo. Isto não está no livro, mas surge na conversa. Com ele muitas vezes a tentação é de aperfeiçoar logo, o que preferivelmente devia ser feito depois da primeira versão despachada. Talvez seja um obstáculo à progressão do texto. O tempo (todos os tempos, com pele e caneta ou o do ecrã de computador) trouxe a evidência: “É com a prática que o livro se vai resolvendo, desvendando." Na escrita, mas também na leitura, com a revelação de perspectivas, “facetas diferentes”. Leitor e autor continuam. Um sem o outro anulam-se na sua identidade e na sua competência. O leitor é como um parceiro de escrita. “Não é como, é mesmo um parceiro de escrita”, emenda. "É a tal valsa que se dança a dois, a pessoa que está do outro lado da máquina preguiçosa de que falava Umberto Eco e que a faz funcionar. O nosso livro é posto a funcionar por alguém capaz disso. Se cair nas mãos de um leitor indiferenciado, ingénuo, que não seja capaz de o fazer funcionar… Não quer dizer que seja difícil, mas exige-se que haja também por parte do leitor uma competência mínima. Isto não é uma frase feita, porque o leitor faz, de facto, o seu livro. Veja quantas Odisseias há desde a Odisseia! Nós estamos a ler a Odisseia escrita pelos gregos? Não estamos nada. Já passou por muita gente. Nós estamos a ler hoje o Édipo à nossa maneira, com as referências todas que temos.”
E entra outra ideia fundamental, a de verdade. “É a questão que o Pilatos pôs contra Jesus, 'o que é a verdade?'. Penso que é a ideia de responsabilidade e o tal pacto, o tal contrato tácito, implícito, que se tem com o leitor. Proponho-me escrever um romance e situá-lo em certa época. Nas primeiras páginas esse compromisso é de alguma forma fixado. Então é preciso respeitar o compromisso e não defraudar o leitor. Dar ali o melhor que tivermos, sem fazer batota. O essencial é não fazer batota.” E o que é batota em literatura? “Por exemplo, averiguar o que vai nos ares em termos de televisões, aquilo de que as pessoas andam a gostar, quais são as modas." Oportunismo? “Estamos na mesma linha. O escritor deixa de apresentar a sua própria proposta e procura lisonjear certo gosto dominante. Penso que ao escritor não compete lisonjear o gosto dominante, porque isso é ser capacho dele, é fazer pontaria baixa. Compete-lhe acrescentar qualquer coisa àquilo que existe. Há quem não goste desta frase, que a ache muito pedante, mas estamos cá para acrescentar alguma coisa. Depende do limite das nossas forças: ou conseguimos ou não conseguimos, mas temos de nos bater, tenho de saber que há coisas que se fizeram antes de mim, tenho de saber que há um Padre António Vieira, um Fernão Lopes, uma Maria Velho da Costa. São eles que nos dão os parâmetros.”
Entre os livros que se fazem e a literatura que se escreve há a tal diferença sempre implícita na conversa, desmontada ao longo de Quem Disser o Contrário é Porque tem Razão, mas sem aludir a nomes actuais e sem confundir best-sellers com os tais livros que não fazem acrescento. “Não tenho nada contra best-sellers. O D. Quixote foi um best-seller. Toda a gente que sabia ler o lia. Um livro como Tristam Shandy [de Laurence Sterne] teve uma divulgação perfeitamente assombrosa. No século XVIII já havia uma indústria de livro e podemos citar casos de outros autores que foram muito vendidos e popularmente, como o Dickens. Não tenho nada contra o sucesso. Tenho é contra a escrita que lisonjeia certo tipo de leitor indiferenciado. No fundo corresponde a esta frase abominável: ‘Vamos dar ao pagode aquilo de que o pagode gosta’. É mais uma vez o que se chama fazer pontaria baixa. Não sei se aquilo pretende ser literatura ou não, mas…”
Ler o livro de lápis na mão e resistir a não sublinhar é um teste. As frases os exemplos escolhidos e citados por Mário de Carvalho são esse convite a pensar. Sobre a função da escrita e sobre a função da leitura. Lamenta-se aqui a ausência de exemplos da sua própria oficina. “Não gosto muito de falar de mim”, justifica o escritor. E sobre a oficina dos outros refere as entrevistas em que, com raras excepções, se pergunta como escreve, se de dia ou de noite, de onde vem a inspiração. Ele volta a responder que há trabalho e excepções que confirmam o génio. “Não há ciência exacta — e é outra ressalva que costumo fazer —, salvo milagre ou genialidade. Por vezes há coisas que escapam à nossa compreensão e a todas as previsões e expectativas.” Há então génio? “Há casos excepcionais. Acho que sim, acho que há tipos geniais. Para não ir mais longe, o Pessoa. Há ali qualquer coisa que está muito acima das nossas aptidões. De todos. Não tenho dúvidas.”