Duquesa de Alba (1926-2014), a última aristocrata de Espanha

Cayetana Fitz-James Stuart viveu como quis e morreu como quis, aos 88 anos. “Andei sempre à frente do meu tempo”, dizia.

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Nos obituários, a imprensa chamou-lhe "mítica" — nesta Espanha de monarquia manchada (até por escândalos de corrupção) e que tenta reencontrar um sentido para a sua existência, Cayetana, a duquesa feudal que chegou ao século XXI, sobressaía ainda mais. Era a última de uma estirpe irrepetível, era uma das últimas representantes da grande aristocracia espanhola.

Por ser mulher, não se envolveu na política, como o pai e o primeiro marido, Luis Martínez de Irujo y Artázcoz. Para a duquesa, herdeira única de uma das mais importantes casas nobres, de um património riquíssimo — diz o povo que não é possível atravessar Espanha de cima a baixo ou de lado a lado sem que não se pise terras de Alba — e de uma fortuna colossal, restava, como a todas as mulheres do seu tempo e condição, a vida social. Foi nesta área que Cayetana se distinguiu das outras mulheres e foi ganhando, década após década, outro género de títulos. "Duquesa rebelde", por exemplo. As suas causas e modo de vida foram-lhe granjeando a simpatia popular e outro título: “aristocrata de rua”, por parecer estar tão próxima do povo como da classe em que nasceu.

Foi esta separação — entre alguém importante e alguém popular — que o ministro da Justiça, Rafael Catalá, quis fazer quando lhe chamou “personagem importante” de Espanha. E que o presidente do Governo, Mariano Rajoy, acentuou nas condolências que enviou à família, ao dizer que Cayetana e “a sua Casa” “são imprescindíveis para compreender a História de Espanha e da Europa”.

Cayetana de Alba nasceu no dia 28 de Março de 1926 no Palácio de Liria, em Madrid. Apesar de o pai ser 22 anos mais velho do que a mãe, esta morreu primeiro, tuberculosa, quando a rapariga tinha apenas oito anos. O pai, contou a duquesa no livro autobiográfico Eu, Cayetana (Alethëia Editores), educou-a “com a mesma severidade com que educaria um rapaz”.

A educação e o estatuto, revela no livro, deram-lhe a melhor de todas as armas. “Desde pequena que sempre tive uma grande autoconfiança. (...) Não posso dizer se fui bonita — não sou eu que tenho de o afirmar —, mas sei que sou atraente, interessante, diferente. Posso parecer excessiva, mas a falta de modéstia aborrece-me.”

Cayetana casou-se três vezes. O pai, Jacobo Fitz-James Stuart y Falcó, o 17.º duque, escolheu Luis Martínez de Irujo y Artázcoz, aristocrata, industrial e conselheiro de Estado, para marido da filha e, aos 21 anos, a rapariga que tinha vivido em Inglaterra e convivido com uma aristocracia mais moderna e mundana do que a espanhola, fez-lhe a vontade, pondo de lado a paixão arrebatada e nunca escondida por sentia por um toureiro sevilhano, Pepe Luis Vázquez. Touros e Sevilha foram paixões constantes da duquesa, que rejubilou quando a única rapariga entre os seus seis filhos, Eugenia, se perdeu de amores por um toureiro, Francisco Rivera, e com ele se casou. O casal divorciou-se, um dos desgostos de vida de Cayetana, que gostava de dizer que era uma mulher à frente do seu tempo, mas se insurgia ferozmente contra o divórcio — e contra o aborto. “Sempre fui católica, mas sem ser beata. Não há incompatibilidade nenhuma entre ser boa católica e ser moderna. Desde pequena que andei sempre à frente do meu tempo, e continuo a andar.”

A boda de Cayetena foi a boda do ano, em Outubro de 1942, na catedral de Sevilha. A reportagem do “casamento mais caro do mundo” — 20 milhões de pesetas, uma imensa fortuna para a época — saiu no Le Monde e no New York Times. O órgão oficial do franquismo escreveu sobre a festa, partilhada na rua com os sevilhanos: “O povo espanhol gosta de ter, de vez em quando, matéria-prima para os seus sonhos. Este casamento deu à gente pobre muitas horas de felicidade.”

Luis Martínez de Irujo morreu de leucemia 25 anos depois de se casar. Nos anos que se seguiram, relatam as crónicas de vida de Cayetana, agora republicadas, a duquesa centrou-se na educação dos filhos. Mas um dia encontrou o verdadeiro amor, perturbando a ordem do grupo social em que se movia e alimentando a já poderosa imprensa cor-de-rosa espanhola.

A duquesa apaixonara-se, e era correspondida, por um ex-padre jesuíta, Jesus Aguirre, a quem Cayetana chamou, vezes sem conta, “alma gémea”. A duquesa deu um pontapé nas convenções e casou-se com o ex-padre que viria a morrer em 2001.

“Não me meto na vida de ninguém, não se metam na minha”, disse Cayetana muitos anos depois, quando, para preocupação dos reis — Juan Carlos e Sofia — e inquietação dos filhos, a duquesa se apaixonou por Alfonso Díez, funcionário público duas décadas mais jovem. As crónicas dizem que a duquesa falou com os reis sobre o seu desejo de se casar e que Sofia, a rainha, lhe deu um conselho: “Pense bem.”

O encontro com Sofia foi mero protocolo, a decisão estava tomada. Cayetana decidira casar-se e pagar o preço. Ela aceitou repartir o património e os títulos pelos filhos. Alfonso aceitou — segundo a imprensa espanhola — uma renda de dois mil euros mensais até ao fim da vida como única compensação financeira. “Na minha idade, ninguém se casa por dinheiro”, disse o noivo numa entrevista recente, a última que Cayetana concedeu para dizer que estava feliz. “Estou convencida de que sem amor não se pode viver. Pode-se, mas muito mal”, escreveu Cayetana no último livro que escreveu, O Que a Vida Me Ensinou, uma colectânea de pensamentos sobre amor, amizade, família, estilo e moda, o Natal e outros assuntos diversos (ed. Pergaminho).

Numa família como os Alba, o futuro do património não é assunto que se resolva numa tarde e Cayetana negociou com os filhos um par de anos, antes de se poder casar, para seu próprio júbilo e do povo que, como em 1942, a foi ver vestida de noiva e para quem, à porta do palácio de Dueñas, Cayetana dançou sevilhanas.

A história dos Alba é muito antiga. Herdeira de um ramo ilegítimo dos Stuart escoceses, a família tem origens na nobreza castelhana do século XIV. Começam a ganhar notoriedade e poder na corte e, em 1429, os Álvarez de Toledo recebem de Enrique II de Castela o senhorio de Alba de Tormes. Ao longo de séculos, os Alba acumulam 45 títulos nobiliárquicos (cinco ducados, um condado-ducado, 20 condados, um vice-condado e 18 marquesados); Cayetana era a titular de todos, a pessoa com mais títulos do mundo.

A história dos Alba está ligada a Portugal através de Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, conhecido como o grã-duque, que venceu as tropas portuguesas na Batalha de Alcantara e deu a coroa portuguesa a Filipe de Espanha. O duque, recompensado com mais um título (12.º condestável de Portugal), morreria em Lisboa em Dezembro de 1582.

À fortuna, terras, palácios e herdades, os Alba — sobretudo a partir do grã-duque — juntaram um património artístico incomparável. “Acompanhei sempre o meu pai nas muitas decisões sobre a ampliação das obras de arte do património dos Alba, uma tradição imposta na Casa desde a sua fundação”, explicou a duquesa, que foi amiga de artistas na sua fase boémia e que Picasso quis retratar, numa reinterpretação da Maja. O primeiro marido, Luis, não gostou e a duquesa recuou no desejo de replicar a vida de María del Pilar Cayetana de Silva-Alvarez de Toledo, sua tetravó e modelo de Francisco Goya em A Maja vestida e A Maja despida. Nas paredes dos palácios dos Alba acumulam-se, literalmente, obras de Goya, Tiziano, El Greco, José de Ribera, Chagall.

Rodeada de alguns deles, na sua casa favorita de Sevilha, o Palácio de Dueñas, morreu Cayetana, na madrugada de quinta-feira. As últimas semanas de vida passou-as, doente, em casa com o marido a ver filmes antigos; gostava especialmente de E Tudo o Vento Levou. Já no hospital, quando a gastroenterite deu lugar à insuficiência respiratória e à arritmia cardíaca, pediu para voltar para casa. Fizeram-lhe, pela última vez, a vontade. Cayetana de Alba morreu como viveu — como quis, aos 88 anos.

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Nos obituários, a imprensa chamou-lhe "mítica" — nesta Espanha de monarquia manchada (até por escândalos de corrupção) e que tenta reencontrar um sentido para a sua existência, Cayetana, a duquesa feudal que chegou ao século XXI, sobressaía ainda mais. Era a última de uma estirpe irrepetível, era uma das últimas representantes da grande aristocracia espanhola.

Por ser mulher, não se envolveu na política, como o pai e o primeiro marido, Luis Martínez de Irujo y Artázcoz. Para a duquesa, herdeira única de uma das mais importantes casas nobres, de um património riquíssimo — diz o povo que não é possível atravessar Espanha de cima a baixo ou de lado a lado sem que não se pise terras de Alba — e de uma fortuna colossal, restava, como a todas as mulheres do seu tempo e condição, a vida social. Foi nesta área que Cayetana se distinguiu das outras mulheres e foi ganhando, década após década, outro género de títulos. "Duquesa rebelde", por exemplo. As suas causas e modo de vida foram-lhe granjeando a simpatia popular e outro título: “aristocrata de rua”, por parecer estar tão próxima do povo como da classe em que nasceu.

Foi esta separação — entre alguém importante e alguém popular — que o ministro da Justiça, Rafael Catalá, quis fazer quando lhe chamou “personagem importante” de Espanha. E que o presidente do Governo, Mariano Rajoy, acentuou nas condolências que enviou à família, ao dizer que Cayetana e “a sua Casa” “são imprescindíveis para compreender a História de Espanha e da Europa”.

Cayetana de Alba nasceu no dia 28 de Março de 1926 no Palácio de Liria, em Madrid. Apesar de o pai ser 22 anos mais velho do que a mãe, esta morreu primeiro, tuberculosa, quando a rapariga tinha apenas oito anos. O pai, contou a duquesa no livro autobiográfico Eu, Cayetana (Alethëia Editores), educou-a “com a mesma severidade com que educaria um rapaz”.

A educação e o estatuto, revela no livro, deram-lhe a melhor de todas as armas. “Desde pequena que sempre tive uma grande autoconfiança. (...) Não posso dizer se fui bonita — não sou eu que tenho de o afirmar —, mas sei que sou atraente, interessante, diferente. Posso parecer excessiva, mas a falta de modéstia aborrece-me.”

Cayetana casou-se três vezes. O pai, Jacobo Fitz-James Stuart y Falcó, o 17.º duque, escolheu Luis Martínez de Irujo y Artázcoz, aristocrata, industrial e conselheiro de Estado, para marido da filha e, aos 21 anos, a rapariga que tinha vivido em Inglaterra e convivido com uma aristocracia mais moderna e mundana do que a espanhola, fez-lhe a vontade, pondo de lado a paixão arrebatada e nunca escondida por sentia por um toureiro sevilhano, Pepe Luis Vázquez. Touros e Sevilha foram paixões constantes da duquesa, que rejubilou quando a única rapariga entre os seus seis filhos, Eugenia, se perdeu de amores por um toureiro, Francisco Rivera, e com ele se casou. O casal divorciou-se, um dos desgostos de vida de Cayetana, que gostava de dizer que era uma mulher à frente do seu tempo, mas se insurgia ferozmente contra o divórcio — e contra o aborto. “Sempre fui católica, mas sem ser beata. Não há incompatibilidade nenhuma entre ser boa católica e ser moderna. Desde pequena que andei sempre à frente do meu tempo, e continuo a andar.”

A boda de Cayetena foi a boda do ano, em Outubro de 1942, na catedral de Sevilha. A reportagem do “casamento mais caro do mundo” — 20 milhões de pesetas, uma imensa fortuna para a época — saiu no Le Monde e no New York Times. O órgão oficial do franquismo escreveu sobre a festa, partilhada na rua com os sevilhanos: “O povo espanhol gosta de ter, de vez em quando, matéria-prima para os seus sonhos. Este casamento deu à gente pobre muitas horas de felicidade.”

Luis Martínez de Irujo morreu de leucemia 25 anos depois de se casar. Nos anos que se seguiram, relatam as crónicas de vida de Cayetana, agora republicadas, a duquesa centrou-se na educação dos filhos. Mas um dia encontrou o verdadeiro amor, perturbando a ordem do grupo social em que se movia e alimentando a já poderosa imprensa cor-de-rosa espanhola.

A duquesa apaixonara-se, e era correspondida, por um ex-padre jesuíta, Jesus Aguirre, a quem Cayetana chamou, vezes sem conta, “alma gémea”. A duquesa deu um pontapé nas convenções e casou-se com o ex-padre que viria a morrer em 2001.

“Não me meto na vida de ninguém, não se metam na minha”, disse Cayetana muitos anos depois, quando, para preocupação dos reis — Juan Carlos e Sofia — e inquietação dos filhos, a duquesa se apaixonou por Alfonso Díez, funcionário público duas décadas mais jovem. As crónicas dizem que a duquesa falou com os reis sobre o seu desejo de se casar e que Sofia, a rainha, lhe deu um conselho: “Pense bem.”

O encontro com Sofia foi mero protocolo, a decisão estava tomada. Cayetana decidira casar-se e pagar o preço. Ela aceitou repartir o património e os títulos pelos filhos. Alfonso aceitou — segundo a imprensa espanhola — uma renda de dois mil euros mensais até ao fim da vida como única compensação financeira. “Na minha idade, ninguém se casa por dinheiro”, disse o noivo numa entrevista recente, a última que Cayetana concedeu para dizer que estava feliz. “Estou convencida de que sem amor não se pode viver. Pode-se, mas muito mal”, escreveu Cayetana no último livro que escreveu, O Que a Vida Me Ensinou, uma colectânea de pensamentos sobre amor, amizade, família, estilo e moda, o Natal e outros assuntos diversos (ed. Pergaminho).

Numa família como os Alba, o futuro do património não é assunto que se resolva numa tarde e Cayetana negociou com os filhos um par de anos, antes de se poder casar, para seu próprio júbilo e do povo que, como em 1942, a foi ver vestida de noiva e para quem, à porta do palácio de Dueñas, Cayetana dançou sevilhanas.

A história dos Alba é muito antiga. Herdeira de um ramo ilegítimo dos Stuart escoceses, a família tem origens na nobreza castelhana do século XIV. Começam a ganhar notoriedade e poder na corte e, em 1429, os Álvarez de Toledo recebem de Enrique II de Castela o senhorio de Alba de Tormes. Ao longo de séculos, os Alba acumulam 45 títulos nobiliárquicos (cinco ducados, um condado-ducado, 20 condados, um vice-condado e 18 marquesados); Cayetana era a titular de todos, a pessoa com mais títulos do mundo.

A história dos Alba está ligada a Portugal através de Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, conhecido como o grã-duque, que venceu as tropas portuguesas na Batalha de Alcantara e deu a coroa portuguesa a Filipe de Espanha. O duque, recompensado com mais um título (12.º condestável de Portugal), morreria em Lisboa em Dezembro de 1582.

À fortuna, terras, palácios e herdades, os Alba — sobretudo a partir do grã-duque — juntaram um património artístico incomparável. “Acompanhei sempre o meu pai nas muitas decisões sobre a ampliação das obras de arte do património dos Alba, uma tradição imposta na Casa desde a sua fundação”, explicou a duquesa, que foi amiga de artistas na sua fase boémia e que Picasso quis retratar, numa reinterpretação da Maja. O primeiro marido, Luis, não gostou e a duquesa recuou no desejo de replicar a vida de María del Pilar Cayetana de Silva-Alvarez de Toledo, sua tetravó e modelo de Francisco Goya em A Maja vestida e A Maja despida. Nas paredes dos palácios dos Alba acumulam-se, literalmente, obras de Goya, Tiziano, El Greco, José de Ribera, Chagall.

Rodeada de alguns deles, na sua casa favorita de Sevilha, o Palácio de Dueñas, morreu Cayetana, na madrugada de quinta-feira. As últimas semanas de vida passou-as, doente, em casa com o marido a ver filmes antigos; gostava especialmente de E Tudo o Vento Levou. Já no hospital, quando a gastroenterite deu lugar à insuficiência respiratória e à arritmia cardíaca, pediu para voltar para casa. Fizeram-lhe, pela última vez, a vontade. Cayetana de Alba morreu como viveu — como quis, aos 88 anos.