Um suave azulejo

Gente séria que sabia fazer-se da cor da parede do fundo logo que a porca torcia o rabo, que uma coisa é mandar bocas no café ou na internet e outra é meter a cabecinha de fora

Foto
Pedro Ribeiro Simões/FLICKR

E numa bela terra cheia de brisa salgada, fábricas abandonadas e campos por cultivar vivia um povo de gente séria. Herdeiros duma boa dose de lirismo, enganavam a fominha com indignações de opereta, entretinham-se com cochichos de paróquia para não terem de olhar os olhos dos velhos que mendigavam para os medicamentos à porta do mini-preço. Subiam o volume a qualquer um dos filhos do Carreira para não ouvir os gemidos da velha abandonada de baixo, da vizinha espancada de cima, do miúdo queimado com pontas de cigarro do lado, não era nada com eles, no fundo.

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E numa bela terra cheia de brisa salgada, fábricas abandonadas e campos por cultivar vivia um povo de gente séria. Herdeiros duma boa dose de lirismo, enganavam a fominha com indignações de opereta, entretinham-se com cochichos de paróquia para não terem de olhar os olhos dos velhos que mendigavam para os medicamentos à porta do mini-preço. Subiam o volume a qualquer um dos filhos do Carreira para não ouvir os gemidos da velha abandonada de baixo, da vizinha espancada de cima, do miúdo queimado com pontas de cigarro do lado, não era nada com eles, no fundo.

Enchiam os olhos com a chavala do Ronaldo e o luto da Judite, os ouvidos com os "jingles" da Popota e o vácuo parlapié de um ou dois ou três dos 1.647 programas de comentário desportivo e o bucho com comida mais ou menos limpa, que Bruxelas ainda não assinou por nós a abertura do continente à Monsanto, ainda não.

Gente séria que sabia fazer-se da cor da parede do fundo logo que a porca torcia o rabo, que uma coisa é mandar bocas no café ou na internet e outra é meter a cabecinha de fora: bons académicos esquerdistas que assinavam defesas a censores, políticos nacionalistas sempre à espera de ordens de Berlim, banqueiros liberais que viviam na mama do estado que diziam desnecessário, um quinto poder de todas as matizes de cinzento-rato que há, sempre a adivinhar para que lado soprava o vento, sempre na crista da onda; sim, temos alguma queda para o paradoxo.

Papavam missas sem entusiasmo e casavam pela igreja só porque a fotografia fica mais bonita; viam a Casa dos Segredos só para dizer mal; torciam o desgosto em motivo de orgulho e garantiam a toda a gente que se ganhassem o Euromilhões continuavam a entrar fielmente ao quarto para as nove para as 8 horas de carimbar os formulários 11/a, 11/b e 11/c daqui para o colega do lado... quem é que me meteu aqui um 11/e?! Por estas e outras é que este país não avança!

Raramente pontapeavam o cão acorrentado no quintal e há anos que não iam à tourada, pagavam a taxa da televisão (disfarçada na conta da electricidade) e mais 50 impostos indirectos sem mais do que um queixume abafado e mesmo assim achavam mal para as câmaras que alguém fizesse greve “Malandros, não querem é trabalhar!”. A vida era dura no jardim à beira mar plantado, mas antes aqui que lá fora, que para norte tratam-nos como marroquinos e para sul já não nos deixam tratá-los a eles como marroquinos. É duro ser um antigo império, os ianques nem sabem o que os espera.

Invejavam o samba e o flamenco dos outros enquanto choravam fados muito velhinhos cantados por miúdas novas e giras, metiam cunhas para arranjar empregos em call-center a afilhados e acendiam velinhas ao Bom Jesus para o banco onde tinham o pé-de-meia não ir pelo mesmo caminho que o BES, esticavam o 11º mês para o Natal que férias nem vê-las, chateavam-se com o caixa do supermercado que os verdadeiros culpados são sempre inacessíveis, seguravam a raiva nos dentes que aprenderam com a avó que não há mal que sempre dure, que qualquer dia a alegria volta a cantar na rua...

pode ser que tenham razão.