O capitão Barros Basto escondia um segredo
Até hoje, as fotografias que conhecíamos da participação portuguesa na I Guerra tinham uma fonte quase exclusiva: Arnaldo Garcez, o fotógrafo oficial do Corpo Expedicionário destacado para a Flandres. A Revista 2 revela imagens inéditas do capitão Barros Basto que nos dão um novo olhar sobre a guerra.
A secretária da casa no Porto tinha a chave numa das gavetas. Talvez fosse uma daquelas chaves que tanto servem para abrir como para fechar todos os trincos do móvel onde se guardam as coisas mais pessoais, a papelada, e as imagens que abrem caminho às memórias. A chave estava lá, como um sinal entre o acessível e o inacessível. Umas gavetas, as de cima, foram sendo mexidas pela família ao longo dos anos, mas outras, as de baixo, ficaram arrumadas tal qual o capitão de infantaria Artur Carlos Barros Basto as deixou quando morreu no Porto, em 1961. Foram precisos muitos anos, mais de 50, até que alguém tomasse a iniciativa de começar a abrir essas gavetas e quisesse conhecer o que lá se guardava. Não há razões imediatas para esta clausura, a não ser a suposição de que o recheio destas gavetas estivesse relacionado com um passado que deixou feridas profundas e que ainda hoje estão por sarar. O passado de um militar que foi obrigado a deixar de o ser em 1937, por causa de um processo inaudito movido pelo Conselho Superior de Disciplina do Exército baseado em acusações persecutórias relacionadas com o culto de uma religião, o judaísmo.
Quando, em 2005, se abriram as gavetas de baixo da secretária do capitão Barros Basto, o que se encontrou foi um raro espólio fotográfico da participação portuguesa na I Guerra Mundial, imagens inéditas que a Revista 2 revela publicamente pela primeira vez. Arrumadas em caixas da época, quase duas centenas de negativos de vidro, película e provas de papel mostram o quotidiano dos soldados do Corpo Expedicionário Português (CEP) na segunda e na primeira linha de combate, a camaradagem entre militares, a destruição causada pelos bombardeamentos e, genericamente, um encantamento pelas paisagens da Flandres, no meio do inferno de uma guerra mortífera e sanguinolenta.
Os registos visuais têm vocação para convocar a memória de uma maneira muito particular, e tanto podem chamar velhos fantasmas traiçoeiros como potenciar deslumbramentos cândidos e visões oníricas. No caso da família do capitão, o peso da injustiça cometida contra um homem que quis professar publicamente a sua religião (e cativar outros, até então reprimidos, a fazerem o mesmo) foi de tal ordem que a (re)descoberta deste legado foi sendo adiada. Até que um conjunto de pequenos acasos foi abrindo brechas nessa barreira defensiva, acasos que farão com que parte do espólio fotográfico de Barros Basto possa ser visto numa exposição no Centro Português de Fotografia (CPF), no Porto, a partir do próximo dia 20 de Novembro, ainda a tempo das comemorações do centenário da I Guerra Mundial. A Câmara Municipal do Porto também se associou a esta descoberta participando como coprodutora da mostra.
Essa conjugação de factores começou com um encontro certeiro no Porto entre a neta de Artur Barros Basto, Isabel Ferreira Lopes e um professor de finlandês apaixonado por Portugal, Mika Palo, a quem a economista falou da descoberta das fotografias do seu avô. Palo, amigo de Isabel, foi sensível àquele relato. E prometeu contar o achado ao seu tio, António Conde Falcão, coronel de cavalaria reformado e fotógrafo e autor do livro Imagens da I Guerra Mundial (Lisboa: Estado-Maior do Exército, 2004), obra esgotadíssima que mergulha no espólio de Arnaldo Garcez (Santarém, 1885-1964), o único fotógrafo que acompanhou oficialmente o CEP durante o conflito. Até agora, Garcez era tido como o único português a registar de forma sistemática o dia-a-dia dos soldados na frente ocidental da guerra. Conde Falcão interessa-se pelo que o sobrinho lhe conta e desloca-se de Lisboa ao Porto para averiguar pormenores do achado.
Foi depois da morte da mãe, Miriam, filha mais nova de Barros Basto, que Isabel Ferreira Lopes decidiu começar a abrir gavetas. Quando se lhe depararam estas fotografias da guerra (cuja existência até então desconhecia), demorou a decidir o que fazer com elas. Mas uma certeza tinha (o passado, outra vez): não queria que este património fosse depositado numa instituição militar. Conde Falcão, que tem mantido contacto com CPF em virtude da sua actividade como investigador e fotógrafo, aconselha-a a ir bater à porta do centro instalado na antiga Cadeia da Relação e a doação (para já, apenas das reproduções digitais) acontece em Dezembro de 2013. A acompanhar este espólio (que desde então tem vindo a ser descrito, conservado e digitalizado pelo CPF) estão muitos objectos e outros documentos gráficos (cartas, diplomas, ofícios…) relativos à vida militar, pessoal e social do capitão.
Da actividade e da ligação efectiva (ou afectiva) de Barros Basto com a fotografia pouco se sabe. Quando o avô morreu, Isabel Ferreira Lopes tinha oito anos. Das histórias relacionadas com a guerra que ouviu da boca da avó, Lea Monteiro Azancot, a existência deste conjunto de imagens nunca foi referida. “O meu avô era um contador de histórias e sempre ouvi as histórias sobre a guerra relacionadas com ele, o seu heroísmo, a sua valentia, mas nada acerca destas fotografias.” Em conversa com a Revista 2, Isabel Ferreira Lopes recorda sobretudo a intensa actividade fotográfica do avô na “obra do resgate”, na qual, a partir de 1925, se empenhou a identificar e a organizar comunidades de judeus marranos no Norte e nas Beiras de Portugal. E também no registo das várias fases de construção da sinagoga do Porto, que viria a ser inaugurada em 1938, ano da tristemente célebre “noite de cristal” (kristallnacht, 9 de Novembro), quando actos de violência anti-semita em larga escala na Alemanha e na Áustria provocam a destruição de mais de 1400 sinagogas e a morte de, pelo menos, 1500 pessoas. “Estranhamente, o meu avô nunca foi muito dado a tirar fotografias entre família, preferindo registar os assuntos relacionados com a sua obra junto das comunidades judaicas. Creio que era o seu lado de repórter a falar. E um sinal da sua imensa curiosidade por tudo o que o rodeava.”
Terá sido essa curiosidade que levou Artur Barros Basto a querer registar a guerra para a qual zarpou a 23 de Fevereiro de 1917, a bordo do City of Benares. Se comparado com o olhar mais aguçado e com a dimensão do arquivo de Arnaldo Garcez (estimado em cerca de três mil fotografias), o conjunto de imagens agora revelado de Barros Basto pode parecer tímido e insignificante. O certo é que, para além da raridade do aparecimento de um espólio inédito português sobre a I Guerra, estas 177 fotografias do capitão amarantino são extraordinárias a vários níveis: rompem com a quase hegemonia imagética de Garcez no teatro de guerra da Flandres para onde o CEP foi destacado; mostram tanto as linhas mais avançadas de combate como o quotidiano da retaguarda; revelam (pela primeira vez?) o olhar de um amador deslumbrado, em contraponto com o olhar de um profissional com uma missão mais bem estudada e predefinida; acrescentam novas realidades ao imaginário da participação portuguesa na I Guerra; e dão indicações sobre a organização e atitude dos soldados portugueses no teatro de operações. Mas, sobretudo, o que se nota na generalidade das imagens de Barros Basto é uma atitude de alguém que parece olhar pela primeira vez para o que o rodeia, muitas vezes sem a preocupação do melhor enquadramento, da velocidade indicada, mas com a urgência de quem percebe claramente que está perante um acontecimento marcante para a história e que precisa de o registar de alguma maneira.
Nas caixas de fotografias que chegaram ao CPF, há imagens surpreendentes (quatro cómicos que parecem caídos de pára-quedas na guerra) e até contraditórias entre si (paisagens picturalistas na mais firme tradição Oitocentista versus perspectivas picadas algo ousadas para a época). Através da exposição Barros Basto: O Capitão nas Trincheiras, será possível acrescentar mais um talento ao perfil multifacetado de um homem que viu o seu percurso profissional e pessoal fatalmente afectado por causa de um processo militar ferido de sanha persecutória.
Militar de carreira, Artur Carlos Barros Basto ficou conhecido como o revolucionário que hasteou a bandeira republicana no Porto durante o 5 de Outubro. Nasceu no seio de uma família cristã, mas com ascendência criptojudaica. Durante a adolescência, o avô paterno deu-lhe a conhecer os seus antepassados e ensinou-lhe os fundamentos da doutrina hebraica. Quando, em 1906, tentou integrar-se na comunidade judaica de Lisboa, cidade onde cumpriu o serviço militar, não foi aceite. Partiu para a I Guerra como tenente e regressou como capitão. Na Flandres, comandou um batalhão do CEP e, pela sua prestação, recebeu várias condecorações, entre as quais a Cruz da Guerra. Ainda em França, estabeleceu contacto com a comunidade judia, momento em que começa a ganhar forma a sua decisão de vir a praticar a religião dos seus antepassados. Em 1920, parte para Tânger, onde se sujeita a um exame rabínico para ser admitido na comunidade. Aí recebe o nome hebraico Abraão Israel Bem-Rosh. Viajou depois para Lisboa (onde passou a ser aceite pela comunidade), casou-se como uma judia e regressou ao Porto. No início dos anos 20, Barros Basto começou um projecto de revitalização da comunidade judaica local lançando as primeiras bases da sinagoga (Mekor Haim), fundando um jornal (Ha-Lapid) e um instituto teológico (Yeshivah). Em paralelo, decidiu procurar e converter os descendentes dos judeus portugueses naquela que ficou conhecida como a A Obra do Resgate dos Marranos, missão que lhe valeria o cognome de “apóstolo dos marranos” (judeus ibéricos que praticavam a sua fé e os seus costumes em segredo, por receio de perseguições religiosas, ao mesmo tempo que publicamente praticam outra religião).
Esse proselitismo empenhado (e feito às claras) passou a ser mal visto pelo regime ditatorial que saiu do golpe de 28 de Maio de 1926. Barros Basto começou a ser sujeito a limitações pessoais e profissionais que culminam no processo de disciplinar militar n.º 6/1937, depois de duas denúncias anónimas que o acusavam de homossexualidade. Apesar de ter sido absolvido por unanimidade desta acusação, o Conselho Superior de Disciplina do Exército (CSDE) considerou provado que o capitão realizava “a operação de circuncisão a vários alunos” do Instituto Teológico Israelita do Porto e que tinha com eles “intimidades exageradas”, beijando-os nas faces (como, aliás, era normal entre judeus sefarditas de Marrocos, onde se convertera ao judaísmo). Baseado nestes pressupostos, o CSDE declarou Barros Basto destituído de “capacidade moral e prestígio da sua função oficial e decoro da sua farda”. A pena: “separação de serviço”. Ou seja, expulsão do Exército. A partir desta data, a vida do capitão, outrora herói reconhecido, transformou-se radicalmente. Privado do rendimento do seu posto de militar, apenas dois anos depois da punição a que foi sujeito, o capitão conseguiu ajudar muitos refugiados judeus que fugiram das garras nazis durante a II Guerra Mundial. Assim que o desfecho do julgamento de Barros Basto começou ser divulgado entre a comunidade judaica internacional, o historiador inglês Cecil Roth apelida-o “Dreyfus português”, numa alusão ao capitão do Exército francês de origem judaica, injustamente acusado e condenado por traição (viria a ser amnistiado e reabilitado ainda em vida).
Barros Basto morreu em 1961 sem ter conseguido reverter a sua condenação. Quis ser enterrado com a farda de militar e no leito de morte terá dito que um dia lhe seria feita justiça. Depois do 25 de Abril, a viúva do capitão, Lea Monteiro Azancot Barros Basto, pediu ao Presidente da República, general Costa Gomes, a reabilitação moral e a reintegração póstuma no Exército. Lea não só viu esse pedido recusado, como foram dados como provados factos que não o tinham sido em 1937. Na prática, essa decisão significou uma segunda condenação. Mas os pedidos não pararam. Em 1996, foi a vez da Associação Judaica Memória — Zicaron Abotenu. A resposta da Auditoria Jurídica do Ministério da Defesa da altura concluiu que a sanção de separação de serviço aplicada em 1937 “consolidou-se na ordem jurídica, não enfermou de ilegalidade e por conseguinte não é susceptível de revogação ou de anulação”. O ministro da Defesa da época, António Figueiredo Lopes (PSD), assinou por baixo: “Concordo.”
Em 2011, depois de um crescente interesse pelo caso por parte da imprensa, onde se apresentava Portugal como exemplo de um país onde continuava por reabilitar o nome de alguém que tinha sido vítima de segregação religiosa e anti-semita, a neta de Barros Basto apresentou mais uma petição à Assembleia da República. Em Fevereiro de 2012, recebeu o parecer favorável da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e, em Junho do mesmo ano, uma decisão no mesmo sentido da Comissão de Defesa Nacional.
Depois de 75 anos, o Diário da República de 10 de Agosto de 2012 publicou uma resolução da Assembleia da República (n.º 119/2012) que “recomenda” ao Governo a “reabilitação” de Barros Basto e a “reintegração” no Exército do capitão de infantaria, alvo de “segregação político-religiosa no ano de 1937”. Perguntámos ao Ministério da Defesa se a reintegração de Barros Basto no Exército (“em categoria nunca inferior àquela a que o militar em causa teria direito se sobre o mesmo não tivesse sido instaurado o processo que levou ao seu afastamento”) já tinha sido efectivada, mas até ao fecho desta edição não recebemos resposta.
O que significa que, a primeira parte da resolução, a reabilitação pelo menos em termos morais, está cumprida. Mas passados dois anos, a segunda parte, a reintegração, permanece por cumprir. Isabel Ferreira Lopes está optimista: “O assunto da reintegração do meu avô será concretizado em breve.” É como se estivéssemos perante uma gaveta com a chave na ranhura, que ainda ninguém rodou para fechar.