Das redes sociais para as galerias de arte

Antes da Internet as fotografias dos amadores ficavam na gaveta. Agora vão parar às redes sociais. Duas exposições em Lisboa que mostram uma série de fotógrafos que se deram a conhecer na Internet.

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Existe um dilúvio de auto-expressão na Internet. Fotos aleatórias de gatos, bebés, refeições, festas, auto-retratos, edifícios, concertos, cemitérios ou nuvens. Tudo o que a nossa imaginação contempla e muito mais. Aparentemente, lixo. Carradas de lixo. Ou, em alguns casos, arte.  

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Existe um dilúvio de auto-expressão na Internet. Fotos aleatórias de gatos, bebés, refeições, festas, auto-retratos, edifícios, concertos, cemitérios ou nuvens. Tudo o que a nossa imaginação contempla e muito mais. Aparentemente, lixo. Carradas de lixo. Ou, em alguns casos, arte.  

No caso das redes sociais as fotos tornaram-se omnipresentes. Não basta escrever que se esteve num acontecimento. É preciso mostrar que se esteve lá. Até o Facebook, festejado no início como um espaço de recuperação da escrita, foi sendo progressivamente contaminado por imagens. A comunicação visual tornou-se ubíqua.

Não vale a pena romantizar. Claro que não basta tirar uma, duas ou três excelentes fotos para alguém se afirmar artista. Ser artista é um trajecto, implica um historial, passar por processos de legitimação, ser reconhecido por uma comunidade.

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Retrato de Ana Sampaio Barros

Mas a Internet veio baralhar a forma como se cria, difunde, valida e consome arte, com consequências ainda por estimar. No caso da fotografia isso é evidente, com o surgimento de redes sociais e plataformas como o Instagram, Pinterest, Ello, Flickr, Tumblr e muitas outras.

Neste momento estão patentes duas exposições em Lisboa que mostram a permeabilidade e a linha divisória ténue entre fotógrafos profissionais e alguns amadores. Na Pequena Galeria (Av. 24 de Julho, 4c), está a mostra A Fotografia nas Redes Sociais (até 21 Novembro), com fotografias de Fernanda Neves, Luísa Cortesão, Rita Cordeiro e Diane Gazeau. E no espaço da Carpem Diem (Rua de O Século, 79), está uma mostra, até 20 de Dezembro, de doze fotógrafos, todos eles oriundos do Instagram, numa curadoria da Onframe.

A maior parte dos representados nestas exposições possuem contas no Instagram, são provenientes de campos criativos, têm milhares de seguidores de todo o mundo e vendo os seus perfis percebe-se que têm um estilo próprio. Existe uma intencionalidade no seu olhar, seja na escolha dos temas ou na forma como os tratam. É o caso da arquitecta Ana Sampaio Barros, de 29 anos, a residir em Viena de Áustria, que aderiu ao Instagram há quatro anos e tem 365 mil seguidores.

“No início o Instagram funcionou como diversão, até porque no último ano da faculdade tinha uma cadeira de fotografia e sempre me interessou”, afirma. “Mas a partir de determinada altura fui sugerida pelo próprio Instagram como exemplo a seguir e cresci muito rápido em termos de seguidores.” E com isso surgiram oportunidades de trabalho. “Hoje já não sou arquitecta a tempo inteiro”, admite, “e faço também trabalho com fotografia, nomeadamente com marcas para publicidade e agências de turismo que me convidam para viajar.”

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Retrato de José Miguel

O designer José Miguel, de 42 anos, estava desligado da fotografia há alguns anos, tendo o Instagram funcionado como “fonte de inspiração” para voltar a ela: “todos os dias vejo fotos magníficas de outros e obter resposta às fotos que eu vou colocando também acaba por ser motivador. Puxa imenso por nós.”

“Os telemóveis já serem uma boa máquina fotográfica foi também determinante para voltar a fotografar”, afirma ele. Apenas utiliza o iPhone, tem 35 mil seguidores e uma identidade fotográfica reconhecível, algo que pode, ou não, ser vivido como pressão adicional, porque a partir de determinada altura existe uma expectativa para cumprir.

“Depende da forma como se olha para o assunto”, reflecte. “A minha relação inicial com o Instagram foi similar a tantas outras pessoas. Começa-se a experimentar e vai-se adquirindo um cunho pessoal. Mas não me preocupo muito em gerir as expectativas. Não sinto obrigatoriedade de tirar fotos desta ou daquela forma.  Isto não é um trabalho. É uma actividade lúdica. Se estiver três ou quatro dias sem pôr fotos não me importo. Ainda hoje coloquei uma foto que vai ter menos impacto que o habitual, mas é a que me apetece pôr.”

 Para a também designer gráfica Rita Cordeiro, com 31 mil seguidores, o acto de fotografar é encarado como um exercício um pouco egoísta, embora reconheça que gosta de perceber que há pessoas que se “identificam com as minhas fotos e entendem o meu olhar.” Para ela a imagem está muito ligada à música e isso é perceptível na sua galeria do Instagram, com referências dessa área. “Existem pessoas que se revêem nas fotos por causa da música, outras pela imagem e outras pelo meu olhar mais total.”

Do que todos têm percepção é que a sua relação com o espaço circundante, as cidades onde vivem, os lugares e as pessoas que se atravessam com eles, se transformou. Começaram a estar mais atentos e detalhes antes negligenciados, começaram a ser assinalados.

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Retrato de Rita Cordeiro

“Claro que a minha actividade no Instagram afectou a minha relação com o quotidiano”, concorda a francesa Diane Gazeau, de 49 anos, a viver em Portugal há muito. Há 18 anos frequentou o curso de fotografia do AR.CO e nunca mais se desligou da fotografia. “A máquina acompanha-me sempre nas viagens”, expõe ela. “Publico as fotos no momento, mas ao mesmo tempo constituem também memórias de coisas e pessoas.” Já Rita Cordeiro expõe que “o Instagram faz com que tenhamos uma actividade regular e estejamos atentos aos detalhes e é óptimo conhecer pessoas, o que as move, o seu dia-a-dia, os seus pontos de vista”, a partir do seu perfil.

Para Ana Sampaio Barros o domingo é dia sagrado. “Faça sol ou frio, procuro motivos fotográficos e estou atenta ao que me rodeia.” Às vezes persegue objectivos concretos. Foi o que aconteceu no último mês fazendo uma viagem pela Áustria, “para mostrar a sua arquitectura”, afirma. “Nas fotos falava sobre os projectos e os arquitectos o que acabou por promover a arquitectura austríaca.”

Quem ganhou outra motivação “para ir a alguns locais passear”, com o objectivo de os fotografar, foi José Miguel. No seu caso, e no da maior parte dos envolvidos na exposição da Carpem Diem, utiliza apenas o iPhone, tirando sempre várias fotos do mesmo motivo. “A disseminação da tecnologia permite que hoje qualquer pessoa o possa fazer”.

Nunca existiram tantas câmaras no mundo. Há um fenómeno de massificação e disseminação, com várias implicações. Para os críticos do digital, dos filtros e do Instagram, isso contribui para uma certa banalização. Há uma padronização média das fotos, tornaram-se genéricas, parecem todas iguais, são falseadas, preguiçosas e pouco autênticas, argumentam. 

Toda a arte é uma construção, argumentam os defensores, para quem hoje se assiste a um aprofundamento e a uma diversidade de olhares que só pode ser vista como positiva. A hierarquia entre profissionais e amadores atenuou-se, o que deve constituir um desafio de superação para os primeiros, defendem.

A democratização, essa imersão contínua de fotos, tanto pode estimular como uniformizar. A quantidade substitui-se à qualidade, dizem os críticos. A quantidade contribui para fazer sobressair quem realmente tem qualidade, dizem os defensores, argumentando que fotografar em vez de apenas consumir as fotos de outros é libertador e contribuiu para apurar o sentido crítico. “Depende de como se utiliza a tecnologia”, reflecte José Miguel, “mas de forma geral ela tende a ser benéfica, levando ao aprofundamento do olhar e é também um meio de diversão.”

“Há imensa gente que não é fotógrafa profissional e descobriu que tem imenso talento e isso é mágico”, argumenta Ana Sampaio Barros, enquanto Diane Gazeau reflecte que a facilitação do acto de fotografar trouxe benefícios evidentes. “Há um século atrás era apanágio de privilegiados. Hoje está ao alcance de todos. Mas o olhar de cada um continua a ser único. Há bons fotógrafos profissionais, mas também amadores que saíram do anonimato.”

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Retrato de Diane Gazeau

Nenhum se auto-intitula artista – “não sei se chamo arte ao que faço, não sei mesmo”, diz José Miguel – mas todos afirmam que gostavam de manter uma relação mais profissionalizante com a fotografia.

No Instagram são obrigados a fazer escolhas, a editar, a ajustar cores ou a afinar contrastes. Numa sala escura, num processo analógico, não é diferente. Os princípios são similares – proporção, padrão, ritmo. Mas o Instagram é maciço.

É precisamente essa dimensão que atraiu o artista americano Richard Prince, que expôs em Setembro e Outubro, na galeria Gagosian, em Nova Iorque, os seus últimos trabalhos, reciclagens de fotografias de Instagram, problematizando a comunicação visual dos nossos dias a partir da obsessão no presente pela partilha de fotos. “O Instagram parece ter sido pensado para alguém como eu. É como carregar uma espécie de galeria no bolso”, afirmou ele.

Hoje toda a gente parece querer capturar um momento, trabalhando cores, composição e forma – ou seja, o início do processo artístico. A esmagadora maioria do que se vê no Instagram nunca será considerado arte, pelo menos de forma consensual, embora os limites do que é ou não arte estejam sempre em discussão.

Mas uma coisa é certa. Existe quem tenha aprofundado a sua relação com a fotografia através de plataformas como essa. A prática regular ajudou-os a definir a forma como olham o mundo e se movem nele. Através do refinamento da sua linguagem tomaram consciência que tinham uma certa forma de ver a experiência do dia-a-dia e que a sua colecção de fotos, afinal, tinha razão de existir.