O PCP e a queda do muro de Berlim
Na óptica do PCP, a queda do muro de Berlim só teve uma consequência: permitiu o avanço de um capitalismo imperialista que põe em causa “a própria existência da Humanidade”.
Nesse texto identificou três reunificações diferentes que estariam em curso naquela época: a reunificação alemã, a reunificação europeia e a reunificação da própria língua. Atribuía especial importância a esta última, já que a considerava condição imprescindível para a superação de um desentendimento tão radical que obrigava à utilização daquilo que George Orwell designava como uma “tradução ideológica”. Noções como Democracia ou Direitos do Homem remetiam para representações completamente distintas, se não mesmo antagónicas, consoante eram utilizadas de um ou do outro lado da fronteira política que separava o Ocidente do Leste europeu. Esta reunificação da língua, operada naturalmente no plano conceptual, auspiciava uma nova era no debate democrático em toda a Europa. Claro que essa reunificação só se pôde realizar devido à derrota histórica do modelo comunista imposto autoritariamente aos povos do Leste do continente. Uma das principais características das sociedades sob tutela comunista consistia precisamente na separação absoluta entre a representação linguística das coisas e a realidade. Isso deu mesmo origem a imaginativas manifestações de humor popular. Com a queda do muro, que no fundo significa o triunfo da aspiração da liberdade, tudo isso mudou.
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Nesse texto identificou três reunificações diferentes que estariam em curso naquela época: a reunificação alemã, a reunificação europeia e a reunificação da própria língua. Atribuía especial importância a esta última, já que a considerava condição imprescindível para a superação de um desentendimento tão radical que obrigava à utilização daquilo que George Orwell designava como uma “tradução ideológica”. Noções como Democracia ou Direitos do Homem remetiam para representações completamente distintas, se não mesmo antagónicas, consoante eram utilizadas de um ou do outro lado da fronteira política que separava o Ocidente do Leste europeu. Esta reunificação da língua, operada naturalmente no plano conceptual, auspiciava uma nova era no debate democrático em toda a Europa. Claro que essa reunificação só se pôde realizar devido à derrota histórica do modelo comunista imposto autoritariamente aos povos do Leste do continente. Uma das principais características das sociedades sob tutela comunista consistia precisamente na separação absoluta entre a representação linguística das coisas e a realidade. Isso deu mesmo origem a imaginativas manifestações de humor popular. Com a queda do muro, que no fundo significa o triunfo da aspiração da liberdade, tudo isso mudou.
Não deixa por isso mesmo de ser especialmente interessante a leitura, a todos os títulos recomendável, da nota que a propósito das comemorações dos 25 anos deste acontecimento foi emitida pelo PCP e publicada no seu órgão oficial, o Avante. Esse texto é simultaneamente uma inquietante peça de museu e uma expressão de uma interpretação delirante da realidade contemporânea. Vale a pena analisá-lo com algum pormenor. Logo no começo enunciam-se com clareza os destinatários: “as forças da reacção e da social-democracia”, esses velhos inimigos do povo devidamente amalgamados. São acusados de andar por aí a festejar a anexação da antiga RDA pela República Federal Alemã, acontecimento que terá tido como único efeito a emergência de uma grande Alemanha imperialista. A seguir vem o elogio da saudosa RDA, pátria de notáveis realizações nos planos económico, social e cultural, grande promotora da paz no mundo, lídima representante do socialismo científico na Terra. Não se ficando por aqui, os comunistas portugueses chegam ao ponto de reinterpretar a vontade dos manifestantes de Leipzig: saíram estes para as ruas, obviamente, com o único objectivo de reclamar o aperfeiçoamento do modelo socialista, não lhes passando pela cabeça a ideia da destruição de tão ditosa nação. Não fosse o sinistro imperialismo ter conseguido introduzir uma perversa dinâmica contra-revolucionária e outra teria sido a evolução dos acontecimentos, com reforço desse paradigma de felicidade colectiva que representava o comunismo na sua versão germânica. Imagina-se que o principal agente desse mesmo imperialismo foi, nada mais, nada menos, que o então Secretário-Geral do Partido Comunista Soviético, o renegado Gorbatchov. É que convém lembrar que tudo começou a ruir quando este, perante a estupefacção popular, enfrentou e humilhou Honecker na própria cidade de Berlim. A seguir, o pérfido Helmut Kohl ? violentando as genuínas aspirações dos alemães de Leste que fugiam em massa para o Ocidente com a intenção de se transformarem em novos missionários da doutrina comunista ? decidiu arrogantemente anexar a pobre RDA. Fê-lo à força, como não poderia deixar de ser. Depois promoveu a realização de eleições, certamente manipuladas, já que o seu partido, e os vis sociais-democratas, obtiveram em conjunto mais de 80% dos votos.
O Partido Comunista Português, não se limitando a este trabalho de reconstrução da verdade histórica, lamenta ainda o estado a que chegou presentemente o território da ex-RDA, devido “à destruição forçada das realizações económicas, sociais e culturais de mais de quarenta anos de poder dos trabalhadores". Um verdadeiro retrocesso civilizacional. Da responsabilidade do imperialismo americano, da agressiva NATO e de uma União Europeia que, a partir do Tratado de Maastricht, tem vindo a afirmar “sem lugar para dúvidas a sua natureza de bloco imperialista dando um novo salto nas suas políticas neoliberais, federalistas e militaristas”.
Na óptica do PCP, a queda do muro de Berlim só teve uma consequência: permitiu o avanço de um capitalismo imperialista que põe em causa “a própria existência da Humanidade”. Foi por isso mesmo um acontecimento nefasto, imposto a um povo que apesar de tudo não impedirá a marcha inevitável da História rumo a um modelo de sociedade de natureza comunista. Será apenas uma questão de tempo, como ensinam todas as interpretações dogmáticas do grande pensador que foi, sem dúvida, Karl Marx.
André Fontaine não imaginaria em 1990 que no extremo ocidental da Europa, vinte e quatro anos depois, seria possível a emissão de uma nota oficial desta natureza. Nem ele, nem praticamente ninguém. Infelizmente, este texto diz tudo acerca da estrutura mental do PCP. Por isso mesmo recomendo a leitura semanal do Avante àqueles que andam muito entusiasmados com a perspectiva de trazer o PCP para o chamado “arco da governação”. Não é que não fosse desejável, o problema é que é manifestamente impossível. Por uma razão muito simples: o PCP não é aquilo que alguns bem-intencionados e algo ingénuos socialistas gostariam que ele fosse, mas sim aquilo que os comunistas determinam que ele seja. E o que ele é nem sequer se esconde. O Avante, desse ponto de vista, é de uma enorme transparência doutrinária. Esse mérito ninguém tira aos comunistas portugueses – não andam a enganar ninguém.
Eurodeputado do PS