As jóias que vinham na carreira
A Carreira da Índia não trouxe apenas especiarias. Trouxe belíssimas jóias. Duas centenas podem ser vistas no Museu do Oriente, em Lisboa.
A principal dificuldade provém do próprio ponto de partida: “Dar a conhecer um património artístico único, de fusão, entre a Europa e o Oriente”, afirma ao PÚBLICO. “É muito difícil explicar porque são peças que não são óbvias do ponto de vista estilístico... É preciso fazer muitas perguntas.”
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A principal dificuldade provém do próprio ponto de partida: “Dar a conhecer um património artístico único, de fusão, entre a Europa e o Oriente”, afirma ao PÚBLICO. “É muito difícil explicar porque são peças que não são óbvias do ponto de vista estilístico... É preciso fazer muitas perguntas.”
A Carreira da Índia começou logo a seguir à descoberta do caminho marítimo para a Índia, em 1498, e durou até ao século XIX. Uma vez por ano, fazia a ligação entre Lisboa e os portos do Oriente (Goa, Cochim e por vezes Malaca). “Apenas quatro anos após o feito de Vasco da Gama, Lisboa via com os seus olhos até que ponto eram verdadeiras as descrições de Marco Polo, com as naus trazendo até à Europa, não só as cobiçadas especiarias, mas todo um mundo de mercadorias e objectos raros, muitos nunca antes vistos”, escreve no catálogo Nuno Vassallo e Silva, coordenador científico da exposição e director-geral do Património Cultural. “Nenhuma terá contudo marcado mais o imaginário colectivo, mesmo que raríssimos as tivessem conhecido de perto, do que as pérolas, as gemas e outras mercadorias valiosas.”
O universo das jóias é aqui ampliado para a ourivesaria. Se temos colares, pendentes, pulseiras, também há adagas, taças, caixas.... A exposição começa com o núcleo “Os portugueses e as jóias da Ásia”, onde, entre outros objectos, se podem ver retractos (sobretudo reproduções) de pessoas ligadas à corte portuguesa, porque, “muitas vezes, o único testemunho que fica das peças é o testemunho visual”, explica Hugo Miguel Crespo. “A joalharia é das coisas mais difíceis de estudar do ponto de vista histórico, porque com o passar das modas as jóias são alteradas e as gemas relapidadas.” Mas através das imagens, fica-se com “uma ideia do tipo de produtos, de gemas, que pela mão dos portugueses começaram a chegar à Europa numa quantidade antes impensável.” Por exemplo, o quadro de Catarina de Bragança (1638-1705), rainha de Inglaterra, da autoria de John Riley. Podemos ver uma fiada de pérolas brancas, grandes e calibradas, no seu pescoço, brincos de pérolas pêra, pérolas a adornar o cabelo. Não é por acaso: o dote pago por Portugal pelo seu casamento foi a cidade de Bombaim, que era, lembra o comissário, o principal centro de irradiação das pérolas. “As pérolas eram as pedras mais valiosas do planeta no século XVI, XVII... Esta fiada valia tanto ou mais que uma rua inteira ou mesmo um bairro de Lisboa.”
Percorrendo a exposição é possível ver de que forma os modelos circularam em ambas as direcções. O comissário aponta para um pequeno cofre francês do século XVI em couro e ferro. “Os portugueses levavam este tipo de cofres para o Oriente e depois eram copiados com os materiais autóctones”. É assim que mesmo ao seu lado está um outro produzido em Guzarate, no Norte da Índia, em tartaruga e com montagens em prata, muito provavelmente feitas em Goa, também no século XVI. E seguem-se várias variações. Muitas destas peças têm funções civis, outras religiosas. “Sempre que se erigia uma capela tinha de se levar uma parafernália de objectos, que serviam como modelos para outros objectos que depois são feitos por artistas locais.”
A réplica é mais um factor que por vezes contruibui para complicar a geografia da peça. E aqui, como ainda agora acontece, os chineses eram exímios. “Copiam com uma perfeição absolutamente extraordinária”, afirma Hugo Miguel Crespo. “Têm uma cultura de produção para exportação desde o período medieval, até antes, com a Rota da Seda. Têm que responder aos mercados, ao cliente.” Já os indianos denunciavam mais a sua origem.
Algumas peças obrigaram o comissário a usar o microscópio electrónico de varrimento, que “permite ampliações muito grandes e portanto dá para ver o tipo de riscos e que mão é que os produziu”. “Se a peça não nos diz imediatamente que é goesa, ou chinesa ou filipina temos de fazer o interrogatório científico, técnico, e isso nunca foi feito para estas peças de cariz luso-oriental e muito raramente foi feito para peças de ourivesaria europeia, portuguesa.” Crespo aponta para uma santa mártire em prata. “O tipo de cinzelado visto microscopicmante é igual, ou muito semelhante, ao de outras peças indianas...”. Esta peça “absolutamente única” tem outras formas de comunicar a sua origem. “Se observarmos bem, o tipo de construção facial, o tipo de orelhas, remete para os ícones hindus. Encontro esculturas em metal em Goa com o mesmo tipo de figuração, com o mesmo tipo de articulação dos braços. Esta peça só pode ter sido produzida em Goa.”
Goa tornou-se “um verdadeiro empório de comércio e produção de bens de luxo a uma escala mundial”, escreve Vassallo e Silva. Esta “globalização” vai fazer com que algumas peças passem por várias mãos até assumirem a forma final – e vai também baralhar os historiadores sobre as origens de muitas das peças que chegaram até nós. Em muitos casos, é preciso continuar a perguntar: de onde vens?