Na rua da Legionella desde o fim-de-semana que só se toma “banho à gato”
Moradores da Rua da Liberdade, em Vila Franca de Xira, esgotaram água engarrafada do supermercado da rua. Bactéria alterou outros hábitos da freguesia do Forte da Casa.
Cármen limpa as gotas da chuva da cara e ironiza. “Faz de conta que é o banho que não podemos tomar”. Apesar de a Direcção-Geral da Saúde ter explicado que a bactéria só se transmite pela inalação de gotículas de água, aqui, na “rua da Legionella”, como brincam os moradores pela grande concentração do número de casos, poucos têm arriscado ir a banhos.
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Cármen limpa as gotas da chuva da cara e ironiza. “Faz de conta que é o banho que não podemos tomar”. Apesar de a Direcção-Geral da Saúde ter explicado que a bactéria só se transmite pela inalação de gotículas de água, aqui, na “rua da Legionella”, como brincam os moradores pela grande concentração do número de casos, poucos têm arriscado ir a banhos.
Nas trocas de palavras à medida que se sobe a rua, muitos desvalorizam o problema de saúde pública, ao mesmo tempo que apontam para as janelas dos vizinhos que estão internados. Não há números oficiais isolados por ruas, mas por aqui haverá pelo menos dez a vinte casos, distribuídos entre a Rua da Liberdade e a Rua 25 de Abril. Os que se cruzam na rua asseguram que ainda cozinham com água da torneira e lavam os dentes também com água corrente. E tomar banho? É aqui que os receios vêm à flor da pele de forma mais generalizada, até porque o frio não convida a banhos que não sejam de água quente, que gera os vapores mais temidos.
Fernanda Costa está com a filha na Croissanteria Mendes e a família já pondera mudar-se temporariamente para casa da avó, nos Olivais, visto que os mais de 230 casos identificados no país ao final da tarde desta segunda-feira têm todos uma ligação ao concelho de Vila Franca de Xira, de que faz parte a freguesia do Forte da Casa. “Nós ainda nos vamos lavando 'à gato', agora os miúdos não deixo mesmo”, conta ao PÚBLICO Fernanda. E mesmo Carla, que trabalha poucas horas por dia neste café, já se deu conta dos comportamentos diferentes. “Há clientes habituais que hoje não vieram ou então não pedem café nem copo de água, querem tudo em garrafa”, explica.
Mais acima, no café Luís, “os clientes procuram mais o copinho de vinho”, por isso não há alterações a registar. Mas a conversa da Legionella ocupou a maior parte da troca de palavras entre o dono, Luís Silva, e o cliente Júlio Matos que, “pelo sim pelo não”, mantém-se longe do chuveiro e retirou-lhe o "telefone", que permitia ter um jacto com mais pressão mas que aumentava o risco de as gotículas de água acabarem inadvertidamente no nariz.
A corrida à água engarrafada abriu novas janelas de negócio no supermercado no topo da rua. As prateleiras destinadas a este produto estão vazias e veio um carregamento extra a meio da tarde, para dar resposta à procura anormalmente elevada. Mariana não espera que o camião descarregue e, para evitar os sumos, dá uma oportunidade às águas gaseificadas. E para o banho? “Volta-se a dar um jeito como antigamente, com alguidares. Como é que havia de ser menina?”
Também na Farmácia Romeiras a proprietária, Filomena Correia, passou a ter clientes interessados em comprar máscaras, e “o telefone não pára de tocar”, com pessoas que procuram junto dos farmacêuticos de confiança conhecer os sintomas da doença e o momento ao certo em que se devem dirigir a um hospital. Filomena Correia explica que, apesar de saber que a água pode ser bebida com segurança, passou a preferir também as garrafas. “Já sabia muito a cloro, mas agora, desde que reforçaram no fim-de-semana a desinfecção, que o que sai da torneira cheira mesmo a lixívia”, comenta.
As autoridades de saúde ainda procuram a origem do foco deste surto que, ao princípio da noite desta segunda-feira, já somava cinco vítimas mortais. Como a doença tem um período de incubação de dois a dez dias, é difícil perceber quando terá começado a Legionella a infectar pessoas, mas tudo aponta para que tenha sido antes de 18 de Outubro – último dia em que um dos infectados esteve na zona de Vila Franca de Xira. Mesmo assim, na Rua da Liberdade o dedo é quase sempre apontado numa única direcção: a do complexo industrial que fica ali perto e que alberga várias fábricas.
Há aqui uma fábrica de adubos que está fechada desde sábado, assim como todas as que tinham condutas de refrigeração. O fumo ainda sai das chaminés do complexo aonde o director-geral da Saúde, Francisco George, veio dar uma palestra, por sua iniciativa, sobre a Legionella. O encerramento da fábrica aconteceu por iniciativa do administrador da ADP Fertilizantes, depois de saber que um dos trabalhadores estava infectado pela bactéria, o que gerou consternação e medo entre todos os que aqui trabalham. João Paulo Cabral diz que os casos entre os colaboradores “são meia dúzia” e que as análises que fizeram não apontam para que o foco esteja aqui. “Temos boas indicações sobre o estado das nossas águas, mas outra coisa são análises certificadas”, explicou, adiantando que só quando forem conhecido esses resultados haverá novas decisões.
Mesmo assim, perante quase 200 pessoas na cantina da fábrica de adubos, Francisco George quis prestar pessoalmente todos os esclarecimentos e assegurar que haverá “transparência”, assim que as autoridades conhecerem a origem do surto. “A infecção depende do doente, da sua resistência, e o tratamento é feito com antibióticos especiais e muitos deles são administrados pela veia, e por isso o tratamento é hospitalar”, começou por explicar o director-geral da Saúde que, perante uma dúvida colocada por uma trabalhadora sobre a forma de contágio, repetiu que “a doença só se transmite inalando, respirando e inspirando ar com gotículas”. Abriu-se espaço para mais dúvidas. Dos contágios dos ginásios aos aerossóis feitos em casa, George deu resposta a tudo. Menos à questão da origem do surto, que prometeu continuar a procurar, ainda que admita que nunca venha a ser descoberta.
Entre 2004 e 2013 foram internadas 1188 pessoas com a Doença do Legionário em Portugal, de acordo com um relatório da Direcção-Geral de Saúde (DGS). “Estamos numa altura em que a Legionella aparece”, diz Graça Freitas, subdirectora-geral da Saúde, explicando ao PÚBLICO que “Outubro e Novembro” são meses de Legionella. O que é uma novidade é a dimensão do actual surto.
Os inquéritos às pessoas que apareceram doentes no Barreiro, no Porto e em Castelo Branco têm mostrado que os doentes estiveram na região de Vila Franca. Mas para se confirmar esta ligação, será preciso fazer uma análise laboratorial, explicou Graça Freitas. Só assim se poderá verificar se as bactérias têm todas a mesma origem.
Até ao final do dia desta segunda-feira, os 233 casos do actual surto incluíam 38 doentes internados nos cuidados intensivos, segundo o comunicado de emitido nesta segunda-feira pela DGS. A região de Lisboa e Vale do Tejo registava 228 casos, a região Centro três e a região Norte dois. As freguesias de Póvoa de Santa Iria, no concelho de Loures, e Vialonga e Forte da Casa, no concelho de Vila Franca de Xira, são o epicentro do surto
"Podemos dizer que a questão está circunscrita, e isso é importante”, disse nesta segunda-feira o ministro da Saúde, Paulo Macedo, durante uma visita ao hospital de Vila Franca de Xira. “Temos uma desaceleração dos casos. Mas vamos ter mais casos nos próximos dias, porque estamos a tratar pessoas que ainda têm testes pendentes e que podem revelar-se positivos", explicou à agência Lusa.
Segundo a DGS, foram realizadas mais colheitas ao domicílio e inquéritos epidemiológicos para se encontrar a origem do surto. Além disso, foram tomadas medidas para evitar a exposição de mais pessoas a este agente patogénico: aumentou-se a quantidade de cloro na água pública, fecharam-se fontes e encerraram-se torres de refrigeração.
Os aerossóis, as tais minúsculas gotículas de água suspensas no ar, são libertados por aquelas torres e podem ser inaladas pelas pessoas. Se, por acaso, contiverem a bactéria, há o perigo de uma infecção. Graça Freitas afirma que o risco mais elevado será para as pessoas que estão a uma distância de “um a dois quilómetros” destas torres.
É preciso uma certa quantidade de bactérias para causar uma infecção, mas Graça Freitas explica que o estado de saúde de cada um também é importante. Os fumadores ou as pessoas com o sistema imunitário deprimido estão mais vulneráveis face à Legionella. De resto, as crianças e os jovens até aos 20 anos raramente desenvolvem a doença, que afecta mais os homens do que as mulheres. Os sintomas passam por febre, arrepios, tosse sem expectoração, dores na cabeça e no corpo.
Nesta segunda-feira, o Presidente da República disse “lamentar as mortes que ocorreram” devido à doença e dirigiu “uma palavra de solidariedade em relação às famílias”. Cavaco Silva falava no final de uma visita a Estremoz depois de questionado pelos jornalistas sobre o assunto. O chefe de Estado pediu confiança “nas autoridades e em todos os que trabalham na área sanitária”, declarando que estes estão a “dar o seu melhor para conseguir apoiar, ajudar, tratar aqueles que estão afectados”.