“Ninguém vai sozinho para a última morada”

Uma irmandade de Lisboa acompanhou, em menos de dez anos, 1257 funerais de corpos não reclamados. Quer que todos tenham um funeral católico. E se forem ateus? Os irmãos acreditam que os mortos não se zangam.

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Há casos em que nada se consegue apurar. E aí, uma das voluntárias da irmandade chega a inventar nomes. “Esta é a Maria. Ou esta é a Ana. Como terá sido a vida da Ana?” Enquanto caminha entre a porta do cemitério e a cova imagina uma história de vida. É a maneira que tem de lidar com “isto” melhor.

“São 12 ou 13”, não mais, os que se oferecem para desempenhar esta tarefa, conta Pedro Vasconcelos, o irmão-provedor desta irmandade que muitos nem conhecem pelo nome, mas que já reconhecem se se diz que é “a irmandade que vai aos funerais”. Apenas 12 ou 13 (entre 150 irmãos) mal chegam, prossegue Pedro Vasconcelos. “Precisamos de mais irmãos para esta missão.” Aceita-se, por isso, quem se queira juntar ao grupo. Não é obrigatório ser-se católico, esclarece o segundo-irmão vice-provedor, António Balcão Reis.

Só este ano foram 86 funerais. Há dias em que há mais do que uma cerimónia. Já chegaram a ser 10 num dia só — porque estes funerais não acontecem ao ritmo das mortes, mas ao ritmo da conclusão dos processos que estas mortes implicam, como se verá.

Uma das tarefas, então, a que se propõe esta Irmandade da Misericórdia e de São Roque é “proporcionar um funeral cristão” a todos — se estes mortos que ninguém quis velar eram, em vida, católicos, ateus ou muçulmanos isso é impossível saber, admite Pedro Vasconcelos. Mas “a irmandade que vai aos funerais” está convicta de que os mortos não se vão zangar. “A ideia é: estas pessoas não têm irmãos de sangue, para acompanhá-los, mas têm irmãos de espírito, que somos nós, filhos do mesmo Deus, do mesmo Pai. Ninguém vai sozinho para a última morada”, diz Mário Pinto Coelho, primeiro-irmão, vice-provedor. É assim, pelo menos em Lisboa.

Por estes dias, contam, estes homens têm-se desdobrado em entrevistas por uma razão: gostavam que outros no país fizessem o que eles fazem na capital. Querem, de algum modo, dar o exemplo. Para que não haja tanta gente cujo corpo não é reclamado a não ter mais do que “um funeral frio”.

Abandonada num lar
Na capital, cabe à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) suportar a despesa dos funerais dos corpos não reclamados, noutros pontos do país é responsabilidade das câmaras municipais ou de outras entidades. Em Almada, por exemplo, estes funerais são realizados por ordem do Hospital Garcia de Orta, não tendo acompanhamento religioso. No concelho da margem Sul, foram realizados em 2013 quatro funerais de indivíduos de nacionalidade portuguesa: três com idades compreendidas entre os 50 e os 74 anos e um com idade desconhecida.

Em Loures, a câmara municipal, a Santa Casa local, uma agência funerária e a sociedade gestora do Hospital Beatriz Ângelo assinaram um protocolo para “assegurar os funerais a estes falecidos”, informa o município. São sepultados no Cemitério Municipal de Camarate. No ano passado houve um caso. Este ano outro: uma viúva, de 92 anos, que residia num lar do concelho, onde já havia sido abandonada pela família.

O Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) faz saber que não dispõe neste momento de estatísticas actualizadas sobre quantos corpos não reclamados contabilizou nos últimos anos em todo o país. No final de 2011, por exemplo, registava 53. Havia vários idosos, sem-abrigo, imigrantes, toxicodependentes. Tinham morrido na rua, nos lares, nos hospitais... 14 eram “desconhecidos”, não se conhecia a sua identidade — um homem entre os 40 e 60 anos, encontrado morto numa antiga fábrica do Montijo, uma mulher entre os 40 e os 50, atropelada no Porto, um pedaço de corpo encontrado na marina de Cascais...

Seja como for, os dados do INML são apenas uma parte desta realidade dos mortos que ninguém quer. Ali vão parar os corpos sujeitos a autópsia — em geral, resultantes de acidentes de viação, e outras mortes violentas. Se alguém morre de doença num hospital e o corpo não é reclamado, o caso não chega ao instituto. É o hospital e/ou a câmara local que resolvem.

Mandam as regras que os cadáveres não reclamados sejam mantidos durante 30 dias, até à inumação. Na prática, nem sempre é assim. Quando os corpos respeitam a cidadãos estrangeiros, por exemplo, é comum que as representações diplomáticas solicitem que se aguarde mais tempo, pela concretização de contactos nos países de origem junto das famílias dos defuntos. Muitas vezes esses contactos são estabelecidos. Mas nem sempre as famílias conseguem organizar-se para suportar a despesa de transporte do corpo e este acaba por ser mesmo sepultado em Portugal.

O email chega ao fim da tarde
Na cidade de Lisboa, a SCML escolhe periodicamente uma agência funerária para tratar destes funerais — cada um custa 332 euros e inclui, entre outras matérias, o depósito na igreja, missa, encomendação do corpo e acompanhamento sacerdotal. “Fornecemos ainda uma coroa de flores, acompanhada por um cartão de condolências da Administração da SCML”, comunica Paulo Rosa, assessor de imprensa.

Mas em 2004 a Irmandade da Misericórdia e de São Roque decidiu que era preciso dar “mais dignidade” a estes enterros, conta Vasconcelos. Falaram com a SCML e passaram a ser avisados sempre que um novo funeral se realiza. “Não acompanhámos o desgraçado que morreu no momento da morte. Não lhe demos a mão. Ele só nos aparece na parte final, às vezes um ano depois de ter morrido porque fica esse tempo todo nos frigoríficos. Agora, aquilo que nos consola espiritualmente é que acreditamos que ele esteja lá em cima a ver que finalmente, no último percurso que teve na terra, houve um grupo de pessoas que se preocuparam com ele, que o quiseram acompanhar. A nossa intenção é exclusivamente esta.”

Geralmente, a notícia de mais um funeral chega por email, ao final da tarde. A Santa Casa informa a irmandade: “Amanhã às tantas horas dois funerais no sítio tal.” Quando o email chega, tenta-se avaliar a disponibilidade dos voluntários. “São pessoas em idade activa ou em reforma activa”, diz Pinto Coelho. Por isso, nem sempre é fácil.

Encontrados, entre os 12 ou 13 que se dedicam a esta tarefa, os voluntários para o funeral do dia seguinte, o que se segue é isto: encontram-se no cemitério, acompanham o corpo, rezam e, no fim, colocam um ramo de flores sobre a urna — um ramo que levam, para além do da agência funerária, notam, para personalizar um bocadinho mais, explicam. Depois cada um segue a sua vida.

O perfil destes voluntários é variado. “Há tantos senhores como senhoras. Temos um casal que mora em Benfica, relativamente perto do cemitério e quando os funerais são em Benfica têm grande disponibilidade. Estão a duas ou três ruas”, explica Pinto Coelho. Há dois voluntários que perderam filhos — perder um filho ou um familiar próximo, pode ser uma das grandes motivações para as pessoas se oferecerem para esta missão, continua Vasconcelos.

Recém-nascidos
Desde 2004 a irmandade diz ter acompanhado “1257 funerais de pessoas sem família, sem abrigo, sem amor”, como descrevem, dos quais: 87 não identificados; 691 adultos do sexo masculino e 301 do sexo feminino; 56 nados-mortos; 36 crianças, das quais 6 este ano. “São sobretudo recém-nascidos. Algumas são abandonados nos hospitais — falecem, ninguém reclama. Ou a mãe dá um nome falso quando entra no hospital. Também já aconteceu aparecerem nos caixotes do lixo”, conta Pinto Coelho que reconhece, contudo, que a informação que têm sobre os corpos é pouca, muitas vezes nenhuma.

Lembra, contudo, um caso de uma família que morreu toda num acidente de automóvel, incluindo uma criança. Nenhum dos corpos foi reclamado.

Diz também que num ou noutro funeral aconteceu algo para o qual não tem explicação: “Nos funerais dos recém-nascidos e dos nados mortos às vezes aparece um casal. Fica ao longe, mas acompanha o funeral. Adivinha-se que talvez sejam os pais, que se calhar têm medo que os obriguem a pagar... talvez por isso se mantenham ao longe a assistir... mas não sabemos, isto somos nós a adivinhar.”

Na Irmandade, para além dos casos das crianças, há outras histórias que marcam: “Houve um senhor que morreu num quarto particular. Não tinha família. Mas no funeral apareceu um homem a acompanhar. Era o senhorio. Vinha preocupado porque não sabia o que fazer com os tarecos do inquilino, roupas, etc. Não sabia se devia chamar a polícia... Depois contou-nos. O homem que tinha morrido tinha uma filha, o senhorio procurou o número dela e encontrou. Ligou-lhe e disse: ‘Olhe, o seu pai morreu, vai ser enterrado no dia tal...’. E a filha disse: ‘Quero lá saber disso para alguma coisa!’”

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Há casos em que nada se consegue apurar. E aí, uma das voluntárias da irmandade chega a inventar nomes. “Esta é a Maria. Ou esta é a Ana. Como terá sido a vida da Ana?” Enquanto caminha entre a porta do cemitério e a cova imagina uma história de vida. É a maneira que tem de lidar com “isto” melhor.

“São 12 ou 13”, não mais, os que se oferecem para desempenhar esta tarefa, conta Pedro Vasconcelos, o irmão-provedor desta irmandade que muitos nem conhecem pelo nome, mas que já reconhecem se se diz que é “a irmandade que vai aos funerais”. Apenas 12 ou 13 (entre 150 irmãos) mal chegam, prossegue Pedro Vasconcelos. “Precisamos de mais irmãos para esta missão.” Aceita-se, por isso, quem se queira juntar ao grupo. Não é obrigatório ser-se católico, esclarece o segundo-irmão vice-provedor, António Balcão Reis.

Só este ano foram 86 funerais. Há dias em que há mais do que uma cerimónia. Já chegaram a ser 10 num dia só — porque estes funerais não acontecem ao ritmo das mortes, mas ao ritmo da conclusão dos processos que estas mortes implicam, como se verá.

Uma das tarefas, então, a que se propõe esta Irmandade da Misericórdia e de São Roque é “proporcionar um funeral cristão” a todos — se estes mortos que ninguém quis velar eram, em vida, católicos, ateus ou muçulmanos isso é impossível saber, admite Pedro Vasconcelos. Mas “a irmandade que vai aos funerais” está convicta de que os mortos não se vão zangar. “A ideia é: estas pessoas não têm irmãos de sangue, para acompanhá-los, mas têm irmãos de espírito, que somos nós, filhos do mesmo Deus, do mesmo Pai. Ninguém vai sozinho para a última morada”, diz Mário Pinto Coelho, primeiro-irmão, vice-provedor. É assim, pelo menos em Lisboa.

Por estes dias, contam, estes homens têm-se desdobrado em entrevistas por uma razão: gostavam que outros no país fizessem o que eles fazem na capital. Querem, de algum modo, dar o exemplo. Para que não haja tanta gente cujo corpo não é reclamado a não ter mais do que “um funeral frio”.

Abandonada num lar
Na capital, cabe à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) suportar a despesa dos funerais dos corpos não reclamados, noutros pontos do país é responsabilidade das câmaras municipais ou de outras entidades. Em Almada, por exemplo, estes funerais são realizados por ordem do Hospital Garcia de Orta, não tendo acompanhamento religioso. No concelho da margem Sul, foram realizados em 2013 quatro funerais de indivíduos de nacionalidade portuguesa: três com idades compreendidas entre os 50 e os 74 anos e um com idade desconhecida.

Em Loures, a câmara municipal, a Santa Casa local, uma agência funerária e a sociedade gestora do Hospital Beatriz Ângelo assinaram um protocolo para “assegurar os funerais a estes falecidos”, informa o município. São sepultados no Cemitério Municipal de Camarate. No ano passado houve um caso. Este ano outro: uma viúva, de 92 anos, que residia num lar do concelho, onde já havia sido abandonada pela família.

O Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) faz saber que não dispõe neste momento de estatísticas actualizadas sobre quantos corpos não reclamados contabilizou nos últimos anos em todo o país. No final de 2011, por exemplo, registava 53. Havia vários idosos, sem-abrigo, imigrantes, toxicodependentes. Tinham morrido na rua, nos lares, nos hospitais... 14 eram “desconhecidos”, não se conhecia a sua identidade — um homem entre os 40 e 60 anos, encontrado morto numa antiga fábrica do Montijo, uma mulher entre os 40 e os 50, atropelada no Porto, um pedaço de corpo encontrado na marina de Cascais...

Seja como for, os dados do INML são apenas uma parte desta realidade dos mortos que ninguém quer. Ali vão parar os corpos sujeitos a autópsia — em geral, resultantes de acidentes de viação, e outras mortes violentas. Se alguém morre de doença num hospital e o corpo não é reclamado, o caso não chega ao instituto. É o hospital e/ou a câmara local que resolvem.

Mandam as regras que os cadáveres não reclamados sejam mantidos durante 30 dias, até à inumação. Na prática, nem sempre é assim. Quando os corpos respeitam a cidadãos estrangeiros, por exemplo, é comum que as representações diplomáticas solicitem que se aguarde mais tempo, pela concretização de contactos nos países de origem junto das famílias dos defuntos. Muitas vezes esses contactos são estabelecidos. Mas nem sempre as famílias conseguem organizar-se para suportar a despesa de transporte do corpo e este acaba por ser mesmo sepultado em Portugal.

O email chega ao fim da tarde
Na cidade de Lisboa, a SCML escolhe periodicamente uma agência funerária para tratar destes funerais — cada um custa 332 euros e inclui, entre outras matérias, o depósito na igreja, missa, encomendação do corpo e acompanhamento sacerdotal. “Fornecemos ainda uma coroa de flores, acompanhada por um cartão de condolências da Administração da SCML”, comunica Paulo Rosa, assessor de imprensa.

Mas em 2004 a Irmandade da Misericórdia e de São Roque decidiu que era preciso dar “mais dignidade” a estes enterros, conta Vasconcelos. Falaram com a SCML e passaram a ser avisados sempre que um novo funeral se realiza. “Não acompanhámos o desgraçado que morreu no momento da morte. Não lhe demos a mão. Ele só nos aparece na parte final, às vezes um ano depois de ter morrido porque fica esse tempo todo nos frigoríficos. Agora, aquilo que nos consola espiritualmente é que acreditamos que ele esteja lá em cima a ver que finalmente, no último percurso que teve na terra, houve um grupo de pessoas que se preocuparam com ele, que o quiseram acompanhar. A nossa intenção é exclusivamente esta.”

Geralmente, a notícia de mais um funeral chega por email, ao final da tarde. A Santa Casa informa a irmandade: “Amanhã às tantas horas dois funerais no sítio tal.” Quando o email chega, tenta-se avaliar a disponibilidade dos voluntários. “São pessoas em idade activa ou em reforma activa”, diz Pinto Coelho. Por isso, nem sempre é fácil.

Encontrados, entre os 12 ou 13 que se dedicam a esta tarefa, os voluntários para o funeral do dia seguinte, o que se segue é isto: encontram-se no cemitério, acompanham o corpo, rezam e, no fim, colocam um ramo de flores sobre a urna — um ramo que levam, para além do da agência funerária, notam, para personalizar um bocadinho mais, explicam. Depois cada um segue a sua vida.

O perfil destes voluntários é variado. “Há tantos senhores como senhoras. Temos um casal que mora em Benfica, relativamente perto do cemitério e quando os funerais são em Benfica têm grande disponibilidade. Estão a duas ou três ruas”, explica Pinto Coelho. Há dois voluntários que perderam filhos — perder um filho ou um familiar próximo, pode ser uma das grandes motivações para as pessoas se oferecerem para esta missão, continua Vasconcelos.

Recém-nascidos
Desde 2004 a irmandade diz ter acompanhado “1257 funerais de pessoas sem família, sem abrigo, sem amor”, como descrevem, dos quais: 87 não identificados; 691 adultos do sexo masculino e 301 do sexo feminino; 56 nados-mortos; 36 crianças, das quais 6 este ano. “São sobretudo recém-nascidos. Algumas são abandonados nos hospitais — falecem, ninguém reclama. Ou a mãe dá um nome falso quando entra no hospital. Também já aconteceu aparecerem nos caixotes do lixo”, conta Pinto Coelho que reconhece, contudo, que a informação que têm sobre os corpos é pouca, muitas vezes nenhuma.

Lembra, contudo, um caso de uma família que morreu toda num acidente de automóvel, incluindo uma criança. Nenhum dos corpos foi reclamado.

Diz também que num ou noutro funeral aconteceu algo para o qual não tem explicação: “Nos funerais dos recém-nascidos e dos nados mortos às vezes aparece um casal. Fica ao longe, mas acompanha o funeral. Adivinha-se que talvez sejam os pais, que se calhar têm medo que os obriguem a pagar... talvez por isso se mantenham ao longe a assistir... mas não sabemos, isto somos nós a adivinhar.”

Na Irmandade, para além dos casos das crianças, há outras histórias que marcam: “Houve um senhor que morreu num quarto particular. Não tinha família. Mas no funeral apareceu um homem a acompanhar. Era o senhorio. Vinha preocupado porque não sabia o que fazer com os tarecos do inquilino, roupas, etc. Não sabia se devia chamar a polícia... Depois contou-nos. O homem que tinha morrido tinha uma filha, o senhorio procurou o número dela e encontrou. Ligou-lhe e disse: ‘Olhe, o seu pai morreu, vai ser enterrado no dia tal...’. E a filha disse: ‘Quero lá saber disso para alguma coisa!’”