Morreu Aurora Bernárdez, a viúva e herdeira da obra de Julio Cortázar
A esta tradutora de grandes autores mundiais deve-se a redescoberta da obra do escritor argentino a partir dos anos 90
Tinha 94 anos, e sofrera no dia anterior um AVC que lhe provocou uma queda, que viria a ser fatal.
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Tinha 94 anos, e sofrera no dia anterior um AVC que lhe provocou uma queda, que viria a ser fatal.
Apesar de se ter divorciado de Cortázar nos anos 70, Aurora é a figura feminina mais importante da vida do autor, sobretudo pelo empenho que colocou na recuperação da obra deste, num período em que esta se encontrava em risco de cair no esquecimento. Os jornais de Espanha e da América Latina que noticiaram a sua morte descrevem-na como uma mulher de grande cultura – foi tradutora de autores como Gustave Flaubert, William Falkner, Vladimir Nabokov, Albert Camus, Italo Calvino, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir – e de uma grande alegria.
Filha de pais espanhóis, Aurora Bernárdez nasceu já em Buenos Aires, onde estudou Literatura e onde conheceu Cortázar na década de 50 do século passado. O escritor Mario Vargas Llosa tornou-se amigo de ambos nessa altura, e descreve-os assim: “Nunca deixei de me maravilhar com o espectáculo que era ouvir conversar e ver Aurora e Julio juntos. Todos os outros pareciam estar a mais. Tudo o que diziam era inteligente, culto, divertido, vital. Muitas vezes pensei: ‘Não podem ser sempre assim. Estas conversas são ensaiadas em casa, para deslumbrar os interlocutores […]. A perfeita cumplicidade, a secreta inteligência que parecia uni-los era algo que eu admirava e invejava no casal, tanto quanto a sua simpatia, o seu compromisso para com a literatura e a generosidade para com todo o mundo, e sobretudo para os aprendizes como eu.”
Começaram a viver juntos em Paris, onde acabaram por casar, dedicando-se ao trabalho de tradução, com o qual ganhavam dinheiro suficiente para fazer viagens. Cortazar começou então a escrever Histórias de Cronópios e de Famas (1962), o ambicioso romance experimental Rayuela (1963, editado em Portugal pela Cavalo de Ferro com o título O Jogo do Mundo - Rayuela), a que se seguiria Todos os fogos o fogo (1966). Com o dinheiro ganho com as traduções conseguiram comprar um velho pavilhão na Place du Général Beuret, em Paris, que remodelaram, e onde Aurora viveu até à sua morte.
Uma viagem a Cuba nos anos 60, e a divergência dos olhares de ambos sobre a realidade da ilha (o entusiasmo dele contrastando com a desilusão dela), podem explicar o início do afastamento do casal, que acabaria por se separar em 1968. Cortázar viveu depois com a escritora lituana Ugné Karvelis, que era a sua agente na editora Gallimard, e mais tarde veio a casar com a escritora e fotógrafa canadiana Carol Dunlop, com quem escreveu Los autonautas de la cosmopista (1983). Mas a amizade com Aurora continuou sempre sólida e profunda, e depois da morte de Dunlop, em 1982, que deixou o escritor mergulhado numa profunda depressão, foi ela quem permaneceu ao lado de Cortázar durante os dois anos que ele ainda viveu.
Cortázar morreu a 12 de Fevereiro de 1984, de leucemia (embora haja outras teorias sobre as causas da morte, nomeadamente a de que teria sido infectado com o vírus da sida devido a uma transfusão de sangue, e que teria depois infectado Carol Dunlop) deixando Aurora como única herdeira da sua obra. A partir daí, com a ajuda da amiga e editora Carmen Balcells, a tradutora deu um novo fôlego ao trabalho de Cortázar. O El País recorda que foi ela que “com uma constância que se deve ao amor, nunca interrompido, retomou nos anos 90 a presença de Cortázar nas livrarias, reeditou livros que voltaram a ter vida, e resgatou do esquecimento manuscritos perdidos ou edições que já não se encontravam […].”
Entre as novas edições ligadas a Cortázar da responsabilidade de Aurora Bernárdez encontram-se a correspondência, em cinco volumes, e um dicionário biográfico ilustrado, Cortázar de la A a la Z. Un álbum biográfico, editado pela Alfaguara no início deste ano em que se comemorou o centenário do escritor. Em 2009, lançara com a mesma editora Papéis Inesperados, uma compilação de textos inéditos de Cortázar que encontrara num móvel da sua casa em Paris.