Willem Dafoe: "Não estou a interpretar o Pasolini mas um Pasolini"
Convidado do Lisbon & Estoril Film Festival, onde mostra o seu retrato de Pasolini dirigido por Abel Ferrara, o actor americano prefere colocar-se ao serviço dos realizadores com quem trabalha.
É uma das razões pelas quais Willem Dafoe, 59 anos, se entregou de corpo e alma a Pier Paolo Pasolini, o controverso escritor e cineasta italiano assassinado em 1975, no filme que Abel Ferrara lhe dedicou e que o Lisbon & Estoril Film Festival (LEFFEST), que começa na sexta-feira, mostra este fim-de-semana em ante-estreia nacional (domingo, 9, no Centro de Congressos do Estoril e segunda, 10, no cinema Monumental, sempre às 21h30). A mais recente colaboração do actor com o iconoclasta cineasta americano, depois de Histórias de Cabaret (2007) ou 4:44 Último Dia na Terra (2011), Pasolini é uma viagem onírica pelo último dia de vida do realizador de Teorema, ancorada na última entrevista que Pasolini deu em vida, onde se insurgia contra uma sociedade cada vez mais “do espectáculo” e da tecnologia, e fazia um apelo em favor da arte e da emoção.
Com Pasolini, sente-se que Dafoe está a expressar também aquilo que o faz perseguir uma das carreiras mais singulares do actual cinema americano, que o viu ser o Cristo da Última Tentação de Cristo de Martin Scorsese (1988) ou o psicólogo castrado do Anticristo de Lars von Trier (2009), passando pelo “vilão” em filmes de Walter Hill e William Friedkin ou nos Homem-Aranha de Sam Raimi. O fio condutor é a sua curiosidade e o seu fascínio pelo “factor” humano, que o leva a registar presenças em video-jogos (como Beyond: Two Souls) ou blockbusters hollywoodianos, ao mesmo tempo que roda regularmente com “autores” com quem já criou uma relação quase familiar (Ferrara, Von Trier, Paul Schrader, Wes Anderson).
Ao telefone de Nova Iorque, em antecipação à sua visita a Lisboa para acompanhar Pasolini como convidado do evento dirigido pelo produtor, exibidor e distribuidor Paulo Branco, Dafoe falou ao PÚBLICO sobre a sua carreira e as suas escolhas, à volta do filme que o traz ao LEFFEST – e da “luta por tudo o que é belo e humano” de que Pasolini falava.
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É uma das razões pelas quais Willem Dafoe, 59 anos, se entregou de corpo e alma a Pier Paolo Pasolini, o controverso escritor e cineasta italiano assassinado em 1975, no filme que Abel Ferrara lhe dedicou e que o Lisbon & Estoril Film Festival (LEFFEST), que começa na sexta-feira, mostra este fim-de-semana em ante-estreia nacional (domingo, 9, no Centro de Congressos do Estoril e segunda, 10, no cinema Monumental, sempre às 21h30). A mais recente colaboração do actor com o iconoclasta cineasta americano, depois de Histórias de Cabaret (2007) ou 4:44 Último Dia na Terra (2011), Pasolini é uma viagem onírica pelo último dia de vida do realizador de Teorema, ancorada na última entrevista que Pasolini deu em vida, onde se insurgia contra uma sociedade cada vez mais “do espectáculo” e da tecnologia, e fazia um apelo em favor da arte e da emoção.
Com Pasolini, sente-se que Dafoe está a expressar também aquilo que o faz perseguir uma das carreiras mais singulares do actual cinema americano, que o viu ser o Cristo da Última Tentação de Cristo de Martin Scorsese (1988) ou o psicólogo castrado do Anticristo de Lars von Trier (2009), passando pelo “vilão” em filmes de Walter Hill e William Friedkin ou nos Homem-Aranha de Sam Raimi. O fio condutor é a sua curiosidade e o seu fascínio pelo “factor” humano, que o leva a registar presenças em video-jogos (como Beyond: Two Souls) ou blockbusters hollywoodianos, ao mesmo tempo que roda regularmente com “autores” com quem já criou uma relação quase familiar (Ferrara, Von Trier, Paul Schrader, Wes Anderson).
Ao telefone de Nova Iorque, em antecipação à sua visita a Lisboa para acompanhar Pasolini como convidado do evento dirigido pelo produtor, exibidor e distribuidor Paulo Branco, Dafoe falou ao PÚBLICO sobre a sua carreira e as suas escolhas, à volta do filme que o traz ao LEFFEST – e da “luta por tudo o que é belo e humano” de que Pasolini falava.
A sensação, ao ver Pasolini, é que não está tanto a “representar” como a “encarnar” Pasolini...
Foi sempre essa a minha intenção. Uma coisa que sabíamos, antes mesmo de haver um guião, é que não queríamos fazer um filme biográfico, nem queríamos fazer uma imitação, nem que parecesse uma imitação. Mergulhei nos seus escritos, nos seus filmes, em tudo o que Pasolini era, e depois imaginei o seu estado de espírito nesses últimos dias. Como era muito prolífico, muito articulado e visionário, e tinha uma vida tão bem documentada, havia muito material com que trabalhar. Basicamente, tentei compreender o que ele estava a expressar, o que havia de consistente naquilo de que falava.
Sobretudo na cena em que ele dá a sua última entrevista, a ideia que passa é a de Pasolini como um visionário, alguém que estava para lá do seu tempo...
Todo o tom do que ele dizia era bastante inquieto e agitado, preocupado com as mudanças antropológicas na sociedade. Do seu ponto de vista, havia uma sensação de luta, uma desilusão com o modo como a sociedade se estava a desenvolver, em direcção a algo de anestesiante, que roubava às pessoas a sua humanidade, a sua identidade e a sua alegria. Penso que ele se sentia muito ameaçado e preocupado com isso, mas ao mesmo tempo abraçava a ideia de lutar contra isso com tudo o que tinha, através do seu trabalho. Gosto muito dessa entrevista. Não é apenas uma visão preocupada ou deprimida do caminho que a sociedade estava a tomar. É também um apelo às armas. Ele está verdadeiramente a dizer que vai continuar a lutar por tudo o que é belo e humano.
Pensa que muito do que Pasolini denunciava se tornou realidade?
Absolutamente [risos]. Acho que é uma das razões pelas quais faço filmes: eles reflectem a nossa experiência. Este não é um olhar nostálgico para alguém que ficou prisioneiro num certo período; Pasolini era certamente um produto do seu tempo mas, sem querer abusar da palavra, é-me bastante nítido que havia nele algo de profético. Ainda hoje leio essa entrevista e dá-me energia para continuar a tentar encontrar um modo de lutar contra o impulso daquilo a que chamo a desumanização, a incapacidade das pessoas lidarem umas com as outras e fecharem-se nos seus mundos.
Talvez seja uma obsessão pessoal minha mas sou suficientemente velho para me recordar dos tempos em que o telemóvel era uma novidade. Por isso, hoje, descer a rua e ver toda a gente concentrada nas suas mensagens de texto, sem falar umas com as outras, é muito estranho e corresponde a um desenvolvimento muito radical. Mudámos mais nos últimos 20 anos, no modo como nos comportamos e como nos relacionamos uns com os outros, do que ao longo dos últimos séculos...
Mas também abraça essa tecnologia quando filma personagens para jogos de vídeo ou grandes blockbusters de Hollywood... Como é que equilibra isso com o desejo de manter vivo o factor humano?
É uma boa pergunta e coloco-ma muitas vezes. O fio condutor de todas as minhas performances tem a ver com a minha atracção pelos realizadores. E isso não implica apenas cineastas independentes que dirigem filmes pequenos. Pode, por exemplo, querer dizer o John Carter porque a abordagem que o [realizador] Andrew Stanton tinha ao filme era muito forte e muito pessoal. Gosto de misturar as coisas; é uma questão de me forçar a exercitar diferentes músculos e não ficar preso a um certo modo de pensar, de evitar o elitismo ou não ficar confinado a um gueto. E há também um aspecto prático – é preciso um certo equilíbrio entre escolhas mais populares e outros projectos mais exploratórios.
Mas funciona tudo caso a caso, nunca tenho um plano. Olho para os prós e contras, peso-os bem e depois atiro-me. Às vezes, perversamente, um filme que não parece ser uma escolha evidente atrai-me como simples peça exótica. E uma vez no plateau, isso não quer dizer que julgue o filme, porque não estou lá para o julgar mas sim para permitir às personagens e à história defenderem-se em tribunal. É um processo interessante, tentar forçar-me a ser flexível. Não é essa a natureza humana, mas enquanto performer e artista é o único modo de me manter vital.
Costuma ver os seus filmes antigos?
Não. Se os apanhar na televisão posso ficar a ver um bocado [risos], mas por regra não. Lembro-me deles, estão no meu corpo, e não quero viver demasiado no passado.
A pergunta surge porque Pasolini faz pensar muito em A Última Tentação de Cristo, cujo argumento é de outro cineasta com quem colabora muito, Paul Schrader. Em ambos há um lado profético, uma espécie de via sacra...
É uma comparação interessante e justa, mas apenas lhe posso dizer que não foi consciente da minha parte. Quando se interpreta uma personagem conhecida de todos, pode existir muita pressão, e é preciso encontrar um modo de nos libertarmos dessa pressão, de nos desfazermos de todas as expectativas sobre como essa pessoa era ou como a nossa interpretação deve ser. Isso é o mais importante. Basicamente, é preciso ter em conta que não estou a interpretar “o” Jesus mas sim “um” Jesus, não “o” Pasolini mas “um” Pasolini.
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A única coisa que interessa é quem essas pessoas são no contexto do argumento. Digo muitas vezes que sou um actor orientado para a tarefa mais do que um actor psicológico. Por vezes faço muita pesquisa, como no caso de Pasolini, porque se aprende muito e nessa aprendizagem há também uma mudança pessoal que acontece. Mas isso está sempre ligado aos acontecimentos específicos no filme, são eles que nos guiam. É possível brincar com tudo o que está fora da imagem, mas penso que é uma perda de tempo; estou mais interessado na presença do actor, na comunicação muito misteriosa que ele tem com os “fantasmas”... (risos)
No fundo, colocar-se à disposição do realizador.
É nessa posição que me sinto mais livre. Se só me servir a mim próprio estou limitado aos impulsos daquilo que conheço e que experimentei. Se me encaminhar para a visão de outra pessoa para a habitar, isso encoraja-me a ver com outros olhos e a sentir de modos diferentes; quando sinto isso é como apaixonar-me de novo, surge toda uma nova energia e uma nova compreensão. Não estou apenas a ilustrar algo que já conheço, mas a experimentar novas coisas. Estou no coração da criação. Se houver outra pessoa cuja agenda estou a servir, descubro que isso me liberta.
É por isso que está sempre a regressar a cineastas como Ferrara ou Schrader?
Sim. E também porque quando trabalho com eles, posso ser mais articulado. Existe confiança, compreensão, sei aquilo de que eles precisam. Mas também pode vir do meu amor pelo teatro. No cinema, muitas vezes lidamos com primeiras reacções, que transportam uma certa energia e uma certa verdade, mas não conseguimos aguentá-las muito tempo: rodamos uma cena à tarde e logo a seguir vamos para outra parte da cidade rodar outra cena noutro sítio.
No teatro, tipicamente, estamos sempre a regressar ao mesmo sítio, à mesma cena, às mesmas preocupações, e estamos constantemente a lidar com elas. Do mesmo modo, muitas vezes os autores estão a reciclar a mesma ideia vezes sem conta (risos), porque é essa a sua natureza, e isso torna possível aprofundar as coisas.