A vida acima das nossas possibilidades

E nós, que vivemos acima das nossas possibilidades, desprovidos do que tínhamos, sem nada de novo termos recebido, demo-nos conta de que tentamos, agora, viver uma vida que está muito acima daquilo que podemos suportar. Até quando?

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Jack Zalium/Flickr

O discurso já o sabemos de cor: andámos a viver acima das nossas possibilidades. Gastámos, consumimos, exagerámos. Fizemos e acontecemos, irresponsáveis que fomos e insistimos em ser. De repente, quando demos por nós, a vida subiu na vida e pôs-se a viver acima das nossas possibilidades.

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O discurso já o sabemos de cor: andámos a viver acima das nossas possibilidades. Gastámos, consumimos, exagerámos. Fizemos e acontecemos, irresponsáveis que fomos e insistimos em ser. De repente, quando demos por nós, a vida subiu na vida e pôs-se a viver acima das nossas possibilidades.

A narrativa construída encaixou que nem uma luva na Europa pós-crise do virar da década. Poupar, desinvestir, cortar, retirar, reestruturar, reorganizar, diminuir, tudo no mesmo sentido diminutivo do Estado. O Estado estava gordo, obeso, e agora tinha de fazer dieta. A prescrição médica surgiu simples, clara, de fácil compreensão: há que cortar nas gorduras. Não há outra solução, que não há dinheiro.

Dos lugares comuns mais clássicos que surgiram, emergiu o da crise e da oportunidade, originado num qualquer caracter chinês: tem sempre dois lados, e em cada crise há uma oportunidade e é preciso saber aproveitar e estar atento e tirar proveito, etc. Sem grandes chavões, e de forma bem mais sustentada que uma partilha de Facebook de autor indeterminado, Milton Friedman estruturou bem o seu pensamento no que diz respeito às oportunidades que emergem das crises. Friedman percebeu, bem cedo, que nos momentos de crise — sejam elas fruto de catástrofes naturais, como o tsunami no Sudeste Asiático, ou de uma queda de regime político, como o fim da URSS, ou na sequência de uma “guerra contra o terrorismo”, como a dos EUA pós-2001, ou, ainda, de cariz económico, como a que vivemos em 1929 e em 2008 —a generalidade da população, por se encontrar num estado de choque, está mais permeável a aceitar transformações radicais na sociedade, mesmo aquelas que a desestruturam e causam rupturas na sua unidade.

Foi assim que, enquanto ainda nos tentávamos recuperar do choque da crise e a tentávamos entender — o “sub-prime”, a especulação financeira, a falência de bancos e seguradoras, os “bailout” —, levámos com os novos mantras daquele mesmo mercado que tinha provocado a crise: esta crise não é minha, é vossa, que viveram acima das vossas possibilidades e, por isso, agora precisamos de austeridade. E a austeridade cumpriu-se: cortou-se na saúde, na educação, na justiça. Diminuíram-se as prestações sociais no apoio ao desemprego, nos abonos de família, nos rendimentos mínimos. Aumentaram-se os impostos, os do rendimento e os do consumo. E vendeu-se quase tudo do que restava, privatizando-se tudo, menos aquilo que pediu Saramago.

Depois disto tudo, gorados os objectivos iniciais propostos de consolidação orçamental, das contas públicas e da dívida pública, já mais despertos e atentos, olhámos em volta e vimos um fosso - um ainda maior do que aquele que existia – entre os mais ricos e os mais pobres. E nós, que vivemos acima das nossas possibilidades, desprovidos do que tínhamos, sem nada de novo termos recebido, demo-nos conta de que tentamos, agora, viver uma vida que está muito acima daquilo que podemos suportar. Até quando?