Perdeu-se o pai de José Carlos

Quando deambulam, as pessoas com demência vão muitas vezes à procura de um passado remoto. A ausência pode ser prolongada. Há três meses que José Carlos Fernandes não sabe nada do pai.

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No dicionário, “desaparecer” significa “deixar de aparecer ou de ser visto”. Foi esse o verbo que José Carlos Fernandes usou nos 150 cartazes que andou a distribuir com a fotografia do pai. A casa de repouso onde vivia prefere dizer que o idoso “fugiu”, palavra que pode querer dizer “afastar-se precipitadamente para evitar um incómodo”. Diz a literatura médica que é típico do doente com demência “deambular”, o que remete para “o andar sem objectivo”. Já o próprio insistia com o filho que precisava de “ir apanhar caracóis”. O pai de José Carlos Fernandes perdeu-se. Há mais de três meses que o filho anda à procura dele. Esta é uma história feita de muitos verbos. Falta-lhe um.

José Carlos Fernandes, filho único, 51 anos, diz que fez tudo bem. Começou a notar que o pai às vezes deixava as luzes de casa acesas, que havia conversas que se tornavam estranhas, que demorava tempo a chegar a casa. Uma ou duas vezes, a PSP veio trazê-lo a casa depois de o encontrar perdido na rua, o filho só soube da última. Depois, houve uma vez em que ele lhe disse “estava aí uma coisa estragada e eu estive a arranjá-la”. Tinha retirado a válvula de segurança a uma botija do gás.

“Eu sou preciso e objectivo”, não se cansa de repetir, “a solução era só uma”. “Era preciso vigiá-lo 24 horas por dia” e ele não podia, trabalha, é técnico da Câmara Municipal de Lisboa, e tem a mãe idosa, com a mesma idade que o pai, 82 anos, a viver consigo. Tiveram uma conversa os três, filho, pai e mãe, escolheu um dos momentos em que o pai estava bem, quando estava capaz de reconhecer “eu não estou bem”. Tinha sido diagnosticado com “síndrome demencial”. O pai concordou que tinha de ir para um lar, conta.

José Carlos é metódico: onde trabalha, na Direcção Municipal de Projectos e Obras da Câmara de Lisboa, cabem-lhe tarefas como fazer medições, pedir orçamentos, fazer pagamentos, acompanhar obras. Seleccionou algumas unidades que lhe pareciam mais adequadas, foi visitá-las e escolheu uma por ser uma moradia e ter espaço ao ar livre. Não queria enclausurar o pai num daqueles “lares de cidade”, um daqueles apartamentos em que ficam fechados todo o dia. “A pessoa não pode estar fechada num quarto, numa sala.” Este tinha poucos utentes, cerca de 20, era “um espaço agradável”, ficava nos arredores de Lisboa, na Pontinha.

Escolheu então outro desses momentos em que sentia que o pai estava capaz de o compreender, eram mais as alturas de lucidez do que as de desnorte, e levou-o num fim-de-semana ao lar seleccionado, para ele conhecer o sítio. Ele acatou, na visita comentou, “estas coisas são caras”. O filho concordou. “Fui lá outra vez, ver melhor as condições.” José Carlos Fernandes pediu cópia do alvará da Segurança Social, o n.º 7/2006, para ter a certeza de que estava tudo legal e que o podia deixar em segurança. Chama-se Casa de Repouso Rio Tejo.

O pai estava lá desde Maio e o horário de visitas mudou, conta José Carlos Fernandes, No regulamento, lê-se que é das 14h às 16h00 e das 18h às 19h, agora o lar informa que é das 16h às 19h. No horário anterior, o filho conseguia lá ir ao almoço. Com o novo horário, era muito mais difícil. “De dois em dois dias, tentava lá ir. Todos os dias falava com ele ao telefone.” Quando o filho lhe perguntava como andava, o pai respondia, às vezes, com um “eu cá vou andando”, outras, mais ultimamente, “eu quero sair daqui” ou “eu quero ir da uma volta”, ou ainda “eu não posso estar sentado, não posso estar em pé”. “Estava completamente agitado”, recorda. “Eu quero ir à rua”, “eu quero ir apanhar caracóis”. Houve uma vez que lhe disse mesmo, “tenho o bolso cheio de caracóis”, como se já tivesse ido lá fora. “Não pode ir à rua senão perde-se, não pode apanhar caracóis”, tentava fazer-lhe compreender.

José Carlos informou o lar de que o pai não podia sair sozinho porque sofria de demência. Assim sendo, o próprio lar comunicou-lhe que não o podiam levar à rua, não tinham nem seguro, nem pessoal suficiente para o acompanhar. José António Fernandes, de 82 anos, era um dos utentes que não se enquadravam no artigo 16.º do regulamento, não era “um utente com autonomia”, dos que estão autorizados a sair pelos seus meios das instalações em dias de bom tempo. Ficou assente que sairia apenas quando o filho lá pudesse ir.

Houve um dia, 10 de Julho deste ano, em que tinha prometido ir visitá-lo, mas não conseguiu, por causa do trabalho, ligou por volta das 18h00. “Liguei para o avisar.” Disseram-lhe que, naquele momento, não podia atender. “Digam ao meu pai que eu liguei.” No mesmo dia, “às 21h31”, recebeu uma chamada: “Estou-lhe a ligar para dizer que o seu pai fugiu.”

À hora que o pai não tinha podido vir ao telefone já tinha desaparecido, fugido, se quisermos usar o termo da responsável do lar, defende José Carlos Fernandes. É uma diferença de três horas, entre as 18h30 e as 21h30, “a diferença entre o dia e a noite”, diz. Mais lhe disse a responsável, “estou aqui a participar à PSP. Não posso fazer mais nada. Agora vou para casa”. Assim reteve a conversa.

A vice-directora técnica da Casa de Repouso Rio Tejo, Lúcia Dantas, respondeu à Revista 2 que não sabe como o idoso conseguiu sair, “senão tinha informado as autoridades”. E explica: “Esse assunto já não está nas nossas mãos, está com as autoridades. Vamos responder quando tivermos de responder. Assumiremos a nossa responsabilidade.”

Nessa noite correu para a esquadra da PSP da Pontinha, onde lhe disseram “a si não lhe posso dizer nada”, tinha de ir à “superesquadra”, que não ficava ali, era em Moscavide. Optou por ficar e percorrer sozinho, a pé, toda a zona de moradias, depois fez um circuito de carro, uma hora a circular. “Não havia ninguém na rua.” De seguida, foi ao piquete da Polícia Judiciária (PJ), porque sabia que tem uma secção de desaparecidos, um inspector respondeu-lhe, “sabe, temos poucos meios” e ainda mais eles tratam de desaparecimentos quando há crimes, sequestros, homicídios, não era o caso do pai, mas lá lhe aceitou a foto, que não foi incluída na lista de pessoas desaparecidas que está no site da PJ. Muitos dos idosos que estão nesta lista sofrem de demência, mas a PJ não contabiliza estes casos porque não fazem parte das suas competências. Não se sabe que fim tiveram as histórias de idosos que lá continuam como desaparecidos, ao lado da pequena Maddie McCann.

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No dia em que o pai desapareceu, José Carlos Fernandes foi deitar-se por volta das 2h00; levantou-se quando pensou que as outras pessoas já tinham acordado e que já era de alguma utilidade sair da cama.

Verificou que o sítio onde o pai desapareceu está na confluência de três áreas de saúde — Loures, Lisboa, Amadora-Sintra —, ligou para os vários hospitais. Era a hipótese “está vivo mas está ferido”.

Ligou para o Instituto de Medicina Legal, não tinham corpos recentes não reclamados. Era a hipótese “está morto mas não foi identificado”. Mesmo assim, abriu as gavetas virtuais da “identificação de cadáveres” no site da Polícia Judiciária, junto ao lado esquerdo, abaixo de “áreas de actuação”, a seguir às “obras de arte furtadas”. Lá está um cadáver não identificado encontrado: “Dentro de água no rio Tejo, junto ao Cais das Colunas, com idade entre os 55 a 65 anos”, outro “na Avenida 5 de Outubro, junto ao n.º 73”, com idade estimada de “60/70”. Outro “tinha dado entrada no Hospital dos Capuchos, vítima de uma queda na via pública, em Lisboa”. O pai não é nenhum deles, são todos casos mais antigos.

A foto mais recente que tinha do pai foi uma que fez para testar a máquina fotográfica do telemóvel: “Ó pai, vou-lhe tirar uma para ver se isto funciona.” José António Fernandes ficou com ar sério, de camisa de flanela cinzenta com padrão quadriculado cor de vinho. Foi a que o filho usou para replicar em 150 páginas A4, fotocópias feitas à pressa para espalhar nos dias seguintes.

Pediu a amigos e colegas para distribuírem a imagem e em tudo o que era sítio próximo do lar foi ele próprio pedir para lhe pendurarem a foto, mas a maior parte dos sítios não aceitou — o centro comercial, os postos de gasolina, a cadeia de supermercado também não, explicou-lhe que até tinha deixado de ter aqueles placards de ofertas e procuras de emprego, de vende-se e compra-se, não tinha espaço para um “desapareceu”. Ele levava a fita-cola. “Só os pequenos comerciantes é que aceitaram, cafés, minimercados, oficinas, talhos, essas pessoas ajudaram-me.” Colou nas paragens de transportes públicos.

O pai era bombeiro. Toda a vida foi voluntário e depois foi profissional, durante 23 anos fez parte do Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa, n.º 2831. Muita da sua vida foi passada a fazer transporte de doentes. O filho decidiu então que seria boa ideia ir a quartéis, tanto aqueles onde o pai serviu como outros. Já ninguém se lembra dele, reformou-se há mais de 30 anos. Alguns quartéis deixaram que lá colasse a folha com a cara do pai. Não sabe se continuam no sítio.

Depois, ele, que trabalha na câmara, pensou na melhor forma de fazer circular aqueles cartazes, de dá-los a pessoas que não passam o dia dentro de um gabinete, como ele, que anda a pé e de transportes. Pensou no lixo, ele usa o termo “resíduos sólidos”, “esses carros vão a todo o lado”.

Surgiram pistas nestes meses, supostos avistamentos. A 600 metros do lar, uma senhora viu um homem de calças de ganga e chinelos. Da última vez que tinha ido ver o pai, ele insistiu muito que lhe levasse dali os sapatos de vela, que estavam novos — “eu não preciso dos sapatos, leva-os, são para sair, aqui ando de chinelos.” José Carlos Fernandes acha que a insistência tinha que ver com o medo que lhos perdessem, às vezes o pai aparecia com a roupa trocada, de outros utentes, e o filho lá avisava alguém do pessoal do lar que aquela parte de cima do fato de treino não era do seu pai. “Só pode ter saído de chinelos.” Então o homem podia ser o pai.

O tal homem que se parecia com o pai e que calçava chinelos tinha muita sede, estava sentado no chão, a mulher que o viu foi buscar um jarro. Bebeu muita água e foi-se embora. “Chamei, olhou e continuou a andar”, contou-lhe a senhora. Na margem Sul do Tejo, onde um colega seu colou cartazes, alguém viu, no final de Agosto, um homem desorientado próximo da estrada, perguntou-lhe “o senhor está bem?” “Estou, estou”, aconselhou-o a ir pelo passeio e informou as autoridades. Só que este homem tinha camisa e calças cremes e uma mala a tiracolo e estava muito limpo. Não lhe parece possível que fosse o pai, que tivesse percorrido uma distância daquelas e estivesse com óptima aparência um mês depois de ter desaparecido, como dizia a senhora.

Se estiver vivo, o pai de José Carlos não deve estar com muito bom aspecto. Se o virem na rua, não saberão que é seu pai, que ele anda à procura dele, pensarão que é um sem-abrigo. Também já tentou saber de notícias do pai junto de quem distribui comida a quem não tem casa, na capital. José Carlos Fernandes diz que na cidade “as pessoas olham mas não vêem”. Um idoso mal vestido com ar perdido convida a que nos afastemos, “causa receio, à noite transforma-se num vulto que mete medo”, não é motivo para nos abeirarmos, para perguntarmos ‘está bem?’, ‘precisa de ajuda?’”, diz José Carlos Fernandes. Mesmo que seja o seu pai, há-de estar sujo e a cheirar mal, terá a barba por fazer e ar cansado.

Na cidade, “tudo o que é anormal transforma-se em normal. Ninguém repara em nada. Uma pessoa sem camisa é normal, uma pessoa com cabelo pintado de azul é normal”, então um homem com chinelos na rua com ar desorientado também é normal. Talvez se fosse na aldeia alguém o tivesse reconhecido, diz. Na aldeia, olha-se, às vezes para se fazer comentários, mas vê-se. “O anormal é anormal.”

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Toda a gente na aldeia de Santiago de Litém, concelho de Pombal, sabia que Rosário da Conceição, de alcunha “Migalhas”, de 94 anos, já não podia sair de casa sozinha porque sofria de Alzheimer. Uma vez, foram dar com ela quando já ia ao pé da igreja, que fica no cimo da aldeia, quase a um quilómetro de casa, e vieram devolvê-la de volta à filha; outra vez, tinha seguido sempre em frente, e foi a mulher do neto, Ana Paula Terouso — que é quem conta a sua história —, quem a alcançou a tempo, antes de avançar para os campos.

Diz-se que na aldeia não se fecham as portas, mas já não é bem assim, e havia uma porta que tinha de estar trancada. A chave estava sempre no bolso da filha, Maria da Conceição Terouso, com quem a idosa vivia.

Bastou uma vez em que a porta ficou no trinco. A idosa tinha ficado na sala à frente da televisão, onde de vez em quando dizia que havia senhoras muito simpáticas que falavam com ela e ela com as senhoras, a filha foi para a cozinha lavar a louça do almoço. Foram minutos. Seguiu em frente, pelo mato adentro. Ninguém a devolveu, como da outra vez.

Não foi preciso muito para que a aldeia, que é feita de uma casa aqui, outra acolá, se juntasse em peso, ou, como noticiou o Correio de Pombal, que “o desaparecimento tenha semeado a consternação junto da população local, que não regateou esforços para ajudar as autoridades”. Uma vizinha ia à frente com uma catana a cortar o mato, a abrir o caminho para os que seguiam atrás, outros vizinhos foram com os seus cães farejar o odor das roupas que lhes tinha sido dado a cheirar. “Juntou-se toda a gente. Andámos até não haver mais dia.” Dois dias depois, a GNR cessou buscas, conta Ana Paula Terouso.

A família ainda foi à Câmara de Pombal pedir para abrirem uma espécie de época de caça excepcional — porque já não era tempo dela —, para passarem de novo a serra a pente fino com caçadores e cães. Ninguém a viu, se a tivessem visto, tinham-na reconhecido. Toda a gente sabia quem era a “Migalhas”, que devia a alcunha ao ser poupada e muito trabalhadora, a filha é conhecida como a “Migalhitas”, por lhe ter herdado os traços.

A filha sentia-se culpada, entrou em depressão, depois diziam-lhe “coisas que não ajudavam”, lembra a familiar, que estas pessoas com Alzheimer fogem mas é quando estão lúcidas. “Há quem diga que saem de casa para morrer, como se tivessem vontade. São crenças da província.” Já a cabeça da filha continuava a fantasiar histórias, que alguém lhe tinha feito mal ou que tinha sido comida por animais, que estava a passar fome ou frio algures na serra. “Ninguém lhe tirava da cabeça que podia estar viva.” Apesar de ter passado tanto tempo.

Acabou por ser mesmo um caçador com o seu cão a encontrar um corpo deitado numa ravina, a não mais de um quilómetro da casa de onde tinha desaparecido Rosário da Conceição, muito perto de onde tinha andado a multidão em busca. Tinham passado mais de três anos.

O esqueleto intacto estava arrumado dentro das roupas, como se estivesse a dormir, o mesmo lenço de ramagens a envolver o crânio, uma imagem que a filha teve de presenciar, levada pela GNR. Sem saber exactamente do que morreu a mãe — se da queda, se do frio, da fome, se morreu logo ou uns dias depois —, a pose serena do esqueleto deitado pacificou-a.

O Correio do Pombal deu conta “da descoberta macabra” que pôs fim ao “mistério”. Fez-se o funeral, toda a aldeia se juntou, como tinham feito para a ir procurar, como se a morte tivesse sido na véspera. Na lápide, o dia do desaparecimento ficou como o dia da morte: 9 de Julho de 2002, a descoberta do corpo foi em 2005. E com a mãe no cemitério, “Migalhitas” finalmente acalmou. Deixou de tomar comprimidos.

Nota-se-lhe o nervosismo nas mãos quando procura os papéis. É como se tivesse bebido café, logo ele, que nunca bebe café. É como se José Carlos Fernandes estivesse num estado de hipervigilância. “Escrevi cartas a toda a gente, não sei o que mais hei-de fazer.” José Carlos tem um emaranhado de papéis numa pasta, são cartas e avisos de recepção que envia e depois recebe de volta a dizer que chegaram ao destinatário, guarda tudo. Ele que é tão organizado lamenta não ter tido “ainda tempo de constituir uma pasta”.

Ali, insiste, “estão registados” todos os passos que tentou dar, de forma ordenada e lógica. “Vou por etapas. Antes de partir para uma hipótese, tenho de encerrar a anterior.” Faz tudo o que pode — “e não sei que mais hei-de fazer” — durante as horas de almoço e ao final do horário de expediente, por volta das 18h00. Gaba-se de nunca ter faltado ao trabalho. Multiplicava-se em telefonemas, agora menos. Há mais de três meses que, à noite, acorda duas a três vezes. “Penso a noite toda, a agendar coisas na minha cabeça.” Tem três telemóveis, não vá faltar a bateria àquele para onde lhe ligam.

Foram surgindo mais pistas nestes meses. Alguém lhe disse que morreu um idoso num fim-de-semana no Eixo Norte-Sul, uma via rápida que atravessa a cidade de Lisboa. Foi à divisão de trânsito, depois de ter descoberto que era lá que devia ir — é mais uma das suas descobertas burocráticas, e deixa a explicação, a quem interessar: “Qualquer atropelamento é sempre a divisão de trânsito.” “A pessoa tinha o bilhete de identidade e não era o meu pai.”

Houve uma senhora que viu um idoso com ar desorientado quando estava numa caixa de multibanco, em Alvalade, em Lisboa. Tirou fotografia e pôs no seu Facebook. “Não era o meu pai.” “Há um relato de uma outra senhora, no Feijó, que me ligou, teria visto o meu pai à meia-noite junto a uma farmácia, com uma ligadura na mão.” Continuam-lhe a chegar estes flashes. Ele segue-os a todos. Quer saber o que se passou, “até ao último momento”.

Ao lar mandou, com aviso de recepção, uma lista de perguntas: “Quando foi visto pela última vez na casa de repouso? Quem foi o funcionário que contactou com ele pela última vez? Que roupa tinha vestida? Que medicação tomou nesse dia? Que refeição realizou nesse dia?”

Recebeu uma carta do advogado do lar a informá-lo apenas de que foi aberto um “processo de inquérito interno de apuramento dos factos”. D

epois de ter deixado uma reclamação no livro amarelo do lar, a segurança social informou-o de que visitaram o lar duas vezes e que “não foram detectadas deficiências ao nível das condições das instalações, funcionamento, higiene e conforto, consideradas passíveis de pôr em causa os direitos dos utentes ou a sua qualidade de vida”. Salienta-se “no entanto que, atendendo à situação do residente, deveria ter sido reforçado o acompanhamento, indicação essa já transmitida à equipa técnica”.

Não quer falar de como se sente porque está convencido de que “a alegria se consegue transmitir. A tristeza e a desgraça não têm forma”, ficam com cada um, são intransmissíveis, o mais que consegue é dizer que “não sabemos muito bem o que fazemos nem onde estamos”. Quando tenta fazer compreender como se sente, o que pode fazer é perguntar: “Tem pais?” Se quer mesmo que as pessoas criem algum tipo de empatia em relação ao que está a sentir, pergunta “Tem filhos?” Ninguém sabe o que é ser ele desde há três meses. Um colega de trabalho, Luís Godinho, conta que “há momentos em que o Zé está completamente perdido. Não há um fio condutor. Ele sente-se impotente, anda, anda e não consegue chegar a lado nenhum”.

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Em Portugal estima-se que haja 153 mil pessoas com alguma forma de demência, cerca de 90 mil são casos de Alzheimer, mas o envelhecimento da população está a levar ao seu aumento. Diz-se das pessoas com demência que deambulam. Um verbo que remete para o “andar sem objectivo”. Não é assim. Os idosos saem com rumo, o seu rumo, saem à procura de alguma coisa, explica Leonor Guimarães, vice-presidente da Alzheimer Portugal-Associação Portuguesa de Familiares e Amigos dos Doentes de Alzheimer.

Quando vivia na sua casa, José António Fernandes gostava de ir apanhar caracóis e depois cozinhá-los.

“Existe a tendência para os cuidadores dizerem que as pessoas com demência fogem mas, na realidade, o que as pessoas querem é voltar a sua casa, ou ir trabalhar, ou, ir buscar o filho à escola. Têm como objectivo fazer algo que faz parte da sua história de vida e das recordações, que pode estar relacionado com rotinas antigas, ou mesmo com a sua profissão, ser polícia, professor, carteiro”, explica a página da associação. Mas a perda de memória e a dificuldade de comunicar podem tornar a pessoa incapaz de explicar a razão por que precisa de andar naquele momento.

Paulo Flor, responsável do Gabinete de Imprensa e Relações Públicas da PSP, recorda dois casos que conheceu numa esquadra de Lisboa, ao longo de dois anos. Eram idosos com demência que a polícia encontrou na rua, sem saberem quem eram nem para onde iam. Tiveram dificuldades em encontrar-lhes as famílias. Dois casos em dois anos são poucos, mas se os multiplicarmos pelas esquadras de Lisboa — existem 28 — talvez sejam muitos, nota.

O chamado “deambular” não acontece por acaso. Podem ser várias as razões que estão na sua origem, como refere o site da Alzheimer Portugal: uma pessoa com demência “pode sentir-se insegura e desorientada num ambiente novo”, “pode ser uma maneira de gastar a energia em excesso, o que pode indicar que a pessoa necessita de ocupação ou mais exercício físico regular”. Pode estar entediada, pode ter acordado de madrugada e não distinguir o dia da noite, pode confundir o sonho com a realidade e estar a responder a algo que sonhou, pode andar por estar a sentir “desconforto ou dor, alguns exemplos são o uso de roupas apertadas, o calor excessivo”.

Quando lhe perguntavam “onde é que ia?”, Rosário da Conceição, a idosa de Santiago de Litém, respondia “vou para minha casa”. Seguia em direcção ao sítio onde tinha vivido com os pais e que há muito tempo já não era a sua casa, agora é só um casebre em ruínas, conta Ana Paula Terouso. Com 94 anos Maria do Rosário procurava a casa onde tinha sido criança. Há várias camadas de passado, na demência, as primeiras memórias a serem apagadas costumam ser as mais recentes, os passados mais antigos costumam ser os últimos a desaparecer, explica Leonor Guimarães.

Esta responsável não consegue quantificar o número de pessoas com demência que deambulam e se perdem. “São situações mais frequentes do que seria desejável”, e acontecem mais na cidade do que na aldeia, onde as pessoas vão sendo reconhecidas e quem as rodeia sabe que estão doentes, nota. Quando acontece, alguns familiares pedem-lhes ajuda na divulgação, mas a associação pouco pode ajudar.

Às vezes o desaparecimento dura horas. Ela conheceu de perto um destes casos, a pessoa tinha ido com um familiar a um supermercado, em Lisboa, e bastaram instantes para se perder de vista. “Andou perdida dois dias. Quando foi encontrada, estava num estado lastimável. Sem roupa, sem sapatos, sem valores. Roubaram-lhe tudo”, lembra. Estes são microdramas. E depois há os casos, apesar de tudo uma minoria, em que as pessoas não voltam a aparecer.

Nem a Polícia de Segurança Pública nem a Guarda Nacional Republicana sabem o número de desaparecimentos de pessoas com demência, nem quantos resultam em morte. Mas a PSP já propôs à Alzheimer Portugal adoptarem as pulseiras “Eu estou aqui”, que têm sido usadas para as crianças, nos meses de Verão. O objectivo é que as pulseiras incluam dados sobre os doentes e apelem a quem os encontre que ligue para o 112, onde existiria um registo de cada pessoa e dados de contacto do cuidador. Este processo está parado, diz Leonor Guimarães, mas mesmo que avance não resolve tudo. “A pessoa pode tirar a pulseira [que é de pano].”

Convida as pessoas a estarem atentas, se na rua virem alguém com ar desorientado, a que chamem as autoridades e não as deixem até estas chegarem. “É importante que a sociedade esteja alertada para isso. É um acto de solidariedade perguntar se a pessoa precisa de auxílio.” Depois, há dicas que dão aos familiares: pôr etiquetas nas roupas, espalhar papelinhos com os contactos pelos bolsos. Nos lares, há unidades que põem alarmes sonoros de cada vez que as portas da rua são abertas; outros têm portas que apenas se abrem com códigos. Pode ajudar avisar os comerciantes locais. É um problema crescente, diz Leonor Guimarães.

A Misericórdia de Fátima-Ourém, por exemplo, disponibilizou este ano aparelhos de localização GPS para doentes com Alzheimer. Os equipamentos têm o tamanho dos dispositivos bip e podem ser usados numa pulseira, num colar ou colocado numa bolsa para o doente trazer à cintura. O cuidador faz uma chamada através de um telemóvel e recebe uma mensagem com um mapa com a localização da pessoa.

Leonor Guimarães nota que é preciso ter cuidado no uso deste tipo de mecanismos, que pode “atentar contra a liberdade da pessoa, são cidadãos de pleno direito até os tribunais os decretarem incapazes”. É que cada caso é um caso. “O processo demencial é progressivo, vão-se degradando as funções.” Por isso, insta os familiares a requererem a declaração de incapacidade em tribunal, quando a pessoa não é capaz de fazer gestão da sua vida, para que haja uma prova da situação de demência, algo que torna estes casos de desaparecimentos mais prementes para as autoridades.

A PSP respondeu à Revista 2, por email, que no caso do pai de José Carlos Fernandes foram feitas “várias diligências” , que incluíram buscas com os Bombeiros Voluntários da Pontinha e que os cães da Unidade Especial de Polícia andaram nos terrenos baldios e vegetação junto ao lar e outras áreas onde teria sido visto. “As primeiras 24 horas são preponderantes e a PSP tudo fez para, com empenho humano e material, reencontrar a pessoa.” Termina dizendo: “Da nossa parte, o caso não está encerrado” e “as redes de contacto com a família estão abertas e activas no sentido de encontrarmos a pessoa em questão”.

Os três telemóveis de José Carlos Fernandes continuam atentos, com a bateria carregada. O filho de José António Fernandes insiste que é um homem de factos, usa verbos como “consubstanciar” ou “explanar”, está a um ano de terminar a licenciatura de Direito como trabalhador-estudante. Diz que “as várias hipóteses que se colocam vão contra o pensamento positivo”. Ele está sempre a fazer esses exercícios, a testar mentalmente cenários que vai pondo de lado. “Uma pessoa pode sobreviver sem comer e beber durante três a quatro dias, mais do que uma semana é impossível.” E se deram boleia ao pai, alguém de boa-fé? Mas “quem dá ajuda comunica às autoridades”. Se ele for mesmo “racional”, como insiste que está sempre a tentar ser, então a conclusão lógica só pode ser uma, “neste momento, o meu pai deve ser cadáver”. Mas mesmo ao dizer esta frase foge ao uso do verbo “morrer”. O pai de José Carlos Costa perdeu-se.     

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