A arbitragem que a Europa teme
A resolução privada de conflitos entre investidores e Estados (ISDS) começou nos anos 50. Mas só nos últimos tempos ganhou importância. Estes são alguns dos casos que tornam este mecanismo indesejado para muitos
Antes de figurar nas negociações do TTIP, a cláusula “arbitral” estreou-se num acordo comercial entre a Alemanha e o Paquistão, há 55 anos. Mas as disputas só começaram, a sério, nos últimos 15 anos. Em 2013 e no ano anterior atingiu-se o auge de litígios: 115.
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Antes de figurar nas negociações do TTIP, a cláusula “arbitral” estreou-se num acordo comercial entre a Alemanha e o Paquistão, há 55 anos. Mas as disputas só começaram, a sério, nos últimos 15 anos. Em 2013 e no ano anterior atingiu-se o auge de litígios: 115.
Alguns são multimilionários, como o que opõe a empresa sueca Vattenfall ao Estado alemão. Após o acidente na central nuclear japonesa de Fukushima, o governo de Angela Merkell decidiu fechar as suas centrais. Duas delas eram geridas pela Vattenfall, que exige agora uma indemnização de 3,7 mil milhões de euros. O caso ainda está a ser “julgado”, mas é uma das explicações imediatas para a oposição da Alemanha à inclusão de um mecanismo ISDS na futura parceria comercial transatlântica.
Outro dos casos mais emblemáticos envolvendo este tipo de arbitragem é o que opõe a empresa americana Lone Pine Resources Inc. ao estado canadiano do Québeque. Aquele estado decidiu aprovar, em 2011, uma moratória para impedir a exploração de gás natural obtido pelo método, ambientalmente agressivo, da "fracturação hidráulica”. A companhia americana tinha uma licença de exploração. E, ao abrigo da cláusula ISDS do tratado NAFTA (Acordo de comércio livre da América do Norte), exige agora ao Canadá uma indemnização de 250 milhões de dólares, mesmo sem ter iniciado a laboração.
Entre os mais de 500 casos já iniciados, porventura o mais famoso é o que foi lançado pela tabaqueira Phillip Morris contra o Estado australiano. Em Dezembro de 2011, o parlamento australiano aprovou legislação que obriga os fabricantes de cigarros a incluir imagens chocantes nos pacotes, como forma de prevenção do tabagismo. A multinacional americana, através da sua filial de Hong-Kong apresentou uma queixa, invocando “expropriação ilegítima” por Camberra dos seus investimentos, à luz de uma cláusula ISDS que consta de um acordo comercial entre aquela cidade-Estado chinesa e a Austrália. O processo arrasta-se: o julgamento iniciou-se em 2012, em Singapura. Em Abril de 2014 os árbitros decidiram separar algumas componentes do processo. Segundo a página oficial do governo australiano, desde então não existem desenvolvimentos.
A mesma Phillip Morris deu início, em 2010, a um processo semelhante, contra o Uruguai. A queixa é a mesma: leis “pouco razoáveis” que põem em causa o investimento e a expectativa de lucros. O que varia é a jurisdição. Desta vez a companhia usou a sua filial na Suiça, e um tratado comercial entre Berna e Montevideu.
Bruno Maçães, o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, que veio a público defender este mecanismo, admite que estes exemplos podem configurar “abusos”: “Vou ser directo: Não me custa nada reconhecer que o mecanismo, tal como existe actualmente, tem esse tipo de efeitos. Que têm de ser eliminados. São os tais abusos de que falava.” Na opinião de Maçães, um acordo como o que está a ser negociado entre a Europa e os Estados Unidos permite um maior “escrutínio popular e dos media”.
Mas na Europa, o mecanismo ISDS coloca, irredutivelmente, a esquerda contra a direita. O que coloca em risco a aprovação do TTIP, caso venha a ser apresentado ao Parlamento com um mecanismo deste tipo que, até agora, só é defendido pelos liberais e uma maioria de conservadores. Seria, nesse caso, mais um grande tratado Europa/EUA a ser chumbado pelos eurodeputados, depois dos acordos Swift e Acta. Um sinal, para Bruno Maçães: “Esse, para mim, é o grande problema da UE: uma paralisia quando é preciso tomar decisões importantes.”
O ex-embaixador Francisco Seixas da Costa escreveu no seu blogue um texto crítico sobre a actuação de Maçães, com o título “uma diplomacia ideológica?”. Nesse texto, sobre a carta dos 14 governantes, Seixas da Costa queixa-se da radicalização de posições: “Verifico hoje, com alguma surpresa (para mim, a última) que, também aqui, a espertalhice liberal acabou por prevalecer sobre o alegado interesse em manter, sobre uma temática desta relevância, um consenso político nacional alargado.”