O Guggenheim tornou uma Bilbau cinzenta numa cidade de turismo cultural a cores
Em 17 anos, uma cidade redefiniu a sua identidade e ganhou milhões. De euros e de visitantes - eram cem mil há 30 anos e nos últimos 20 16,8 milhões de pessoas foram lá ver arte contemporânea. Um case study.
Cem mil pessoas visitavam anualmente a cidade na década de 1990. Nos 17 anos de vida do museu, 16,8 milhões de pessoas passaram pelas suas salas - o Guggenheim de Bilbau é “um case study cristalino e referencial” do poder do turismo cultural, como descreve o director do Museu Nacional de Arte Antiga, António Filipe Pimentel.
O caso-Guggenheim Bilbau não é, de facto, comum. “Sempre nos conheceram pela existência de um grupo terrorista chamado ETA. A cultura ajudou-nos”, sublinhou esta quinta-feira Xabier Peréz Gaubeka na Conferência Internacional de Património Cultural e Turismo: Conceitos, Realidades e Perspectivas que decorreu até sábado na Universidade Lusófona de Lisboa. A cidade basca “não é Barcelona nem Madrid”, periférica no norte de Espanha e a caminho de França. Há 30 anos, quando surgiu a ideia de ali nascer mais um museu de arte contemporânea da comunidade da Fundação Solomon R. Guggenheim, Bilbau não era Nova Iorque. Nem Veneza. Onde já existiam Guggenheim. O seu caminho também não se cruzava com a arte como o Prado de Madrid ou o Louvre de Paris.
A cidade tem cerca de 300 mil habitantes (600 mil na área metropolitana) e a sua identidade era um rio que atravessava várias realidades: a tradição industrial da siderurgia e da construção naval, a gastronomia rica, o euskera (a língua basca), as lutas autonómicas e… os atentados. Como aquele que, na semana de inauguração do Guggenheim, em Outubro de 1997, fez rebentar explosivos à porta do museu desenhado por Frank Gehry e matou um polícia.
Em 1981, o governo basco decidiu contactar a Fundação Guggenheim com o arriscado plano de criar um museu, pago pelo erário público, na cidade a preto e branco. Naquela década, Bilbau era uma cidade quase de joelhos. A crise, lembra Xabier Peréz Gaubeka durante a sua conferência dividida com António Filipe Pimentel sob o tema das grandes instalações culturais como desenvolvimento de um destino, desgastou a cidade. “Dizer aos milhares de desempregados”, recorda Peréz Gaubeka, que a aposta seria na arte, num museu, gerou contestação. Dura e longa. “Ninguém acreditava que um museu fosse capaz de transformar uma cidade, os seus habitantes e mesmo um país.”
Mas em 1997 aquilo que era uma zona de contentores na margem do rio Nervión transformou-se. Instalava-se uma escultura metálica ondulante, um dos mais celebrados trabalhos de Gehry – “escolhido porque ia ter repercussão, ser um cartão de apresentação do próprio museu”, reconhece o responsável do Guggenheim sobre o star power do edifício. Com ele, vieram os outros. Não só os artistas como Jeff Koons e o seu Puppy florido a guardar a porta do museu, mas o progresso do sector terciário e dos transportes.
Para Bilbau vieram empresas como a Microsoft ou a Google, lojas como a Louis Vuitton ou a Yves Saint Laurent, milhões de visitantes do museu que lá gastam em média 353 euros, disse Gaubeka. Nos primeiros cinco anos do museu a cidade ganhou metropolitano com projecto de outro arquitecto-estrela, Norman Foster, Santiago Calatrava renovou o aeroporto… “A transformação começou por um ponto que foi o museu” e, ao mesmo tempo, ele mudou a percepção externa da cidade e dos bascos, sendo “também um transmissor de identidade”, disse Gaubeka.
Efeito Guggenheim
Licínio Cunha, economista e professor catedrático que dirige o Departamento de Turismo da Lusófona, abriu a conferência lembrando que exactamente entre 1997, o ano de fundação do Guggenheim de Bilbau, e 2007 “os turistas de cultura duplicaram – é um dos segmentos com crescimento mais rápido no mercado do turismo”. A “aposta” política do País Basco na “regeneração de uma parte da cidade que estava abandonada” pela crise não se fez sem custos. O museu custou 90 milhões de euros a erguer, entre os três anos de construção e projectos, protocolos e negociações, pagos pelo erário público basco. Mas segundo Gaubeka, em dois anos esse valor estava amortizado em receitas fiscais. “E pouco a pouco as instituições públicas foram percebendo o valor do impacto do projecto.” O turismo chegou, espanhol e estrangeiro, e revitalizou. As expressões “efeito Bilbau” ou “efeito Guggenheim” andam por aí.
O aumento das receitas da cobrança de impostos da actividade económica nestes 17 anos rondam os 510 milhões de euros, precisa o director do departamento de projectos do Guggenheim basco, que continua a enumerar: o museu teve “3,350 milhões de euros de impacto directo no País Basco”, há “5487 empregos mantidos graças ao museu - agora menos devido à crise”, ressalva, 65% dos visitantes são de fora de Espanha, dos quais 2 a 3% são portugueses. E, mais importante que tudo, “70% de autofinanciamento” – ao contrário do modelo tipicamente europeu de dotações do Estado. “Somos o museu europeu com maior nível de autofinanciamento e o mais próximo dos museus americanos”, explicou à plateia de dezenas de pessoas no auditório da Lusófona sobre os custos anuais de 26 milhões de euros e as suas 120 empresas mecenas, as suas receitas do restaurante estrela Michelin, a sua loja, a sua bilheteira.
Da Matéria do Tempo do escultor Richard Serra ao Bigger Picture de David Hockney, da sua colecção e remixes da exposição permanente, o case study Guggenheim Bilbau conta obviamente com o apoio da fundação e da rede de museus que agora se espalha até ao Médio Oriente - e que tem um nome e marketing a condizer. Mas foi também construindo uma colecção (128 obras adquiridas em 17 anos, 73 artistas representados, 110 milhões de euros gastos, entretanto valorizadas14 vezes) sobre a base de mais de 240 peças em que há Picasso, Chagall, Matisse, Lichtenstein ou Basquiat.
“A nossa ambição é lutar na Champions dos museus”, diz em resposta a uma pergunta da audiência, pintando uma imagem futebolística, “e com as armas dos outros – artistas de primeiro nível”. Os bascos não têm propriamente uma quota, é pelo seu valor que se afirmam no Guggenheim e localmente. Local vs. global, algo que a sessão inaugural da conferência também focou. Ou como formulou a vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa, “autenticidade vs. musealização das cidades”. Catarina Vaz Pinto, que reconhece estes papéis identitários, mas também de “dinamismo” económico e criativo na vida das cidades, referiu os riscos das perspectivas não planeadas do turismo cultural. “Lisboa é uma cidade que está na moda, sobretudo nos dois últimos anos houve um aumento de visitantes muitíssimo significativo”, identificou, mas tal não pode criar “cidades feitas para o turista”, “sem alma”, onde os enxames de tuk tuk, por exemplo, “autorizados sem planeamento estratégico criam problemas de ruído, poluição e de tráfego”. Ou que fazem com que, como disse o director do MNAA, que a cidade que está na moda oscile “entre o Castelo de São Jorge e os Jerónimos, deixando Lisboa no meio”.
Lá em Bilbau, as resistências parecem ultrapassadas e o protocolo com a Fundação americana está prestes a ser renovado por mais 20 anos. 2015 já tem cartaz: Jeff Koons, Niki de Saint Phalle e Making Africa. O segredo do sucesso, além do seu nome de baptismo que lhe dá credenciais, é criatividade na gestão financeira, da colecção e das mostras temporárias, vai dizendo o conferencista basco. “Sem isso, seria uma lata de titânio.”
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Cem mil pessoas visitavam anualmente a cidade na década de 1990. Nos 17 anos de vida do museu, 16,8 milhões de pessoas passaram pelas suas salas - o Guggenheim de Bilbau é “um case study cristalino e referencial” do poder do turismo cultural, como descreve o director do Museu Nacional de Arte Antiga, António Filipe Pimentel.
O caso-Guggenheim Bilbau não é, de facto, comum. “Sempre nos conheceram pela existência de um grupo terrorista chamado ETA. A cultura ajudou-nos”, sublinhou esta quinta-feira Xabier Peréz Gaubeka na Conferência Internacional de Património Cultural e Turismo: Conceitos, Realidades e Perspectivas que decorreu até sábado na Universidade Lusófona de Lisboa. A cidade basca “não é Barcelona nem Madrid”, periférica no norte de Espanha e a caminho de França. Há 30 anos, quando surgiu a ideia de ali nascer mais um museu de arte contemporânea da comunidade da Fundação Solomon R. Guggenheim, Bilbau não era Nova Iorque. Nem Veneza. Onde já existiam Guggenheim. O seu caminho também não se cruzava com a arte como o Prado de Madrid ou o Louvre de Paris.
A cidade tem cerca de 300 mil habitantes (600 mil na área metropolitana) e a sua identidade era um rio que atravessava várias realidades: a tradição industrial da siderurgia e da construção naval, a gastronomia rica, o euskera (a língua basca), as lutas autonómicas e… os atentados. Como aquele que, na semana de inauguração do Guggenheim, em Outubro de 1997, fez rebentar explosivos à porta do museu desenhado por Frank Gehry e matou um polícia.
Em 1981, o governo basco decidiu contactar a Fundação Guggenheim com o arriscado plano de criar um museu, pago pelo erário público, na cidade a preto e branco. Naquela década, Bilbau era uma cidade quase de joelhos. A crise, lembra Xabier Peréz Gaubeka durante a sua conferência dividida com António Filipe Pimentel sob o tema das grandes instalações culturais como desenvolvimento de um destino, desgastou a cidade. “Dizer aos milhares de desempregados”, recorda Peréz Gaubeka, que a aposta seria na arte, num museu, gerou contestação. Dura e longa. “Ninguém acreditava que um museu fosse capaz de transformar uma cidade, os seus habitantes e mesmo um país.”
Mas em 1997 aquilo que era uma zona de contentores na margem do rio Nervión transformou-se. Instalava-se uma escultura metálica ondulante, um dos mais celebrados trabalhos de Gehry – “escolhido porque ia ter repercussão, ser um cartão de apresentação do próprio museu”, reconhece o responsável do Guggenheim sobre o star power do edifício. Com ele, vieram os outros. Não só os artistas como Jeff Koons e o seu Puppy florido a guardar a porta do museu, mas o progresso do sector terciário e dos transportes.
Para Bilbau vieram empresas como a Microsoft ou a Google, lojas como a Louis Vuitton ou a Yves Saint Laurent, milhões de visitantes do museu que lá gastam em média 353 euros, disse Gaubeka. Nos primeiros cinco anos do museu a cidade ganhou metropolitano com projecto de outro arquitecto-estrela, Norman Foster, Santiago Calatrava renovou o aeroporto… “A transformação começou por um ponto que foi o museu” e, ao mesmo tempo, ele mudou a percepção externa da cidade e dos bascos, sendo “também um transmissor de identidade”, disse Gaubeka.
Efeito Guggenheim
Licínio Cunha, economista e professor catedrático que dirige o Departamento de Turismo da Lusófona, abriu a conferência lembrando que exactamente entre 1997, o ano de fundação do Guggenheim de Bilbau, e 2007 “os turistas de cultura duplicaram – é um dos segmentos com crescimento mais rápido no mercado do turismo”. A “aposta” política do País Basco na “regeneração de uma parte da cidade que estava abandonada” pela crise não se fez sem custos. O museu custou 90 milhões de euros a erguer, entre os três anos de construção e projectos, protocolos e negociações, pagos pelo erário público basco. Mas segundo Gaubeka, em dois anos esse valor estava amortizado em receitas fiscais. “E pouco a pouco as instituições públicas foram percebendo o valor do impacto do projecto.” O turismo chegou, espanhol e estrangeiro, e revitalizou. As expressões “efeito Bilbau” ou “efeito Guggenheim” andam por aí.
O aumento das receitas da cobrança de impostos da actividade económica nestes 17 anos rondam os 510 milhões de euros, precisa o director do departamento de projectos do Guggenheim basco, que continua a enumerar: o museu teve “3,350 milhões de euros de impacto directo no País Basco”, há “5487 empregos mantidos graças ao museu - agora menos devido à crise”, ressalva, 65% dos visitantes são de fora de Espanha, dos quais 2 a 3% são portugueses. E, mais importante que tudo, “70% de autofinanciamento” – ao contrário do modelo tipicamente europeu de dotações do Estado. “Somos o museu europeu com maior nível de autofinanciamento e o mais próximo dos museus americanos”, explicou à plateia de dezenas de pessoas no auditório da Lusófona sobre os custos anuais de 26 milhões de euros e as suas 120 empresas mecenas, as suas receitas do restaurante estrela Michelin, a sua loja, a sua bilheteira.
Da Matéria do Tempo do escultor Richard Serra ao Bigger Picture de David Hockney, da sua colecção e remixes da exposição permanente, o case study Guggenheim Bilbau conta obviamente com o apoio da fundação e da rede de museus que agora se espalha até ao Médio Oriente - e que tem um nome e marketing a condizer. Mas foi também construindo uma colecção (128 obras adquiridas em 17 anos, 73 artistas representados, 110 milhões de euros gastos, entretanto valorizadas14 vezes) sobre a base de mais de 240 peças em que há Picasso, Chagall, Matisse, Lichtenstein ou Basquiat.
“A nossa ambição é lutar na Champions dos museus”, diz em resposta a uma pergunta da audiência, pintando uma imagem futebolística, “e com as armas dos outros – artistas de primeiro nível”. Os bascos não têm propriamente uma quota, é pelo seu valor que se afirmam no Guggenheim e localmente. Local vs. global, algo que a sessão inaugural da conferência também focou. Ou como formulou a vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa, “autenticidade vs. musealização das cidades”. Catarina Vaz Pinto, que reconhece estes papéis identitários, mas também de “dinamismo” económico e criativo na vida das cidades, referiu os riscos das perspectivas não planeadas do turismo cultural. “Lisboa é uma cidade que está na moda, sobretudo nos dois últimos anos houve um aumento de visitantes muitíssimo significativo”, identificou, mas tal não pode criar “cidades feitas para o turista”, “sem alma”, onde os enxames de tuk tuk, por exemplo, “autorizados sem planeamento estratégico criam problemas de ruído, poluição e de tráfego”. Ou que fazem com que, como disse o director do MNAA, que a cidade que está na moda oscile “entre o Castelo de São Jorge e os Jerónimos, deixando Lisboa no meio”.
Lá em Bilbau, as resistências parecem ultrapassadas e o protocolo com a Fundação americana está prestes a ser renovado por mais 20 anos. 2015 já tem cartaz: Jeff Koons, Niki de Saint Phalle e Making Africa. O segredo do sucesso, além do seu nome de baptismo que lhe dá credenciais, é criatividade na gestão financeira, da colecção e das mostras temporárias, vai dizendo o conferencista basco. “Sem isso, seria uma lata de titânio.”