Uivo, um documentário para reencontrar e descobrir António Sérgio
O filme realizado por Eduardo Morais estreia-se este sábado no Palácio Foz, em Lisboa. Sessões às 16h30 e 21h30.
António Sérgio, que a morte levou a 1 de Novembro de 2009, foi divulgador e formador de várias gerações, foi editor rebelde com visão, foi “aquela” voz inconfundível, grave e ponderada. No limite, foi maior que muita da música que passou. Apaixonado, sempre. Pela música das margens, fossem elas as do Mississipi, do Tamisa, do Hudson, do Niger ou do Tejo.
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António Sérgio, que a morte levou a 1 de Novembro de 2009, foi divulgador e formador de várias gerações, foi editor rebelde com visão, foi “aquela” voz inconfundível, grave e ponderada. No limite, foi maior que muita da música que passou. Apaixonado, sempre. Pela música das margens, fossem elas as do Mississipi, do Tamisa, do Hudson, do Niger ou do Tejo.
Eduardo Morais, realizador de 28 anos, conhecia o mito mas faltava-lhe biografia. Não o ouvira enquanto crescia, como a geração a quem António Sérgio, na passagem da década de1970 para a de 1980, abriu as portas para uma nova realidade, a do punk e new-wave, em programas como Rolls Rock, Rotação ou Som da Frente. Quando quis saber mais, Eduardo pouco encontrou. Decidiu então investigar a história por trás do mito. O resultado é Uivo, o seu terceiro documentário depois de Meio Metro de Pedra, dedicado ao rock português enquanto contracultura, e Música em Pó, sobre o fascínio pelo universo do vinil.
Uivo tem estreia este sábado, no Palácio Foz, em Lisboa, com duas sessões (16h30 e 21h30) em que será também apresentado Uivo da Matilha, livro, acompanhado pelo DVD do documentário, que recolhe de cartas escritas postumamente a António Sérgio por admiradores, músicos ou outros radialistas, compilado por Ana Cristina Ferrão, sua mulher e cúmplice inseparável. Na sessão nocturna haverá igualmente música, a cargo de Fast Eddie Nelson, The Fellow Man e Charles Sangnoir. Uivo correrá depois o país em mais 19 exibições. Barcelos, Santo Tirso e Coimbra, nos dias 6, 7 e 8 de Novembro, são as próximas datas.
Eduardo Morais quis fazer de Uivo (o título é referência ao programa A Hora do Lobo) uma homenagem. “[António Sérgio] tinha o gosto e o prazer de divulgar. Quis prestar homenagem a uma pessoa que foi o divulgador máximo”. Realizador independente, Eduardo Morais recorreu tal como anteriormente ao crowdfunding para reunir a quantia necessária à produção do documentário. Colocou como tecto três mil euros, os necessários para trabalhar seis meses exclusivamente no filme. A resposta obtida deu-lhe desde logo conta da dimensão do homem cuja vida e legado iria documentar. “Estava reticente. Pedir três mil euros não será demais?”. Não era. Em apenas duas semanas, atingiu esse valor. “Quando [a iniciativa] começou a ser divulgada, comecei a receber mensagens de todo o país. Admiradores, profissionais da rádio que me diziam que lhe deviam a carreira, que só fazem o que fazem por causa dele".
Cruzando material de arquivo (fotos, algum vídeo, registos áudio) com entrevistas a familiares, amigos, jornalistas, músicos directamente influenciados pelo seu trabalho (Zé Pedro, João Peste, os Gift), companheiros de rádio seus contemporâneos, como Luís Filipe Barros ou Jaime Fernandes, ou seus descendentes, como Álvaro Costa, Nuno Calado ou Miguel Quintão, Uivo ilustra o percurso do homem nascido em Benguela, em 1950, e chegado a Lisboa treze anos depois, já com a rádio como presença marcante na sua vida (tanto o pai como a mãe eram locutores).
Acompanhamos desde o percurso nas madrugadas na Renascença à criação de programas emblemáticos como o Rolls Rock, o Rotação, o Som da Frente, o Lança Chamas, dedicado ao heavy metal, ou o Louras, Ruivas e Morenas, criado com Ana Cristina Ferrão e dedicado ao rock no feminino. Numa altura em que as rádios nacionais mostravam pouco interesse e ouvidos pouco atentos à novidade que brotava nas ruas de Londres ou Nova Iorque, António Sérgio foi um farol. “A revolução [do 25 de Abril] tinha acontecido há cinco anos”, contextualiza em Uivo Jon Marx, autor do blog A Lista Rebelde, criado como homenagem a António Sérgio após a sua morte. Recorda que vivia num país de “costumes fechados”, ouvindo slogans políticos “vazios de conteúdo”. António Sérgio, diz, trouxe-lhe novos slogans, nada vazios: “Direito à diferença”; “para uma imensa minoria”. Não havia música indie ou música alternativa. Havia “som da frente”.
Enquanto isso, António Sérgio entrevistava Devo ou Stranglers e estes deixavam “marcas profundas nos corredores da Renascença”. Enquanto isso, em tempos muito pré-internet em que a informação circulava com dificuldade, António Sérgio servia de guia a todos os que o escutavam país fora, das grandes cidades às pequenas vilas do interior. “A primeira vez que ouvi hip hop, o The Message de Grandmaster Flash, foi através do António Sérgio”, recorda no filme o crítico Ricardo Saló. “Era a única pessoa a quem levávamos maquetas. Era o único cuja opinião nos interessava”, conta Zé Pedro, dos Xutos & Pontapés.
O trabalho de divulgação não se ficava pela rádio. Nela divulgava em estreia mundial os PiL de John Lydon (um amigo em Londres, Rui Castro, recebeu, por engano, as demos enderaçadas ao vizinho Lydon, enviou-as a António Sérgio e quando a editora tentou resgatá-las já era tarde demais). Fora dela colaborava na produção do álbum dos Corpo Diplomático, editava os Xutos & Pontapés pela editora Rotação, criava Punk 77, álbum pirata que apresentava ao país a nova vaga britânica.
Dar a conhecer, divulgar, partilhar a música que via como mais relevante, mais excitante, a cada momento. “Durante todos aqueles anos, lançou desde os Xutos, aos Dealema, aos Gift”, aponta Eduardo Morais. “Ao longo do tempo foram-lhe oferecidos cargos de chefia e sempre recusou”, conta o realizador. Continua: “O que gostava mesmo era de divulgar as bandas quando estavam a crescer. Quando se estabeleciam, o interesse era menor. E não era de todo uma postura arrogante ou elitista. Era mesmo o prazer de dar a conhecer. Quando as bandas se tornavam grandes, já não precisavam do seu apoio”. E António Sérgio partia em busca de novos sons, de novo talento.
A determinado momento da entrevista, Eduardo Morais tenta colocar-se na posição de muitos dos entrevistados de Uivo, os que estavam do outro lado da rádio: “Imagino como seria ser um miúdo nos anos 1980 e ouvir aquela voz super característica, sem fazer ideia de quem era a pessoa por trás dela. Havia quase um misticismo naquela voz”. Uivo, diz, é para aqueles que, como ele, sabiam da importância de António Sérgio mas não o conheciam verdadeiramente.
“Costumo dizer, e normalmente sou mal interpretado, que não faço os documentários para os lobos-do-mar, para o pessoal da velha guarda que já sabe tudo. Faço-os para o público mais novo, que não sabe. Claro que tento manter o equilíbrio entre a homenagem, para os mais velhos, e a novidade, para os mais novos. Mas interessa-me muito mais que estes conheçam o António Sérgio e que lhe dêem o devido valor. Aliás, a intenção do António Sérgio nunca foi que as pessoas ficassem agarradas a um tempo”.
Este documentário surge para que queiramos seguir-lhe o exemplo. Curiosos, atentos, activos, apaixonados. Olhamos em frente. O uivo continua a ecoar.