Sou lisboeta

Sou lisboeta, não conheço os meus vizinhos nem quero, nada me envenena a existência como uma reunião de condomínio e à mínima coisa ameaço com processos de tribunal que nunca se concretizam

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Enric Vives-Rubio

Sou lisboeta, detesto que me chamem “alfacinha”, os meus avós são de muito longe daqui, dum sítio donde vêm batatas, fruta e vinho mau; lambo-me todo com bitoques, pastéis-de-nata, caracóis e castanhas assadas. Tenho o “L” e sei de cor todas as paragens de pelo menos duas linhas de autocarros, o metro conheço como a palma da mão, até sei o momento exacto em que a vozinha anuncia a próxima estação.

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Sou lisboeta, detesto que me chamem “alfacinha”, os meus avós são de muito longe daqui, dum sítio donde vêm batatas, fruta e vinho mau; lambo-me todo com bitoques, pastéis-de-nata, caracóis e castanhas assadas. Tenho o “L” e sei de cor todas as paragens de pelo menos duas linhas de autocarros, o metro conheço como a palma da mão, até sei o momento exacto em que a vozinha anuncia a próxima estação.

Sou lisboeta, sei perfeitamente que não há sete colinas coisa nenhuma, não dou trocos a arrumadores e só deixo gorjeta quando o rei faz anos, posso comover-me com velhos a pedir e músicos de rua mas nunca dou esmolas a putos, se se me atacar a caridade cristã ou a humanidade básica pago-lhes um pão de leite com fiambre e um galão e vão cheios de sorte os gandins.

Sou lisboeta, gosto muito de ver os eléctricos amarelos a passar mas detesto apanhá-los pela frente no trânsito e não me lembro da última vez que entrei num. Passo a rua em qualquer lugar e de qualquer maneira sem ligar a passadeiras nem luzes nem camiões a vir. Tenho um café preferido ao pé de casa e outro junto do trabalho, e mais dois de recurso quando os primeiros estão fechados. Tenho também muito provavelmente uma maneira específica de beber a bica, que o empregado habitual já conhece, e acho o copo de água que a acompanha um direito adquirido.

Sou lisboeta, não tenho sotaque mas digo “oralha” e “ovalha” em vez de orelha e ovelha; não abro a porta a jeovás e não papo procissões. Vou muito a concertos, às vezes ao teatro, cada vez menos ao cinema e a pior coisa que me fizeram foi acabarem com a Feira Popular, os corruptos. Não gosto de polícias e gozo com a ASAE mas só odeio intensamente os chulos da EMEL. Vou ao hipermercado, ao supermercado e ao comércio local, sei o nome da padeira e o do velhote da fruta, todos os outros têm alcunhas gozonas só cá de casa.

Sou lisboeta, não conheço os meus vizinhos nem quero, nada me envenena a existência como uma reunião de condomínio e à mínima coisa ameaço com processos de tribunal que nunca se concretizam. Mas vivo numa aldeia de 2 quarteirões a que sinto o pulso cada vez que meto a cabeça fora da janela. Tenho uma praia específica na Caparica e adoro ir a Sintra apesar da IC19. Reconheço chungaria a 500 metros de distância, sei onde comprar haxixe decente, a que bomba de gasolina ir buscar tabaco e sacos de gelo às três da manhã mas ainda não aprendi a andar de escadas rolantes como um cidadão civilizado.

Sou lisboeta, adoro mandar turistas na direcção errada e nada me mete mais medo do que chuvas súbitas e intensas e greves dos transportes. Adoro cruzar-me com as pífias celebridades nacionais mas finjo-me sempre plácido e cosmopolita. Ouço música alto, cuspo no chão, atiro beatas pela janela, não apanho as cagadelas do canito e aproveito os sinais vermelhos para limpar a sala.

Sou lisboeta, vou mais ao Colombo do que admito, falo dos suburbanos com condescendência, odeio o Pinto da Costa, toda a água do meu corpo veio do Tejo, sei que a maior festa deste país é o Santo António, às vezes vou ouvir fado, já viajei mas poucas vezes vi algo mais bonito que um dia a nascer de São Pedro de Alcântara, que o sol da tarde a bater no rio ali entre Belém e a ponte.