Sequenciar 1% do ADN para diagnosticar doenças raras
A técnica dita de “sequenciação do exoma” revela-se capaz de identificar mutações raras, causadoras de doença, quando os testes genéticos convencionais falham, concluem dois grandes estudos.
Ela e o marido, Eric, consultaram quatro neurologistas, que acharam que os sintomas não eram inquietantes. Mesmo assim, submeteram o bebé a uma bateria de testes para tentar identificar a causa dos seus problemas de desenvolvimento — aos quais se juntavam problemas digestivos crónicos. Mas em vão.
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Ela e o marido, Eric, consultaram quatro neurologistas, que acharam que os sintomas não eram inquietantes. Mesmo assim, submeteram o bebé a uma bateria de testes para tentar identificar a causa dos seus problemas de desenvolvimento — aos quais se juntavam problemas digestivos crónicos. Mas em vão.
Foi por essa altura, em 2012, que a Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) começou a aplicar clinicamente uma nova técnica de diagnóstico genético. Designada “sequenciação do exoma”, destina-se a identificar doenças genéticas quando os outros testes falharam mas que se suspeita que os sintomas observados são devidos a mutações muito raras num único gene. Diga-se para já que, sequenciando apenas 1% do genoma, a técnica pode detectar mutações que de outra forma passariam despercebidas.
Como explica em comunicado aquela universidade norte-americana, em desespero de causa os pais aceitaram que Calvin, na altura com 13 meses de vida, fosse o primeiro ser humano a ser ali testado com a nova técnica. Umas semanas depois, o mistério fora desvendado. Mas as notícias não eram boas.
Mais de dois anos volvidos — e depois de ter testado várias centenas de casos tão enigmáticos como o de Calvin —, a equipa da UCLA, liderada por Stan Nelson, acaba de publicar, no Journal of the American Medical Association (JAMA), um estudo que mostra que a sequenciação do exoma pode ser mais eficiente do que os testes genéticos convencionais — e defendem que tem potencial para ser utilizada de forma rotineira no diagnóstico genético.
Por outro lado, na mesma edição da JAMA, uma outra equipa norte-americana, liderada por Yaping Yang e Christine Eng, do Colégio de Medicina Baylor, em Houston, apresenta resultados semelhantes, obtidos independentemente com base na sequenciação do exoma de cerca de 2000 doentes.
Lábios em flor
De que sofre Calvin? De uma doença muito rara chamada síndrome de Pitt-Hopkins. Mal saiu o veredicto, Audrey, antiga jornalista, procurou tudo o que havia para saber acerca da doença do seu filho.
A síndrome foi descrita pela primeira vez em 1987 e o gene que a provoca só foi descoberto 20 anos depois, em 2007. Chamado TCF4, situa-se no cromossoma 18 e desempenha um papel essencial no desenvolvimento do sistema nervoso. Já se conhecem uns 350 casos no mundo e poderão ser muitos mais. Mas quando Calvin foi diagnosticado, quase ninguém tinha ouvido falar dela.
As pessoas com esta síndrome apresentam certas características faciais: boca ampla, com os cantos do lábio superior virados para cima e a parte central cavada e um pulposo lábio inferior, numa espécie de eterno sorriso em que “os lábios parecem prestes a beijar alguém”, lê-se em pitthopkins.org, o site da fundação lançada por Audrey Lapidus, o marido e outras famílias afectadas, para incentivar a pesquisa de tratamentos e de uma cura para a síndrome.
Os doentes costumam também ter os olhos rasgados, o nariz algo achatado e com a ponta carnuda, as orelhas proeminentes e a testa um pouco recuada em relação às bochechas e ao queixo. Existem ainda outros traços distintivos, nomeadamente ao nível dos dedos das mãos.
Muitas vítimas sofrem, desde muito cedo, de crises de epilepsia, problemas gastrointestinais e respiratórios — e de deficiências do desenvolvimento físico e mental. A maior parte das pessoas com Pitt-Hopkins nunca aprendem a falar e ficam confinadas a uma cadeira de rodas.
Uma curiosidade histórica: o caso talvez mais antigo registado está pintado numa parede do palácio real de Kensington, em Londres. Trata-se do retrato de um rapaz, apelidado de Peter the Wild Boy (o rapaz selvagem), que foi encontrado em 1725 numa floresta alemã, causou furor na Inglaterra do Século das Luzes e foi “mascote” das cortes dos reis britânicos Jorge I e II.
Há uns anos, especulou-se, com base no retrato e em descrições do comportamento do rapaz pelos seus contemporâneos, que Peter era autista — o que não admira, visto que, até há pouco, a síndrome de Pitt-Hopkins era considerada como uma forma atípica de autismo. Mas em 2011, o geneticista britânico Phil Beals, do University College de Londres, consultou uma base de dados genética e concluiu, ao olhar para o retrato, que Peter sofria muito provavelmente da mesma síndrome que agora afecta o pequeno Calvin.
Por que é que os pais de Calvin insistiram tanto em obter um diagnóstico — quando, para mais, o mais provável era que, a tratar-se de uma doença genética, ela não ira ter tratamento nem cura? “Queria saber o que podíamos esperar — e claro, tinha a louca esperança de que os testes voltariam normais e que tudo ia correr bem para Calvin, mesmo com um pequeno atraso”, disse ao PÚBLICO Audrey Lapidus.
“E também, o facto de não saber o que Calvin tinha era o pior que podia acontecer”, acrescenta. “Seria o meu filho capaz de andar um dia? Sofria de uma doença terminal? Que outros sintomas poderiam vir a surgir? Foi o diagnóstico que permitiu responder a estas perguntas — e embora o resultado não fosse o que eu tinha desejado, pelo menos agora tenho um roteiro para o futuro...”
Mais: apesar da má notícia e de efectivamente não existir tratamento nem cura para a síndrome de Pitt-Hopkins, o facto de ter finalmente entre mãos um diagnóstico conclusivo permitiu melhorar o bem-estar de Calvin “de inúmeras maneiras”, salienta Audrey Lapidus. “Primeiro, encontrei uma comunidade de outros pais cujos filhos tinham a mesma doença. Hoje, somos como uma família. Estamos sempre a trocar emails sobre como gerir a medicação contra as crises epilépticas e muitas outras coisas. O diagnóstico também me permitiu aceder a uma série de serviços, como fisioterapia e terapia da fala — e começar a angariar dinheiro para esta causa.”
“Calvin é hoje um rapazinho muito doce e feliz, mas não fala nem caminha. Consegue rastejar um pouco, mas mesmo gatinhar é toda uma luta. E tem sérios problemas gastrointestinais,” diz-nos ainda Audrey Lapidus. Na passada terça-feira, Calvin começou a ir ao infantário.
Uma agulha num palheiro
Em que consiste a “sequenciação do exoma”, a técnica que até hoje já permitiu não só diagnosticar a doença de Calvin, mas também uma série de outras doenças genéticas muito raras? O exoma é a parte do nosso ADN que contém os genes propriamente ditos. Representa apenas 1% do genoma, mas é aí que surgem 85% dos milhares de mutações individuais causadoras de doença (há quem diga que são mais de 6000) actualmente catalogadas.
Ao contrário do genoma no seu todo, que contém três mil milhões de “pares de bases” — os tijolos de construção que formam a longa cadeia do ADN —, o exoma contém apenas uns 37 milhões de pares de bases, que compõem os cerca de 20.000 genes humanos. Isto torna possível, com as actuais técnicas de sequenciação genética, obter com relativa facilidade uma “imagem global” das variantes genéticas que os genes de uma pessoa encerram — e, graças a grandes bases de dados genéticos e à descrição dos sintomas dos doentes, associar essas variantes genéticas a doenças até aqui misteriosas.
É certo que existem testes de diagnóstico genético para uma série de doenças provocadas por mutações num único gene, como a mucoviscidose ou a doença de Huntington, mas esses testes escrutinam apenas uma diminuta região do ADN (um gene), explica ainda o comunicado da UCLA. Pelo contrário, a técnica de sequenciação do exoma permite “varrer” a totalidade dos genes, à procura, por comparação com um exoma de referência, de mutações muito raras e potencialmente patológicas presentes no genoma.
A tarefa ainda se assemelha a procurar uma agulha num palheiro — e a técnica falha em muitos casos, como também o mostram os dois estudos —, mas como o palheiro do exoma é muito mais pequeno que o do genoma inteiro, as hipóteses de sucesso são maiores.
Em ambos os estudos, que demoraram cerca de dois anos a completar e que abrangeram um total de quase 3000 pessoas cujos sintomas tinham deixado perplexos os clínicos, apesar da realização de inúmeros testes genéticos, bioquímicos e radiológicos, os autores mostraram que a sequenciação do exoma permite descobrir a mutação responsável em cerca de 25% dos casos.
E Stan Nelson e colegas da UCLA foram mais longe: no caso das 138 crianças por eles testadas que tinham menos de cinco anos e apresentavam atraso intelectual ou do desenvolvimento — casos particularmente complexos — mostraram que, quando os exomas dos pais também eram sequenciados e comparados ao da criança, a taxa de sucesso na identificação da mutação em causa subia para 41% (contra 9% quando o exoma dos pais não estava disponível).
Esta substancial melhoria da taxa de sucesso do diagnóstico através da sequenciação de “trios” de exomas (criança-pai-mãe) — um procedimento que, nos EUA, custa à volta de 5000 euros e é coberto por muitas seguradoras, diz o comunicado — deve-se ao facto de muitas das doenças raras em causa serem causadas por mutações que só é possível detectar comparando o ADN da criança ao dos seus pais.
Por um lado, porque pode tratar-se de mutações novas, que não estavam presentes nos pais — e que só uma tal comparação revela. Por outro, porque podem ser mutações que, embora já estejam presentes nos pais, são diferentes em cada um deles. Sozinhas, podem não provocar doenças, mas ao combinarem-se num filho, no mesmo local do seu genoma, inactivam completamente o gene afectado — bloqueando, por exemplo, a produção de alguma proteína essencial — e, juntas, tornam-se assim patológicas.
“O nosso estudo é o primeiro a mostrar que a sequenciação do exoma de uma criança juntamente com os dos seus pais melhora de forma espectacular a capacidade de se chegar a um diagnóstico genético firme no caso de doenças raras”, diz Stan Nelson.
Estes autores escrevem na JAMA que, dos 127 casos (crianças e outros) em que foram realizados trios de sequenciações do exoma, 50% revelaram ter uma variante genética nova no gene afectado e 27% uma conjugação patogénica de duas mutações diferentes, uma vinda da mãe e a outra do pai. Em particular, os dois casos de crianças com síndrome de Pitt-Hopkins que os autores relatam no artigo foram provocados por mutações novas.
Ambos os estudos salientam que a técnica também tem o potencial de revelar mutações patológicas até aqui desconhecidas — ou recentemente identificadas mas cujo carácter patogénico ainda não foi confirmado.
Todavia, todos concordam em dizer que a utilidade médica da técnica — seja ela aplicada ou não a trios de exomas — ainda está por confirmar. “As implicações clínicas dos nossos resultados precisam de ser aprofundadas antes de a sequenciação de exomas se tornar um procedimento de rotina”, conclui a equipa da UCLA.
A técnica não é uma panaceia: em cerca de 75% dos casos agora descritos, não devolveu um diagnóstico. “A sequenciação do exoma não detecta todas as doenças”, diz-nos Audrey Lapidus. “E não deve ser considerada como o final da linha [pelos pais] quando não resulta.”