Maria Antónia Palla: "Não tinha, como não tenho ainda hoje, respeito pelas hierarquias"

Dedicou a vida à luta pela liberdade, através do jornalismo e na defesa das suas causas. Feminista emblemática, Maria Antónia Palla edita as suas memórias. Onde aparece a sua relação com o filho, António Costa.

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Maria Antónia Palla, senhora de uma vida cheia Nuno Ferreira Santos

Tem aparecido na comunicação social nos últimos tempos porque é mãe de António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, candidato a secretário-geral do PS e a primeiro-ministro. Situação que gere com distância, separando o filho do político, mas assumindo as expectativas sobre "se ele vai conseguir ou não fazer uma mudança tão profunda quanto" ela deseja.

Senhora de uma vida cheia, em que a sua sede de liberdade e a sua coragem a levaram a rasgar fronteiras, é uma combatente de causas, tendo-se destacado como feminista e como jornalista. Por vezes, as duas condições associaram-se, como quando, em 1976, aceitou fazer com Antónia de Sousa a série de documentários Mulher para a RTP.

Anos depois de escrever escapando à censura do Estado Novo, foi em democracia que se sentou no banco dos réus por "ofensa ao pudor e incitamento ao crime" após a direcção da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, ter feito queixa de si por "exercício ilegal da medicina". Tudo porque Maria Antónia Palla foi a autora e responsável do programa Aborto não É Crime, incluído na série Mulher e emitido em Fevereiro de 1976. Absolvida em 1979, o seu processo funcionou como base de lançamento da campanha para a despenalização do aborto.

A outra causa que protagonizou após o 25 de Abril, mas aqui com menos sucesso, foi a da luta pela democracia em Angola. O seu apoio a Jonas Savimbi levou-a várias vezes à Jamba.

Jornalista emblemática, foi a primeira mulher inscrita no Sindicato dos Jornalistas, a cuja direcção ascendeu depois do 25 de Abril, com mais duas mulheres, Maria Antónia de Sousa e Maria Antónia Fiadeiro. Maria de Lurdes Pintasilgo chamou-lhes "as três Antónias", adaptando a imagem das "três Marias", aplicada às autoras das Novas Cartas Portuguesas: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.

Em 1968, com Margarida Silva Dias e Maria Armanda Passos, constituiu o primeiro grupo de mulheres jornalistas a serem admitidas por concurso na redacção do Diário Popular — depois de Maria Virgínia Aguiar ter pertencido por um breve período àquela redacção, que teve de abandonar porque tinha cometido "o horrível pecado de engravidar".

Despedida do Diário Popular, por insistir em fazer um balanço do Maio de 68 em Paris, que editou em livro — Revolução, Meu Amor —, entrou no Século Ilustrado, sendo a primeira mulher a integrar a redacção da empresa Século — com a garantia dada por Francisco Mata a Guilherme Pereira da Rosa de que era mulher mas "escreve como um homem". No Século Ilustrado chegou a chefe de redacção ainda antes do 25 de Abril. Mas foi em democracia que viu fechar o império da comunicação que era a empresa Século.

Como vê hoje o facto de o seu trabalho como jornalista a ter levado a ser acusada de "ofensa ao pudor e incitamento ao crime" em 1976, já em democracia?
São as contradições dos fenómenos históricos. O aborto era realmente um problema sensível, mas não para a sociedade portuguesa, porque o aborto era divulgadíssimo em Portugal. Para uma larga margem da população era o único método contraceptivo. Não sendo, era usado como tal. Mas realmente, para os detentores do poder, sabia-se que se fazia, mas era daquelas coisas de que não se falava. E como as grandes vítimas eram as mulheres, ainda menos se falava. Até não vou dizer que as grandes vítimas eram as mulheres mais pobres. Eu não tenho essa ideia.

Era transversal?
Todas as mulheres da minha geração, da classe média ou da classe alta, fizeram abortos. E todas nós corríamos os riscos dos abortos feitos a sangue-frio ou, quando havia mais dinheiro, com anestesia, mas sem controlo da anestesia. Isso também causou mortes. Depois do 25 de Abril, em relação à mulher, a luta que havia a fazer era mesmo a do aborto.

Os três anos do seu julgamento acabaram por ser decisivos na luta pela despenalização do aborto. Acabou por pressionar os partidos. Concorda?
É. Lançou a campanha. E não pressionou só os partidos, mas as associações. Permitiu que as associações de mulheres de diferentes ideologias se tivessem juntado e feito uma campanha nacional, que se chamou Campanha Nacional para a Contracepção e Aborto. A imprensa foi actuante e muito apoiante da ideia de legalizar o aborto. E depois houve o sentimento também de que era uma causa popular. Nesse tempo, nunca fui abordada na rua por pessoas que me insultassem ou que me dissessem coisas desagradáveis. Não. Toda a gente vinha ter comigo, os empregados das pastelarias, por exemplo, e diziam: "Coragem, minha senhora. Este problema tem de se resolver." Isto também sensibilizou a classe dos juristas e quer o juiz quer o delegado do Ministério Público pediram a minha absolvição. Com esta conclusão: que eu, como jornalista, tinha não só o direito mas o dever de tratar de um problema social que atingia a sociedade de uma forma tão grave. A Associação de Planeamento Familiar calculava que em Portugal se realizavam cerca de 300 mil abortos por ano.

O que estava em causa não foi só um problema de liberdade de imprensa, mas de liberdade e de direitos das mulheres. Dedicou a vida à defesa dos direitos das mulheres. Concorda?
Não fiz o que fiz só pelos direitos das mulheres, mas essa causa esteve sempre presente nas minhas preocupações. Entrei para o Diário Popular em 1968.

Foi a primeira a fazê-lo no Estado Novo?
Tinha lá estado a Maria Virgínia Aguiar, que tinha cometido o horrível pecado de engravidar. O Francisco Balsemão abriu um concurso a que concorreram vinte e tal jovens, entre os quais três mulheres, e entrámos as três: eu, a Margarida Silva Dias e a Maria Armanda Passos. Elas acabariam por desistir da profissão, a única que nunca desistiu fui eu. Mas três meses depois de eu entrar na redacção do Diário Popular — sendo que já colaborava para a página literária havia dois anos —, ganhei um prémio por publicar uma reportagem sobre as mulheres dos alcoólicos.

Já era uma preocupação sua.
Mesmo antes disso. Uma pessoa que contribuiu muito para a minha formação foi a Maria Lamas, que conheci com 18 anos. E a minha avó, de que falo muito no livro, que era uma republicana. Ela não usava a palavra feminista, mas era. Defendia a independência económica da mulher como base da sua liberdade: "Nunca serás uma mulher livre se não tiveres independência económica."

Como se define enquanto feminista?
Há vários feminismos consoante a ideologia de uma pessoa, mas para mim é a consciência que as mulheres tomam de que têm direitos e que esses direitos são específicos e estão ligados à sua condição de mulheres. Houve várias etapas nessa luta pela afirmação dessa igualdade de direitos, mas penso que a luta deve fazer-se no sentido de fazer perceber à sociedade, mas sobretudo aos homens, que ainda são hoje os grandes detentores do poder, que a igualdade de direitos não pressupõe as mulheres dizerem que são iguais aos homens. As mulheres devem preservar a sua diferença, porque ela é enriquecedora.

É complementar?
É complementar. Nós não somos o sexo frágil. As mulheres são as pessoas que sabem organizar-se melhor, sabem conciliar actividades diferentes, têm um sentido de responsabilidade mais apurado. Defendo a participação das mulheres, enquanto mulheres, em todas as instâncias, em todos os organismos, em todas as instituições decisivas para a sociedade porque elas têm mais sensibilidade e mais capacidade para perceber o que é a vida quotidiana.

Que tectos falta romper?
Chegámos a uma concepção de paridade. Mas as mulheres na política tendem a cumprir os modelos masculinos. Isso também se deu no jornalismo. Porque os homens são maioritários e detêm o poder.

 Do livro percebe-se que viveu sempre o jornalismo como forma de viver a liberdade, foi uma pioneira em vários momentos. Teve noção de que estava a rasgar fronteiras?
Não se percebe quando se faz. As pessoas fazem coisas obedecendo a um imperativo de consciência. Quer dizer, tinha consciência de que não havia mulheres integradas em redacções e passou a haver.

Quando decide ir para Paris, em férias, e faz o balanço do Maio de 68, tem noção de que estava a desafiar o poder dentro do jornal? Que conduziu aliás ao seu despedimento do Diário Popular.
Nessa atitude houve, por um lado, o enorme interesse que eu tinha pelo assunto e uma certa ingenuidade da minha parte relativamente às relações de trabalho. Havia hierarquias a respeitar e eu não tinha muita consciência disso. Não tinha esse respeito, como não tenho ainda hoje pelas hierarquias. Já quando estive de férias em Luanda e a Maria Virgínia Aguiar, que estava lá ligada à revista Notícia, me disse, "Não pode ir embora sem ver o mato", nessa altura, tive o cuidado de telegrafar ao meu chefe de redacção, que era uma pessoa mais jovem, mais aberta. De um modo geral, os semanários têm uma estrutura mais leve que os diários. A resposta que recebi foi: "Boa sorte!" Nos diários havias pessoas democratas, mas com uma visão conservadora e hierarquizada. Quando eu dava uma gargalhada na redacção, toda a gente olhava.

 Uma das suas características são as suas gargalhadas.
Exactamente!

Alguma vez sentiu medo, antes ou depois do 25 de Abril?
É estranho. Se me definisse a mim própria, diria que sou uma pessoa medrosa. Mas quando se trata de trabalhar, o medo desaparece. Por exemplo, estava havia pouco tempo no Diário Popular quando houve um ciclone em Lisboa e o trabalho que me destinaram foi contar as chaminés que tinham caído em Lisboa, em cima de um telhado na Rua da Madalena, de madrugada. E se me perguntar se eu sou capaz de ir acima de um telhado, eu digo-lhe que não. Por exemplo, voar, como fiz várias vezes para a Jamba, durante a noite, num avião com luzes apagadas, sobre território inimigo. Se me disser "quer ir fazer isto?", eu não vou. Mas quando se trata de trabalho ou de defesa de uma causa, eu esqueço tudo e vou.

Mas teve medo?
Olhe a minha experiência de grande medo foi durante as eleições do Humberto Delgado. No dia de um comício no Liceu Camões, estava com um grupo num café. A GNR entra. Nós fugimos para uma escada. Batemos às portas. Ninguém abriu. Descemos e na entrada do prédio estava um guarda a cavalo de sabre desembainhado. Aí eu tive medo. Mas ele deixou-nos sair. E tenho medo dos bicharocos, quando vou para África vou sempre cheia de repelentes antivoantes, anti-rastejantes, mas vou. Nunca deixei de fazer nada por causa do medo. O ser corajosa não é a ausência de consciência em relação ao medo, é a capacidade de a pessoa, porque acha que tem de fazer determinada coisa, ultrapassar o medo e avançar.

Integrou o Século Ilustrado e a Vida Mundial, que pertenciam ao grande império de comunicação social que foi o Século. E há um paradoxo, o Século aguentou toda a ditadura e é em democracia que fecha. Por que fechou o Século?
Fecha porque, sendo o Século uma empresa tão importante, os trabalhadores se dividiram em relação a uma orientação que era perfeitamente totalitária e contrária à orientação tradicional do jornal. O Século tinha uma grande tradição democrática que se reflectia nas nossas relações de trabalho, com a administração, com a direcção, entre nós. Éramos 800 trabalhadores.

Era uma orientação determinada pelo PCP?
Era determinada pelo PCP e por alguns grupos esquerdistas. Instituíram uma comissão de censura onde as pessoas tinham sido sempre livres. Quer dizer, havia a Censura do Estado Novo, mas as chefias sempre nos defenderam muito em relação à Censura. Essa orientação traía o pacto que deve existir entre um jornal e os leitores. Isso passou-se sobretudo com o jornal, não tanto com as revistas. Com a ajuda do Copcon [Comando Operacional do Continente], metade dos trabalhadores foram expulsos. Só voltámos ao Século após o 25 de Novembro [de 1975]. O poder olhou para o Século e viu que aquela empresa não era dominável. O PS, em minha opinião, não compreendeu — e penso que até hoje não compreendeu muito bem, embora tenha feito um esforço — o que é liberdade de imprensa. Evocou razões económicas para fechar o Século.

Como vê o jornalismo hoje?
Não há dúvida de que em certos aspectos se melhorou. O desaparecimento da censura, enquanto instituição externa, fez melhorar o jornalismo. Mas os constrangimentos económicos impostos pelas administrações são muito maiores que naquele tempo. Naquele tempo, as administrações tinham pelo menos percebido que quanto mais livres os jornalistas fossem, mais jornais se vendiam. Por outro lado, há uma corrente, com a qual eu discordo, segundo a qual o jornalista tem de ser muito objectivo. Não pode ter causas. Não pode dar opiniões, a não ser na secção da Opinião. E tem de fazer textos muito curtos. Isso faz a secura da prosa que encontramos nos jornais, em que os jornalistas não deixam transparecer nem um grama de emoção, o que os impede de concorrer com o que já vimos na televisão. As televisões não só têm muitos noticiários como muitos debates. É claro que nesses debates há muito poucas mulheres, sobretudo quando é de política pura e dura. Hoje em dia também há o facto de que se chama ética a questões que não têm nada a ver.

O que quer dizer com isso?
Com a questão da ética se mascara a procura genuína das causas dos fenómenos, sobretudo no campo das grandes questões sociais. Depois, os jornalistas dispõem de pouco tempo e de pouco espaço. E tudo isso coarcta muito a liberdade de expressão e coarcta o sentido de que a imprensa deve contribuir para desenvolver o espírito crítico dos cidadãos. Quando me dizem que um jornalista não vai a um comício a não ser quando está de serviço considero isso uma castração. Se olharmos para o passado, os grandes jornalistas foram muito intervenientes na sociedade, como cidadãos. Eles não acham que são, mas no fundo actuam como cidadãos de segunda, estão coarctados na sua participação cívica, enquanto o jornalismo é uma forma de participar civicamente. Há uma coisa que tem de se encarar. A imparcialidade não existe. As pessoas podem é aproximar-se da verdade. Dou um exemplo: há dias uma criança morreu a tentar salvar os irmãos de um incêndio. Todos os jornais e televisões falaram deste caso. Ninguém levantou a questão de saber o que estavam a fazer aqueles pais? Tem-se quatro filhos e às quatro da manhã não se está em casa?!

Uma das suas causas é Angola e a democracia em Angola. Como olha hoje para Angola?
Angola está como todos os países em que a democracia não existe. Não existindo democracia não há desenvolvimento e não existindo desenvolvimento perdemos todos. Porque os países desenvolvidos também não aumentam os seus mercados.

A sua fome de liberdade levou-a a desconfiar do igualitarismo e a aproximar-se da defesa da igualdade de condições professada pela social-democracia. Continua a sentir que o caminho da liberdade é o da social-democracia?
Bom, até inventarmos outra coisa.

Sendo próxima do PS, sempre foi crítica do poder socialista. O clímax da sua atitude crítica perante o poder foi a sua batalha contra o Governo Sócrates quando este fechou a Caixa de Previdência dos Jornalistas. Fez então um abaixo-assinado contra o Governo, no qual o seu filho era ministro da Administração Interna. Voltaria a fazê-lo?
Absolutamente. O meu filho é o meu filho. O que ele faz como político é como político. Eu tenho, até por treino profissional, uma certa capacidade de criar distanciamento. Eu sou pela emoção, mas também crio os distanciamentos devidos. Mas em relação ao fim da Caixa de Previdência, eu cortei relações com o PS porque achei um acto de estupidez e de desconsideração para com os jornalistas. A saúde em Portugal não ganhou nada com isso.

Um das coisas que surgem no livro é a relação muito peculiar que tem com o seu filho.
Mas o percurso dele pertence-lhe a ele.

Como vê esse percurso dele? Tem ou não orgulho do percurso do seu filho?
É evidente. Quando tantas mães sofrem problemas com os filhos ou porque não estudam ou porque se drogam ou porque não são capazes de se orientar na vida, é evidente que uma pessoa fica satisfeita de ter um filho que estudou bem, que trabalhou bem, que tem um projecto de vida que não reverte só para ele mas que reverte para a comunidade. É evidente que eu aprecio isso. Mas se me perguntar: "Tem o sonho de que o seu filho seja primeiro-ministro?" Eu digo: não, não tenho esse sonho. Nunca tive.

Mas vive a perspectiva de ele poder ser primeiro-ministro.
Aí actuo como cidadã, não é como mãe dele. Porque repare, quanto mais envolvimento político ele tiver, menos o vejo, menos estou com ele. Eu vejo-o sobretudo é na televisão. Tenho saudades do tempo em que convivíamos muito. Ele só saiu de casa aos 26 anos. Foi uma relação muito próxima sempre e às vezes tenho saudade dessa relação. Mas a vida é dele. Eu respeito completamente a liberdade dele.

Nas primárias não se entusiasmou, por exemplo, a ver a campanha?
Aí é um sentimento misturado. É evidente que como mãe do António eu queria que ele ganhasse, eu quero sempre que ele ganhe. Mas como cidadã eu achava que de facto era bom que ele ganhasse, porque era necessário uma mudança no PS. Se ele vai conseguir ou não fazer uma mudança tão profunda quanto eu desejava, isso é o que iremos ver.
 

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Tem aparecido na comunicação social nos últimos tempos porque é mãe de António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, candidato a secretário-geral do PS e a primeiro-ministro. Situação que gere com distância, separando o filho do político, mas assumindo as expectativas sobre "se ele vai conseguir ou não fazer uma mudança tão profunda quanto" ela deseja.

Senhora de uma vida cheia, em que a sua sede de liberdade e a sua coragem a levaram a rasgar fronteiras, é uma combatente de causas, tendo-se destacado como feminista e como jornalista. Por vezes, as duas condições associaram-se, como quando, em 1976, aceitou fazer com Antónia de Sousa a série de documentários Mulher para a RTP.

Anos depois de escrever escapando à censura do Estado Novo, foi em democracia que se sentou no banco dos réus por "ofensa ao pudor e incitamento ao crime" após a direcção da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, ter feito queixa de si por "exercício ilegal da medicina". Tudo porque Maria Antónia Palla foi a autora e responsável do programa Aborto não É Crime, incluído na série Mulher e emitido em Fevereiro de 1976. Absolvida em 1979, o seu processo funcionou como base de lançamento da campanha para a despenalização do aborto.

A outra causa que protagonizou após o 25 de Abril, mas aqui com menos sucesso, foi a da luta pela democracia em Angola. O seu apoio a Jonas Savimbi levou-a várias vezes à Jamba.

Jornalista emblemática, foi a primeira mulher inscrita no Sindicato dos Jornalistas, a cuja direcção ascendeu depois do 25 de Abril, com mais duas mulheres, Maria Antónia de Sousa e Maria Antónia Fiadeiro. Maria de Lurdes Pintasilgo chamou-lhes "as três Antónias", adaptando a imagem das "três Marias", aplicada às autoras das Novas Cartas Portuguesas: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.

Em 1968, com Margarida Silva Dias e Maria Armanda Passos, constituiu o primeiro grupo de mulheres jornalistas a serem admitidas por concurso na redacção do Diário Popular — depois de Maria Virgínia Aguiar ter pertencido por um breve período àquela redacção, que teve de abandonar porque tinha cometido "o horrível pecado de engravidar".

Despedida do Diário Popular, por insistir em fazer um balanço do Maio de 68 em Paris, que editou em livro — Revolução, Meu Amor —, entrou no Século Ilustrado, sendo a primeira mulher a integrar a redacção da empresa Século — com a garantia dada por Francisco Mata a Guilherme Pereira da Rosa de que era mulher mas "escreve como um homem". No Século Ilustrado chegou a chefe de redacção ainda antes do 25 de Abril. Mas foi em democracia que viu fechar o império da comunicação que era a empresa Século.

Como vê hoje o facto de o seu trabalho como jornalista a ter levado a ser acusada de "ofensa ao pudor e incitamento ao crime" em 1976, já em democracia?
São as contradições dos fenómenos históricos. O aborto era realmente um problema sensível, mas não para a sociedade portuguesa, porque o aborto era divulgadíssimo em Portugal. Para uma larga margem da população era o único método contraceptivo. Não sendo, era usado como tal. Mas realmente, para os detentores do poder, sabia-se que se fazia, mas era daquelas coisas de que não se falava. E como as grandes vítimas eram as mulheres, ainda menos se falava. Até não vou dizer que as grandes vítimas eram as mulheres mais pobres. Eu não tenho essa ideia.

Era transversal?
Todas as mulheres da minha geração, da classe média ou da classe alta, fizeram abortos. E todas nós corríamos os riscos dos abortos feitos a sangue-frio ou, quando havia mais dinheiro, com anestesia, mas sem controlo da anestesia. Isso também causou mortes. Depois do 25 de Abril, em relação à mulher, a luta que havia a fazer era mesmo a do aborto.

Os três anos do seu julgamento acabaram por ser decisivos na luta pela despenalização do aborto. Acabou por pressionar os partidos. Concorda?
É. Lançou a campanha. E não pressionou só os partidos, mas as associações. Permitiu que as associações de mulheres de diferentes ideologias se tivessem juntado e feito uma campanha nacional, que se chamou Campanha Nacional para a Contracepção e Aborto. A imprensa foi actuante e muito apoiante da ideia de legalizar o aborto. E depois houve o sentimento também de que era uma causa popular. Nesse tempo, nunca fui abordada na rua por pessoas que me insultassem ou que me dissessem coisas desagradáveis. Não. Toda a gente vinha ter comigo, os empregados das pastelarias, por exemplo, e diziam: "Coragem, minha senhora. Este problema tem de se resolver." Isto também sensibilizou a classe dos juristas e quer o juiz quer o delegado do Ministério Público pediram a minha absolvição. Com esta conclusão: que eu, como jornalista, tinha não só o direito mas o dever de tratar de um problema social que atingia a sociedade de uma forma tão grave. A Associação de Planeamento Familiar calculava que em Portugal se realizavam cerca de 300 mil abortos por ano.

O que estava em causa não foi só um problema de liberdade de imprensa, mas de liberdade e de direitos das mulheres. Dedicou a vida à defesa dos direitos das mulheres. Concorda?
Não fiz o que fiz só pelos direitos das mulheres, mas essa causa esteve sempre presente nas minhas preocupações. Entrei para o Diário Popular em 1968.

Foi a primeira a fazê-lo no Estado Novo?
Tinha lá estado a Maria Virgínia Aguiar, que tinha cometido o horrível pecado de engravidar. O Francisco Balsemão abriu um concurso a que concorreram vinte e tal jovens, entre os quais três mulheres, e entrámos as três: eu, a Margarida Silva Dias e a Maria Armanda Passos. Elas acabariam por desistir da profissão, a única que nunca desistiu fui eu. Mas três meses depois de eu entrar na redacção do Diário Popular — sendo que já colaborava para a página literária havia dois anos —, ganhei um prémio por publicar uma reportagem sobre as mulheres dos alcoólicos.

Já era uma preocupação sua.
Mesmo antes disso. Uma pessoa que contribuiu muito para a minha formação foi a Maria Lamas, que conheci com 18 anos. E a minha avó, de que falo muito no livro, que era uma republicana. Ela não usava a palavra feminista, mas era. Defendia a independência económica da mulher como base da sua liberdade: "Nunca serás uma mulher livre se não tiveres independência económica."

Como se define enquanto feminista?
Há vários feminismos consoante a ideologia de uma pessoa, mas para mim é a consciência que as mulheres tomam de que têm direitos e que esses direitos são específicos e estão ligados à sua condição de mulheres. Houve várias etapas nessa luta pela afirmação dessa igualdade de direitos, mas penso que a luta deve fazer-se no sentido de fazer perceber à sociedade, mas sobretudo aos homens, que ainda são hoje os grandes detentores do poder, que a igualdade de direitos não pressupõe as mulheres dizerem que são iguais aos homens. As mulheres devem preservar a sua diferença, porque ela é enriquecedora.

É complementar?
É complementar. Nós não somos o sexo frágil. As mulheres são as pessoas que sabem organizar-se melhor, sabem conciliar actividades diferentes, têm um sentido de responsabilidade mais apurado. Defendo a participação das mulheres, enquanto mulheres, em todas as instâncias, em todos os organismos, em todas as instituições decisivas para a sociedade porque elas têm mais sensibilidade e mais capacidade para perceber o que é a vida quotidiana.

Que tectos falta romper?
Chegámos a uma concepção de paridade. Mas as mulheres na política tendem a cumprir os modelos masculinos. Isso também se deu no jornalismo. Porque os homens são maioritários e detêm o poder.

 Do livro percebe-se que viveu sempre o jornalismo como forma de viver a liberdade, foi uma pioneira em vários momentos. Teve noção de que estava a rasgar fronteiras?
Não se percebe quando se faz. As pessoas fazem coisas obedecendo a um imperativo de consciência. Quer dizer, tinha consciência de que não havia mulheres integradas em redacções e passou a haver.

Quando decide ir para Paris, em férias, e faz o balanço do Maio de 68, tem noção de que estava a desafiar o poder dentro do jornal? Que conduziu aliás ao seu despedimento do Diário Popular.
Nessa atitude houve, por um lado, o enorme interesse que eu tinha pelo assunto e uma certa ingenuidade da minha parte relativamente às relações de trabalho. Havia hierarquias a respeitar e eu não tinha muita consciência disso. Não tinha esse respeito, como não tenho ainda hoje pelas hierarquias. Já quando estive de férias em Luanda e a Maria Virgínia Aguiar, que estava lá ligada à revista Notícia, me disse, "Não pode ir embora sem ver o mato", nessa altura, tive o cuidado de telegrafar ao meu chefe de redacção, que era uma pessoa mais jovem, mais aberta. De um modo geral, os semanários têm uma estrutura mais leve que os diários. A resposta que recebi foi: "Boa sorte!" Nos diários havias pessoas democratas, mas com uma visão conservadora e hierarquizada. Quando eu dava uma gargalhada na redacção, toda a gente olhava.

 Uma das suas características são as suas gargalhadas.
Exactamente!

Alguma vez sentiu medo, antes ou depois do 25 de Abril?
É estranho. Se me definisse a mim própria, diria que sou uma pessoa medrosa. Mas quando se trata de trabalhar, o medo desaparece. Por exemplo, estava havia pouco tempo no Diário Popular quando houve um ciclone em Lisboa e o trabalho que me destinaram foi contar as chaminés que tinham caído em Lisboa, em cima de um telhado na Rua da Madalena, de madrugada. E se me perguntar se eu sou capaz de ir acima de um telhado, eu digo-lhe que não. Por exemplo, voar, como fiz várias vezes para a Jamba, durante a noite, num avião com luzes apagadas, sobre território inimigo. Se me disser "quer ir fazer isto?", eu não vou. Mas quando se trata de trabalho ou de defesa de uma causa, eu esqueço tudo e vou.

Mas teve medo?
Olhe a minha experiência de grande medo foi durante as eleições do Humberto Delgado. No dia de um comício no Liceu Camões, estava com um grupo num café. A GNR entra. Nós fugimos para uma escada. Batemos às portas. Ninguém abriu. Descemos e na entrada do prédio estava um guarda a cavalo de sabre desembainhado. Aí eu tive medo. Mas ele deixou-nos sair. E tenho medo dos bicharocos, quando vou para África vou sempre cheia de repelentes antivoantes, anti-rastejantes, mas vou. Nunca deixei de fazer nada por causa do medo. O ser corajosa não é a ausência de consciência em relação ao medo, é a capacidade de a pessoa, porque acha que tem de fazer determinada coisa, ultrapassar o medo e avançar.

Integrou o Século Ilustrado e a Vida Mundial, que pertenciam ao grande império de comunicação social que foi o Século. E há um paradoxo, o Século aguentou toda a ditadura e é em democracia que fecha. Por que fechou o Século?
Fecha porque, sendo o Século uma empresa tão importante, os trabalhadores se dividiram em relação a uma orientação que era perfeitamente totalitária e contrária à orientação tradicional do jornal. O Século tinha uma grande tradição democrática que se reflectia nas nossas relações de trabalho, com a administração, com a direcção, entre nós. Éramos 800 trabalhadores.

Era uma orientação determinada pelo PCP?
Era determinada pelo PCP e por alguns grupos esquerdistas. Instituíram uma comissão de censura onde as pessoas tinham sido sempre livres. Quer dizer, havia a Censura do Estado Novo, mas as chefias sempre nos defenderam muito em relação à Censura. Essa orientação traía o pacto que deve existir entre um jornal e os leitores. Isso passou-se sobretudo com o jornal, não tanto com as revistas. Com a ajuda do Copcon [Comando Operacional do Continente], metade dos trabalhadores foram expulsos. Só voltámos ao Século após o 25 de Novembro [de 1975]. O poder olhou para o Século e viu que aquela empresa não era dominável. O PS, em minha opinião, não compreendeu — e penso que até hoje não compreendeu muito bem, embora tenha feito um esforço — o que é liberdade de imprensa. Evocou razões económicas para fechar o Século.

Como vê o jornalismo hoje?
Não há dúvida de que em certos aspectos se melhorou. O desaparecimento da censura, enquanto instituição externa, fez melhorar o jornalismo. Mas os constrangimentos económicos impostos pelas administrações são muito maiores que naquele tempo. Naquele tempo, as administrações tinham pelo menos percebido que quanto mais livres os jornalistas fossem, mais jornais se vendiam. Por outro lado, há uma corrente, com a qual eu discordo, segundo a qual o jornalista tem de ser muito objectivo. Não pode ter causas. Não pode dar opiniões, a não ser na secção da Opinião. E tem de fazer textos muito curtos. Isso faz a secura da prosa que encontramos nos jornais, em que os jornalistas não deixam transparecer nem um grama de emoção, o que os impede de concorrer com o que já vimos na televisão. As televisões não só têm muitos noticiários como muitos debates. É claro que nesses debates há muito poucas mulheres, sobretudo quando é de política pura e dura. Hoje em dia também há o facto de que se chama ética a questões que não têm nada a ver.

O que quer dizer com isso?
Com a questão da ética se mascara a procura genuína das causas dos fenómenos, sobretudo no campo das grandes questões sociais. Depois, os jornalistas dispõem de pouco tempo e de pouco espaço. E tudo isso coarcta muito a liberdade de expressão e coarcta o sentido de que a imprensa deve contribuir para desenvolver o espírito crítico dos cidadãos. Quando me dizem que um jornalista não vai a um comício a não ser quando está de serviço considero isso uma castração. Se olharmos para o passado, os grandes jornalistas foram muito intervenientes na sociedade, como cidadãos. Eles não acham que são, mas no fundo actuam como cidadãos de segunda, estão coarctados na sua participação cívica, enquanto o jornalismo é uma forma de participar civicamente. Há uma coisa que tem de se encarar. A imparcialidade não existe. As pessoas podem é aproximar-se da verdade. Dou um exemplo: há dias uma criança morreu a tentar salvar os irmãos de um incêndio. Todos os jornais e televisões falaram deste caso. Ninguém levantou a questão de saber o que estavam a fazer aqueles pais? Tem-se quatro filhos e às quatro da manhã não se está em casa?!

Uma das suas causas é Angola e a democracia em Angola. Como olha hoje para Angola?
Angola está como todos os países em que a democracia não existe. Não existindo democracia não há desenvolvimento e não existindo desenvolvimento perdemos todos. Porque os países desenvolvidos também não aumentam os seus mercados.

A sua fome de liberdade levou-a a desconfiar do igualitarismo e a aproximar-se da defesa da igualdade de condições professada pela social-democracia. Continua a sentir que o caminho da liberdade é o da social-democracia?
Bom, até inventarmos outra coisa.

Sendo próxima do PS, sempre foi crítica do poder socialista. O clímax da sua atitude crítica perante o poder foi a sua batalha contra o Governo Sócrates quando este fechou a Caixa de Previdência dos Jornalistas. Fez então um abaixo-assinado contra o Governo, no qual o seu filho era ministro da Administração Interna. Voltaria a fazê-lo?
Absolutamente. O meu filho é o meu filho. O que ele faz como político é como político. Eu tenho, até por treino profissional, uma certa capacidade de criar distanciamento. Eu sou pela emoção, mas também crio os distanciamentos devidos. Mas em relação ao fim da Caixa de Previdência, eu cortei relações com o PS porque achei um acto de estupidez e de desconsideração para com os jornalistas. A saúde em Portugal não ganhou nada com isso.

Um das coisas que surgem no livro é a relação muito peculiar que tem com o seu filho.
Mas o percurso dele pertence-lhe a ele.

Como vê esse percurso dele? Tem ou não orgulho do percurso do seu filho?
É evidente. Quando tantas mães sofrem problemas com os filhos ou porque não estudam ou porque se drogam ou porque não são capazes de se orientar na vida, é evidente que uma pessoa fica satisfeita de ter um filho que estudou bem, que trabalhou bem, que tem um projecto de vida que não reverte só para ele mas que reverte para a comunidade. É evidente que eu aprecio isso. Mas se me perguntar: "Tem o sonho de que o seu filho seja primeiro-ministro?" Eu digo: não, não tenho esse sonho. Nunca tive.

Mas vive a perspectiva de ele poder ser primeiro-ministro.
Aí actuo como cidadã, não é como mãe dele. Porque repare, quanto mais envolvimento político ele tiver, menos o vejo, menos estou com ele. Eu vejo-o sobretudo é na televisão. Tenho saudades do tempo em que convivíamos muito. Ele só saiu de casa aos 26 anos. Foi uma relação muito próxima sempre e às vezes tenho saudade dessa relação. Mas a vida é dele. Eu respeito completamente a liberdade dele.

Nas primárias não se entusiasmou, por exemplo, a ver a campanha?
Aí é um sentimento misturado. É evidente que como mãe do António eu queria que ele ganhasse, eu quero sempre que ele ganhe. Mas como cidadã eu achava que de facto era bom que ele ganhasse, porque era necessário uma mudança no PS. Se ele vai conseguir ou não fazer uma mudança tão profunda quanto eu desejava, isso é o que iremos ver.