Picasso chegou finalmente a casa
Em dia de aniversário de Pablo Picasso, reabre o mais importante museu que lhe é dedicado. Em Paris há um novo artista para descobrir. O Museu Picasso reabre depois de muita polémica e 51 milhões de euros.
Com ele, mais de 400 obras, muitas delas raramente expostas e outras praticamente desconhecidas, ao lado de La Celestine (1904), Paul en Arlequin (1924), L’Acrobate (1930), Tête de taureau (1942), Massacre en Corée (1951), Le déjeuner sur l’herbe d’après Manet (1960), mais os vários retratos de Marie-Thérèse, Dora Maar, Françoise, Jacqueline, as mulheres da sua vida, e os auto-retratos de uma vida inteira. E ainda as fotografias que mostram os vários ateliers que teve, e a tipografia manual onde fez os panfletos contra o governo do Generalíssimo Franco, a cadeira, os pincéis e os panos carregados de tinta que preparou minuciosamente, a mostrarem porque é que também são obra de Picasso os quadros de outros que foi adquirindo e as máscaras africanas, aquelas que comprou e as que imitou.
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Com ele, mais de 400 obras, muitas delas raramente expostas e outras praticamente desconhecidas, ao lado de La Celestine (1904), Paul en Arlequin (1924), L’Acrobate (1930), Tête de taureau (1942), Massacre en Corée (1951), Le déjeuner sur l’herbe d’après Manet (1960), mais os vários retratos de Marie-Thérèse, Dora Maar, Françoise, Jacqueline, as mulheres da sua vida, e os auto-retratos de uma vida inteira. E ainda as fotografias que mostram os vários ateliers que teve, e a tipografia manual onde fez os panfletos contra o governo do Generalíssimo Franco, a cadeira, os pincéis e os panos carregados de tinta que preparou minuciosamente, a mostrarem porque é que também são obra de Picasso os quadros de outros que foi adquirindo e as máscaras africanas, aquelas que comprou e as que imitou.
São cinco andares, o dobro do espaço que havia em 2009, quase 4 mil metros quadrados de “Picasso na intimidade”, diz a comissária Anne Baldassari, para afirmar que, apesar de existirem outros museus nas cidades espanholas de Málaga e Barcelona, onde nasceu e estudou, é em Paris, no edifício setecentista apelidado de Hotel Salé, que Picasso está em casa.
Uma casa que custou 51 milhões de euros – dos quais 32 vieram de auto-financiamento e 19 directamente do Ministério da Cultura –, que se viu ampliada em mais dois edifícios para toda a parte administrativa, que sofreu atrasos nas obras e assistiu a épicas batalhas por causa da interferência da família do pintor na gestão do património e na constituição da equipa dirigida por Anna Baldassari, que acabaria por sair, com estrondo, no início do Verão.
Vê-la agora, entusiasmada, sentada no chão de um canto do museu, rodeada de jornalistas, faz com que nos esqueçamos que viveu os últimos meses antes da demissão anunciada pelo Ministério da Cultura numa tensão constante entre os herdeiros, o conselho de administração e o Ministério da Cultura, que acabaria por substituí-la por Laurent Le Bon, vindo do Centre Pompidou-Metz.
O que vemos, e aquilo de que Baldassari fala, é de como viveu 25 anos na descoberta permanente de Picasso através dos mais de 200 mil documentos dos arquivos deixados pelo pintor. E depois, diz, “felizmente agora não sou responsável por nada, mas será a mim e à minha equipa que terão que recorrer sempre que houver necessidade de olhar mais a fundo para Picasso”.
Em Maio, o jornal Le Monde traçava o perfil de Baldassari a partir do contraste, e dos choques, que a sua personalidade provocava: “Pois se é certo que, para alguns, ela é um exemplar soldado da República, para outros é um chefe-brigadeiro beligerante, que fazia agonizar a sua equipa com injúrias, submetendo-a às piores tarefas”.
Hoje Baldassari diz que “é um espírito livre” e que essa liberdade lhe permite envolver-se “profundamente” com a obra de Picasso e, por isso, assinar uma montagem que é “um objecto-manifesto” onde, “sem compromissos nem academismos” ou “concessões de qualquer espécie”, quis “sintetizar uma relação de absoluta liberdade entre o artista e a sua obra”.
Há um mês, quando o museu abriu pela primeira vez as suas portas e o PÚBLICO o visitou pela primeira vez, nada disso parecia importar para as cerca de 13 mil pessoas que o visitaram ainda vazio, observando apenas o trabalho de recuperação da equipa dirigida por Jean-François Bodin, que conserva não apenas a arquitectura barroca italiana do interior daquela que foi considerada como “a mais extravagante casa particular do século XVII” como a reinscreve numa contemporaneidade que deixa que as obras respirem e os visitantes circulem livremente.
É que esta não é apenas a reabertura de um museu que, como escreveu a ministra da Cultura Fleur Pellerin, no texto distribuído à imprensa, “permitirá compreender a extraordinária contemporaneidade do artista, nomeadamente, emprestando-lhe um olhar actual e inscrevendo-o ainda mais na eternidade”. No final de um mês pródigo em acontecimentos que fizeram da capital francesa o epicentro da arte contemporânea, é como se a retrospectiva dedicada a Marcel Duchamp, no Centre Pompidou, a apresentação do novo edifício da Fundação Louis Vuitton, assinado por Frank Gehry, os 30 anos da Fundação Cartier e a Feira International d’Art Contemporaine, este ano a fazer escândalo com Tree, a escultura em forma de objecto sexual e árvore de Natal, de Paul McCarthy, só fizessem sentido depois da reabertura do Museu Picasso.
“Picasso inventou-nos para a contemporaneidade”, diz, sem receios, Anne Baldassari, acreditando que devemos a Picasso “tudo o que temos, da moda ao rap, dos usos das cores aos modos da palavra”. Picasso “deu cor às palavras”, e ainda hoje “somos herdeiros da sua relação com os materiais”.
Por isso esta montagem não é só uma montagem, “é um percurso de vida”, feito pelo interior “da sua afectividade, das suas relações electivas, pela intimidade da confraria de pintores de que fez parte”. Dez anos após a sua morte, Pierre Daix, especialista em Picasso, autor entre outras obras do Dictionaire Picasso (1995), haveria de escrever que para o pintor espanhol a sua pintura e a sua vida não eram senão uma só: "Ele morreu como se se pintasse perante a morte”.
O que nela vemos é aquilo que Laurent Le Bon, o novo director, apresenta como “a maior colecção pública mundial da obra de Picasso”. Mas, para lá das frases publicitárias, por mais verdadeiras que sejam, ao longo de cinco andares, “o laboratório de Picasso” - como lhe chamou Baldassari na apresentação à imprensa no início da semana - mostra-se como “o laboratório central da arte moderna e contemporânea” do século XX. Esta é, assim, uma montagem que quer mostrar Picasso como aquele que “colocou em primeiro plano aquilo que não era evidente”.
Com esta exposição, que se manterá até à primavera de 2015, sendo depois progressivamente reorganizada até nova montagem no Outono do próximo ano, quando o museu celebra 30 anos, mostra-se um Picasso que “não fala francês, fala chinês, fala sueco”, diz, “fala uma língua que é de todos”.
Foi isso que estes cinco anos provaram. Por um lado a inventividade de Picasso, na diversidade temática de exposições, por outro a sua universalidade. Baldassari diz que foi a oportunidade para repensar o modo como o mundo olha para o artista: “Picasso fala uma língua plástica, tão clássica quanto contemporânea, e que nos é comum.” E acrescenta que o quis mostrar agora foi como “é preciso e é possível” ir mais longe. “Estou cansada de ouvir falar de Picasso e as mulheres, da [representação da] mulher sentada, da biografia galopante, do regresso à ordem. É falso, e é preciso mostrá-lo”.
A nova montagem é mais do que isso, como se fosse ao encontro do modo como Picasso olhava para o que fazia. Disse Picasso em 1935: “Para mim, um quadro é um somatório de destruições. Faço um quadro e depois destruo-o. Diz Baldassari: “Devemos-lhe a cultura pop porque é ele que vai procurar os objectos para os transformar em esculturas, do mesmo modo que vai buscar os jornais como suporte para alterar o olhar que temos sobre as coisas”. Ou seja, sobre a realidade quotidiana e o modo como nos afecta.
“Ele antecipou-se a tudo”. Por causa desse tudo, pela força desse todo, Baldessari diz que Picasso foi “o artista da contra-revolução”, depois de ser o artista da revolução. Disse Picasso a André Malraux, num diálogo reproduzido após a sua morte: “Observava as minhas obsessões e percebi: eu também sou contra tudo.”
“Era insuportável vê-lo encaixotado”, diz. O que agora se vê é como o trabalho de apropriação e modificação das máscaras das tribos Tsogo, Bamana Kono ou Grebo entra em diálogo directo com a manipulação a que Picasso sujeitava os materiais recolhidos no Ocidente, como se percebe em muitos dos seus retratos. “Picasso queria saber como podia modificar as obras e saber ainda e como podiam essas obras resistir à modificação. As obras africanas, nesse percurso estrutural, modificaram o seu trabalho, e serviram para descobrir como outros percursos estruturais saberiam resistir a todas as formas de desaparecimento virtual, mediático ou académico”.
Quando a colecção que estrutura actualmente o museu foi doada ao Estado em 1973, "houve um debate sobre a autenticidade das máscaras, mas o que é interessante é que não era a autenticidade que interessava a Picasso”,ressalvando a comissária que o que lhe interessava era, precisamente, “aprender com essas máscaras e copiá-las”: “Picasso estava interessado no percurso plástico [de uma obra], que ele entendia que era puro. Ele acreditava que esse percurso resistia à comparação com uma cópia”.
Foi por isso, acredita a responsável, que Picasso “se entusiasmou” com aqueles que fotografaram as suas obras já que acreditava que o seu trabalho resistia no olhar de quem o observava: “As suas instalações fotográficas, que nunca foram traduzidas pela escultura ou pintura, são obras que não existem senão em fotografia”.
Baldassari dá um exemplo não apenas da intensidade do diálogo na obra de Picasso mas também da extensão no tempo desse diálogo: “Todo o trabalho com as máscaras feito entre 1908 e 1912, antecipa tudo o que viríamos a conhecer mais tarde. O trabalho detalhado na guitarra de 1912, que antecipa o que Braque iria fazer, vai produzir um eco nas máscaras africanas feitas 30 anos depois”, acrescenta a especialista. Mas tudo isso era praticamente desconhecido e são, precisamente, essas relações que esta montagem coloca em evidência.
Para a responsável pela exposição, trata-se de produzir um efeito de desnaturalização da obra, como se a decompusesse: “Na desfiguração, como no cinema ou na fotografia, havia uma desnaturalização e uma decomposição da obra, que era algo que o motivava, do mesmo modo que a gravura era, para ele, tida como um regresso à composição. Ele queria perceber como podiam as obras resistir à [sua própria] reversão”.
A contemporaneidade de Picasso, Anna Baldassari encontra-aí, na utilização daquilo que o rodeava como material artístico, fosse “o cinema, os novos media, a presença de ex-votos ou as etiquetas que, já em 1908, antes de Braque, era possível encontrar nas suas colagens”.
Num gesto que não esconde poder ser criticável, esta montagem com que o Museu Picasso abre é um serviço que a comissária acredita ser necessário prestar “à transparência da obra de Picasso”: “Quis fazê-lo para a defender. Quis compor uma montagem intelectual e científica, e fi-lo. Quis mostrar a sua evolução, e mostrar o que ainda não foi dito através das grandes obras.”
“A revolução Picasso é isso”, acredita. Na contra-capa do elegante catálogo, cita-se uma frase do pintor: “Dêem-me um museu e eu ocupá-lo-ei”. Eis, por fim, um novo museu ocupado, mas que olha de novo para a sua obra para colocar em causa o que sobre ela sabemos. É como se o seu visitante fosse agora a maçã do poema de Jacques Prévert, Promenade de Picasso: “Que ideia a de colher uma maçã/ diz Picasso/ e Picasso come a maçã/ e a maçã agradece-lhe”.