“Aprendi liberdade com o Brasil”
Ao terceiro disco, Canto, Carminho assume o fado com uma parte da portugalidade que passou a interiorizar como marca. O Brasil ajudou, e muito, nesta sua escolha
O seu terceiro disco, Canto, surgido depois de uma notável apresentação no festival Caixa Alfama de 2014, mostra uma voz com o fado sempre à flor da pele, vulcão de erupções controladas, ora subtis ora torrenciais, para onde são chamados sons e vozes de outros universos sem que isso lhe atrapalhe o caminho, pelo contrário. Se há aqui algo que comande é a sua voz, a sua sonoridade, o seu tom, aninhado em fraternidades.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O seu terceiro disco, Canto, surgido depois de uma notável apresentação no festival Caixa Alfama de 2014, mostra uma voz com o fado sempre à flor da pele, vulcão de erupções controladas, ora subtis ora torrenciais, para onde são chamados sons e vozes de outros universos sem que isso lhe atrapalhe o caminho, pelo contrário. Se há aqui algo que comande é a sua voz, a sua sonoridade, o seu tom, aninhado em fraternidades.
O Brasil, sem lhe adulterar o caminho, foi marcante. "Em termos artísticos tenho aprendido muito. Primeiro foi o encontro com o Chico [Buarque], o Milton [Nascimento] e a Nana [Caymmi], que são três intérpretes com características únicas, o Chico nomeadamente nas composições e na poesia, o Milton na sua forma de interpretar e na sua capacidade musical — parece que não há nada que ele não saiba, na música, é impressionante — e a Nana como cantora de eleição que é, onde nada é dito ao acaso, uma Beatriz da Conceição no Brasil."
Isso foi ainda em 2012, na edição especial do disco Alma. Mas a experiência continuou. "Primeiro que tudo, aprendi liberdade com o Brasil. De espírito, de expressão. Foi também o Brasil que me ajudou a dar mais voz às minhas composições [gravou agora duas]. Elas já existiam, mas eu não tinha a liberdade. Deu-me uma perspectiva de longe, de alguém que tem a mesma língua. Parecemos iguais e somos tão diferentes. E há um choque. Quando vamos a um país de língua diferente, a cultura é diferente e nem ponderamos igualar-nos. Mas quando estamos no Brasil, damos por nós a pensar que somos todos iguais e de repente levamos com reacções e atitudes muito diferentes, que me põem a pensar sobre a nossa introspecção e a nossa nostalgia, que tem coisas boas e más. Ou a nossa necessidade de individualismo, enquanto eles partilham muito, mesmo em termos artísticos."
O "sim" de Caetano
Entre os 14 temas do disco (há uma edição especial com 17), existe um com a assinatura de Arnaldo Antunes e Marisa Monte (Chuva no Mar) e outro co-assinado por Caetano Veloso, César Mendes e Tom Veloso, o filho mais novo de Caetano (O Sol, tu e eu). "Esse nasceu em casa da Marisa Monte", diz Carminho. "Estava lá o César Mendes, que é um dos parceiros de todos eles e toca também nos Tribalistas, junto com o Dadi Carvalho. Ele começou a tocar uma música e disse que a tinha feito uma semana antes com o Caetano e o seu filho mais novo, o Tom, porque o César é professor dele. Perguntou-me: ‘O que é que você acha?’ E eu disse: ‘acho linda’. E fiquei a matutar naquilo. Tive pudor de dizer que queria ficar com a música. Mas tomei coragem e mandei um e-mail ao Caetano Veloso: ‘ouvi a sua canção, apaixonei-me e gostava muito de a cantar no meu próximo disco.’ Respondeu: ‘claro que sim, a música é sua, tenho todo o prazer, vai ficar tão bonito.’ Entretanto fizemos a produção toda em Lisboa e eu fui mais tarde ao Rio e fui a casa dele mostrar-lhe a música, estava lá o Tom também, um rapaz de 17 anos muito magrinho com caracóis que faz imenso lembrar o pai quando ele era novo. Foi um momento muito especial para mim, quando ele se identificou com a interpretação que eu dei. O César também gostou muito."
Já com Marisa Monte, o tema nasceu de um "vamos fazer qualquer coisa" dito em casa dela. Foi ao arquivo, mostrou-lhe várias canções e foram cantando, sem compromisso. "Cantei várias coisas do disco, falei-lhe do mar, que é o que nos une, e quando chegámos a esta canção começámos a cantar umas partes ela e umas partes eu, a criar umas vozes por cima, e de repente olhámos uma para a outra e dissemos: ‘isto está a resultar’. Foi assim uma magia. Ela tinha dito: a canção é que nos vai escolher. E ela escolheu-nos mesmo."
Até a inclusão no disco de Reinaldo Ferreira, por estranho que pareça, nasceu no Brasil. "Eu e o Diogo [Clemente, violista e seu marido] estávamos num hotel em Porto Alegre e antes de ir para o concerto parámos no alfarrabista em frente ao hotel. Ele pediu para tirar um livro e, quando o tiraram, o que estava ao lado caiu no chão: Reinaldo Ferreira." O poeta português, filho do célebre Repórter X, autor não só de Uma casa portuguesa, como também de Kanimambo ou de Menina dos olhos tristes. "Abrimos e de repente começámos a perceber que era ‘o’ Reinaldo Ferreira." Viu o poema A ponte e foi paixão imediata. "Eu gosto muito de sinais, acho que o mundo funciona por sinais e devemos dar-lhes ouvidos. Não é ser fanática pelos sinais, mas gosto da intuição. Gosto de acreditar e acredito que o mundo fala por energia. Não que aquele livro tenha caído de propósito ou por uma força superior, mas já que caiu devia ter-lhe dado atenção." E um fado nasceu, assim, da queda de um livro que foi o erguer de um poema. No caso, "vestido" com o Fado Menor do Porto por ideia dos dois. "Íamos experimentando, cantando e tocando. Metade deles dissemos não, largámo-los à primeira frase. Mas com o Menor do Porto eu não parei de cantar."
Viagens e identidade
O disco, porém, começou a nascer antes das idas dela ao Brasil: "Na verdade, os discos, para mim, vão-se fazendo. Uma pessoa vai lendo, vai ouvindo, vai-se inspirando, vai guardando. E foram surgindo vários temas e ideias de pedir a pessoas para compor." Miguel Araújo é um deles. "Ele já tinha escrito várias coisas para mim, mas nunca tinha feito algo com que eu me identificasse. Desta vez, disse-me: ‘é o último, porque não quero receber mais uma nega’. Na verdade não eram negas, porque ele escreve maravilhosamente bem, mas não tinham a ver exactamente comigo, é só uma questão pessoal." Afinal não foi o último, foi o primeiro. "Ele enviou-me um ficheiro áudio e eu liguei-lhe no segundo a seguir a dizer: ‘isto é meu, ai de quem gravar antes’. Esta é a minha cor, ele entendeu."
Só depois é que surgiu a decisão de enviar o tema (Ventura) a Jaques Morelenbaum, para fazer o arranjo. "Na verdade este disco foi nascendo destas viagens que eu tenho feito e da maturidade que vou conseguindo com elas, das coisas que vou aprendendo. Quanto mais viajo mais percebo o que é que sou, do que é que eu gosto, esta necessidade e vontade de preservar a minha identidade, a minha portugalidade. Porque o fado não é um todo na minha identidade. Eu acho que a música portuguesa é, por si só e por excelência, aquilo que eu realmente trago na minha memória, na minha história. A minha mãe cantava muitas músicas do cancioneiro popular, eu vivi no Algarve. Tudo isto misturado com o fado, que é o estilo que eu elejo como primordial, sinto muito orgulho e segurança nesta questão da identidade. Percebi que é mais importante do que nunca uma pessoa destacar-se por aquilo que tem de seu, não necessariamente único mas seu. E foi aquilo que eu fiz."
Dois poemas incluídos no disco conheceram já versões anteriores. Na ribeira deste rio, de Fernando Pessoa, tinha sido musicado no Brasil por Dori Caymmi. Mas Carminho gravou agora uma versão de Mário Pacheco provavelmente contemporânea ou até mesmo anterior à brasileira. "Ele tinha composto esse tema para a Amália, para um disco que infelizmente nunca saiu. Quando ouvi esse tema, disse: ‘Mário.’ E ele: ‘é seu’. O Mário é um compositor iluminado, e então com estas palavras incríveis. O Fernando Pessoa, nós achamos que é só nosso mas é do mundo inteiro. No Brasil sabem tudo sobre ele." Já o poema Espera, de Pedro Homem de Mello, ganhou, por lembrança de Diogo Clemente, a música do fado Janelas Enfeitadas, de Casimiro Ramos (1901-1973). "Ele lembrou-se do fado, achou a melodia linda, e quando eu estava a ler Pedro Homem de Mello, já com essa melodia na cabeça, achei que o Espera, um poema superior, se elevava com essa música." Curiosamente, Espera tinha já sido gravado com música do Fado Margaridas, cujo autor, registado como tal, foi o violista Miguel Ramos, irmão mais novo de Casimiro Ramos.
Sinais e coincidências
Os discos anteriores de Carminho tinham nomes curtos e este não é excepção: ao estreante Fado (2009), sucederam-se Alma (2012) e agora Canto (2014). "Eu gosto. Acho que são mais biográficos do que nomes grandes. E Canto, aqui, tem a ver não só com o acto de cantar, que unifica todo o disco, mas também com o "canto" de lugar. Um lugar que cada vez mais sinto como meu, onde o fado tem um cunho incontornável mas onde a portugalidade vai entrando aos poucos, com a presença de vários instrumentos que fazem parte da sonoridade portuguesa mas que não fazem parte do fado, como o acordeão, o cavaquinho, os ritmos de regiões distintas de Portugal. É um encontro de raízes."
Neste encontro cabem, também, nomes inusitados. Como o de Martim Vicente, que ficou conhecido dos Ídolos. "Ele continua a estabelecer uma ligação muito grande com algumas pessoas da área da música que são também amigas do Diogo. E conheceram-se. Mostrou algumas canções ao Diogo, que ficou muito impressionado e decidiu (melhor, decidiram juntos) produzi-lo. Está por aí a sair um disco do Martim, com composições do Martim. Ora quando ouvi A canção, disse: quero este tema. ‘Queres saber uma coisa?’, respondeu o Diogo. ‘Ele disse-me que quando o compôs foi a pensar que seria para ti.’" Mais uma prova, para Carminho, de que o mundo funciona por sinais. Ou coincidências.
Como a que a leva a incluir, mas só na edição especial, uma canção de Carlos Paião, História linda. "A minha mãe contou-me que aos 4 anos eu era para participar no Sequim d’Ouro [concurso de talentos infantis, réplica nacional do italiano Zecchino D’Oro] e que o Carlos Paião é que ia fazer a música para eu cantar. Ele morreu nesse ano e eu não participei. Mas fiquei com uma relação de carinho com ele, não por essa história em particular mas por achar que ele é um compositor muito inspirado que talvez não tenha ficado no lugar que eu acho que as composições dele mereciam. Esta música tem uma gravação de época. Foi a mãe do Diogo que a mostrou a ele e, quando a ouvi, foi amor à primeira vista."
Quem ler a lista de convidados especiais do disco verá nomes com os de António Serrano, Javier Limón, Marisa Monte, Carlinhos Brown, Dadi Carvalho, Jaques Morelenbaum, Naná Vasconcelos, João Frade, Jorge Helder, Lula Galvão. Nenhum foi imposição da editora, diz, antes resultado de amizades descomprometidas. E muitos são brasileiros. "Esta coisa de acontecerem encontros com músicos brasileiros tem a ver muito com a energia que eles transmitem. Juntamo-nos, cantamos músicas uns dos outros, ‘vamos cantar contigo e tu cantas connosco’. E esta empatia de backstage, de encontros, de ensaios, cria relações muito fortes. Depois tem-se a liberdade. Que é o que faz a música acontecer."