A propaganda está entre nós
A fragilidade do homem diante da propaganda numa das principais obras de Jacques Ellul. Indispensável
Filósofo, sociólogo, teólogo francês, Jacques Ellul (1912-1994) não é um autor desconhecido no panorama académico português. Saliente-se o trabalho que José Luís Garcia e Helena Mateus Jerónimo têm consagrado ao seu pensamento, nomeadamente na edição de Jacques Ellul and Tecnological Society in the 21st Century, livro que reúne contributos de autores de nacionalidades e campos epistemológicos diferentes. Fora deste âmbito, no entanto, o lançamento, pela Antígona, de Propagandas – Uma Análise Estrutural, publicado pela primeira vez em 1965, surge com a força de uma pancada inesperada para todos aqueles que se detenham nas suas análises, explicações e conclusões.
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Filósofo, sociólogo, teólogo francês, Jacques Ellul (1912-1994) não é um autor desconhecido no panorama académico português. Saliente-se o trabalho que José Luís Garcia e Helena Mateus Jerónimo têm consagrado ao seu pensamento, nomeadamente na edição de Jacques Ellul and Tecnological Society in the 21st Century, livro que reúne contributos de autores de nacionalidades e campos epistemológicos diferentes. Fora deste âmbito, no entanto, o lançamento, pela Antígona, de Propagandas – Uma Análise Estrutural, publicado pela primeira vez em 1965, surge com a força de uma pancada inesperada para todos aqueles que se detenham nas suas análises, explicações e conclusões.
Comece-se por uma frase: “O homem médio não tem memória e não tem tempo nem gosto para se entregar a pesquisas” (pág. 187). O tom é pessimista, judicativo, mas, sobretudo, é o de alguém preocupado e empenhado em impedir a destruição do homem. Na esteira de 1984 de George Orwell, eis um livro “pelo homem, não contra o homem”, como anunciam as primeiras páginas. E o que ameaça o homem, na visão de Jacques Ellul? A propaganda, esse conjunto de técnicas que tem como fins influenciar e manipular comportamentos e opiniões e cujo apogeu a maioria dos leitores tenderá a situar na primeira metade do século XX. Com efeito, o termo parece hoje anacrónico, afastado da linguagem quotidiana, mas a teorização de Ellul é familiar a qualquer espectador ou leitor deste século: “(…) o conjunto de métodos utilizados por um grupo de organizado em vista de fazer participar, activa ou passivamente na sua acção, uma massa de indivíduos psicologicamente unificados por manipulações psicológicas e enquadrados numa organização” (pág. 77). O autor chega a esta descrição depois de concluir que, sendo uma técnica, a propaganda é também científica (nutre-se nas descobertas das ciências sociais para melhorar a sua eficácia), e de analisar as suas características. Revelem-se algumas: propaganda instala-se onde existem indivíduos isolados e massas, é contínua e duradoura, confunde-se com uma organização (uma empresa, um partido, um governo, um Estado) provoca no individuo uma acção que não é mais do que um reflexo condicionado, explora o orgulho, o ódio, a fome (pag. 54) ou refere-se sempre à actualidade (cuja informação superficial nunca implica a pessoa). Mas para que estas características se afirmem são necessárias condições. É fundamental a existência dos mass media, de preferência nas mãos de poucos homens; de um nível de vida e de cultura médio (os camponeses isolados, os pobres e os analfabetos resistem, ainda que involuntariamente, à propaganda); e de informação que permita ao indivíduo ter uma consciência de problemas universais numa experiência restrita da realidade social, resultando daí um sentimento de angústia que a propaganda vem sossegar. Jacques Ellul derruba, assim os lugares comuns da propaganda para revelar toda uma estrutura, ou antes, toda uma realidade próxima do homem das democracias ocidentais. Embora teça análises abundantes à propaganda no nazismo, no fascismo e no comunismo, são os efeitos, a afirmação da propaganda, como uma droga contagiosa, nos regimes democráticos que inquietam o seu pensamento e guiam a sua escrita. O que provocou a dependência dos indivíduos da propaganda? As transformações económicas, sociais e políticas nos séculos XVIII e XIX, que fragmentaram a sociedade, enfraquecendo os laços sociais e a capacidade integradora das famílias, das pequenas comunidades ou da Igreja. Isolado, confuso, ansioso, incapaz de dar sentido a acontecimentos que não compreende, a decisões contra as quais nada pode, o indivíduo encontra na propaganda o remédio para os seus males. Um elixir, um acalmante que, progressivamente, fará de si propagandista. Jaques Ellul não o diz explicitamente, mas o propagandista, enquanto técnico que procura sobretudo ser eficaz, está no vendedor, no publicitário, no relações-públicas, nos homens da comunicação. Mas noutras condições, o propagandista é também o propagandeado, pois, também ele precisa da propaganda para dar sentido ao seu quotidiano. É um mundo totalitário, o seu (o nosso?) onde a mentira se produz incessantemente, colorindo e interpretando os factos. Mais do que a antítese da democracia, a propaganda é a antítese do ideal da argumentação pública e da vida cívica, plantando nos homens preconceitos e mitos. As (pretensas) convicções democráticas desses homens revelam-se, então, destituídas de qualquer conteúdo democrático; falam como bonecos de um ventríloquo invisível, alheios a pensamentos originais, ao debate, à experiência directa, ao entendimento dos outros. Muitos leitores apelidarão “Propagandas” de pessimista, de radical (Ellul parece desconsiderar a capacidade do homem pensar sob os efeitos de qualquer mass media e reduzir a sociedade a um estado permanente de propaganda), mas a sua leitura hoje, porventura mais do que nos anos 60, toma a forma de um acto necessário, tal a fragilidade do homem contemporâneo, tal a vacuidade das suas ilusões e das suas verdades, diante do poder da propaganda. Nota final: elogie-se tradução de Miguel Serras Pereira, na restituição da voz com que Jacques Ellul exprime as ideias, e o trabalho do editor, Luís Oliveira.