A intimidade de um fim
“O que há num nome?”, interroga-se a personagem de um dos nove contos que marcam a estreia de Sérgio Godinho na ficção para adultos. A personagem irá correr em busca desse sentido que o autor decidiu ser tão grande ou tão reduzido que o subtraiu, o nome. Não existem nomes, nem lugares, nem tempo a não ser o das estações do ano, os lugares que nos dizem se estamos em casa, numa cama, num teatro ou numa fábrica, ou os substantivos feminino e masculino, indicadores de uma tarefa ou de uma condição: actriz, pré-catastrofista, carrasco, amante. São contos acerca do resvalar do equilíbrio, do que sobrevive e morre em cada mudança, de memórias e esquecimento. Sobretudo no amor e na morte.
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“O que há num nome?”, interroga-se a personagem de um dos nove contos que marcam a estreia de Sérgio Godinho na ficção para adultos. A personagem irá correr em busca desse sentido que o autor decidiu ser tão grande ou tão reduzido que o subtraiu, o nome. Não existem nomes, nem lugares, nem tempo a não ser o das estações do ano, os lugares que nos dizem se estamos em casa, numa cama, num teatro ou numa fábrica, ou os substantivos feminino e masculino, indicadores de uma tarefa ou de uma condição: actriz, pré-catastrofista, carrasco, amante. São contos acerca do resvalar do equilíbrio, do que sobrevive e morre em cada mudança, de memórias e esquecimento. Sobretudo no amor e na morte.
Não é a primeira vez que Sérgio Godinho (n. Porto, 1945) escreve fora das canções, onde criou tantas personagens com nomes. Etelvina, Barnabé, a avó Maroquinhas estão na história do seu cancioneiro que conta com mais de 300 títulos. Nos livros, publicou poesia, O Sangue por um Fio (Assírio & Alvim, 1996) e, para crianças, O Pequeno Livro dos Medos (também Assírio & Alvim, 1991). Foi dramaturgo, autor de guiões para cinema. A escrita tem feito parte de um percurso onde se destaca como letrista e terá importado parte dessa identidade rítmica e poética para os contos que encontramos em Vidadupla.
“Tinha-me especializado no nó de sete laços, bastavam sete, e era eu que o preparava em ocasiões especiais, quase que uma refeição sem sabor nem alimento. Nada de mais, mas questão apesar de tudo árdua, calcular a distância mínima e máxima entre o pescoço e a corda, o espaço entre o corpo e a alma.” A fala é na primeira pessoa, e sempre íntima, uma fala interior, torturada, inquieta, por vezes alucinada ou torpe, na eterna busca desse sentido primordial e alterado porque o tempo passa e muda e não há inocentes nem inocência. O carrasco tenta passar à frente para a próxima execução como se não fosse marcado por cada uma. Até que um dia, todas se revelaram na sua própria. Foi quando olhou o alvo nos olhos. “Parece que houve um momento em que se apercebeu de tudo o que tinha sido. É esse o momento em que se é outra pessoa. E deu-se conta das notas soltas da sua cabeça ainda intacta, muito embora as não tivesse sequer, nunca na vida, formulado. Parece.”
O jogo de palavras e de sentidos mantém-se como um das marcas numa escrita assente num vocabulário vasto onde se procura sempre a dualidade de sentidos e, mais uma vez, uma métrica que parece formar um contínuo com a das canções. “Nascer e viver no circo é andar à volta e ter só uma saída, no lugar e no tempo da próxima entrada”, lê-se no início do conto sobre a rapariga do circo, fechada no seu “círculo” entre entradas e saídas de pista com o seu cavalo, centro dos seus afectos. É talvez o conto mais luminoso do livro, marcado por quotidianos nebulosos, histórias menos definidas do que aquelas a que habitou os seus seguidores na música (é inevitável estabelecer paralelo com a sua vasta experiência enquanto letrista), e também menos fantasiosa.
Nestes nove contos, as personagens andam à cata da sua identidade e é como se ela lhes estivesse sempre a fugir ou houvesse um conflito entre o que se é e que que se espera ser, um espelho que surpreende com o reflexo que transmite, com tudo o que isso traz de perturbação. “Um espelho é reflectir e depois reflectir sobre isso”, diz uma personagem citadora de referências. De amigos, de reconhecidas figuras das letras, num conto também sempre à luta com as palavras e as suas significâncias, onde muitas vezes se derrapa para o cliché na busca da eficácia. Acontece às vezes e é pena. Sérgio Godinho é dono de um vocabulário rico e sabe manuseá-lo. Deu provas. Estes contos não são excepção. Há pinças em muitos contos. O primeiro, sobre uma actriz de identidade volátil que se vai revelando no modo como a sua nudez toca um velho lençol. O último sobre a dupla vida, a dar nome ao livro, de um homem incapaz de suportar as noites solitárias sem a mulher, morta, que escolhe dormir na rua; o segundo, onde o carrasco mata, tentando esquecer; o das mulheres amantes onde se tacteia a vida como o modo de a escrever.
Revelam o escritor. Sérgio Godinho é um escritor, que se lançou numa nova aventura e se sai bem nessa estreia no conto: a contenção. E fá-lo de modo ambicioso, escolhendo um caminho pouco fácil, o do não dito, o dos silêncios íntimos. Pena, outra vez, que por momentos se perca nas muitas palavras, nesse jogo que por vezes se torna mais visível do que, por exemplo, a angústia da personagem na sua existência perdida. Quando a gestão do modo de escrever sobressai à essência, e esta é a grande trunfo: o da luta das emoções. Não será a tentação da originalidade, como ocorre à personagem de Osmose, o oitavo conto, a que sabe que se pensa diferente em cada língua. Sérgio Godinho já viveu e escreveu o suficiente para saber isso. O mérito está quase sempre quando consegue comunicar, contido (brutal ou delicado) a dor da traição em O Álibi do Falso Culpado, a segunda história sobre inocência e culpa ou o tempo de dizer a alguém que um amor acabou. É esse o ponto da epifania, outro dos temas aqui tratados.