Milan Kundera e a era do vazio
Milan Kundera voltou ao romance com um bem humorado exercício de sarcasmo sobre o triunfo da insignificância sobre a grandeza
Mais de uma dezena de anos depois do seu último romance (A Ignorância), o checo Milan Kundera (n. 1929) volta à ficção com uma fábula moral sobre a futilidade da vida nos nossos dias. A Festa da Insignificância não é, de modo algum, um romance apocalíptico ou com propósitos críticos, mas antes uma brincadeira séria e bem humorada sobre uma sociedade (em que “muita gente já não sabe quem foi Estaline”) que se transformou num teatro de marionetas – à semelhança do criado por uma das personagens – um exercício de sarcasmo sobre a época que vivemos. “De uma época da qual não restarão traços? Dos livros, dos quadros lançados no vazio? Da Europa, que já não será Europa? Das piadas de que já ninguém rirá?”
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Mais de uma dezena de anos depois do seu último romance (A Ignorância), o checo Milan Kundera (n. 1929) volta à ficção com uma fábula moral sobre a futilidade da vida nos nossos dias. A Festa da Insignificância não é, de modo algum, um romance apocalíptico ou com propósitos críticos, mas antes uma brincadeira séria e bem humorada sobre uma sociedade (em que “muita gente já não sabe quem foi Estaline”) que se transformou num teatro de marionetas – à semelhança do criado por uma das personagens – um exercício de sarcasmo sobre a época que vivemos. “De uma época da qual não restarão traços? Dos livros, dos quadros lançados no vazio? Da Europa, que já não será Europa? Das piadas de que já ninguém rirá?”
Em jeito de peça musical escrita em sete partes – como já acontecia em A Insustentável Leveza do Ser – Kundera vai fazendo neste romance variações sobre o mesmo tema, misturando a Paris de hoje com os fantasmas da União Soviética de Estaline, como um puzzle que vai sendo construído diante do leitor, a que não faltam uns traços de metaficção. Cinco amigos (Alain, Charles, Ramon, D’Ardelo e Caliban), numa deriva mais ou menos estéril, tentam dar sentido a uma existência vazia. O narrador vai contando, de maneira aparentemente desorganizada, encontros casuais dos amigos nas ruas, em festas, nas casas de cada um. Sempre em situações frívolas e em que a angústia é contada com frases triviais. Um deles, logo a abrir o romance, discorre sobre o umbigo, que segundo ele passou a ser o novo centro erótico feminino, em prejuízo das coxas, das nádegas e dos seios, mas que ao mesmo tempo invoca a maternidade (ele foi abandonado pela mãe em criança mas ainda mantém com ela diálogos imaginários). Outro, ao tomar conhecimento dos resultados das análises e de que não tem um cancro, decide mentir e dizer que a sua vida está por um fio. Outro ainda, um actor desempregado, Caliban – cujo nome lhe vem do ingénuo selvagem da peça A Tempestade, de Shakespeare – faz-se passar, nas festas em que trabalha com Charles, por paquistanês falando uma língua incompreensível apenas para troçar dos convidados. Charles, um dramaturgo e poeta que nunca escreveu nada, concebe um teatro de marionetas ao longo da narrativa que é visitada amiúde por fantasmas soviéticos. Ramon é um diletante que contempla as pessoas pela cidade, em especial as que fazem fila para uma famosa exposição da obra de Chagall. Todos eles são personagens à procura de uma marca de individualidade, da “ilusão da individualidade”, socorrendo-se do fingimento, de maneira desesperada, para adquirirem alguma espessura.
A “leveza do ser” dá neste romance lugar à insignificância. Mas Kundera mantém vivos os três “pilares” sobre os quais construiu a sua obra: sexo, ironia e a falácia do poder. E é precisamente a ironia que mais se manifesta neste teatro de marionetas, de um acto em sete partes, em que um grupo de amigos se entrega a diálogos extravagantes onde surgem referências aos pensamentos de Hegel e de Schopenhauer, ao mesmo tempo que uma diva enche a boca de salmão e que uma valiosa garrafa de Armagnac, elevada numa espécie de altar, se parte, ou ainda às recorrentes caricaturas de Estaline e das suas reuniões no poltiburo (sobretudo a sua relação com o apagado Kalinine, que pela sua insignificância ficou imortalizado no nome da cidade de Kaliningrado, antes Königsberg) que são capazes de deitar por terra qualquer desejo de utopia.
O caminho das personagens para se reconciliarem com a insignificância, pois “ela é a chave da sabedoria”, é o humor que lhes chega do fingimento. “A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Está connosco sempre e em toda a parte. Está presente mesmo onde ninguém a quer ver: nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores infelicidades. Exige-se-nos muitas vezes coragem para a reconhecer em condições tão dramáticas e para a chamar pelo nome.” Para Milan Kundera, por detrás de toda a ironia, o nosso tempo caracteriza-se pelo triunfo da insignificância sobre a grandeza, mas há também nisso uma certa transcendência (com leveza, é certo) do trivial.
O romance termina com uma das cenas mais metafóricas de toda a narrativa: no jardim do Luxemburgo, um homem “com grandes bigodes, vestido com uma velha parka usada, uma comprida espingarda de caça pendurada no ombro”, acaba por disparar contra uma estátua de uma rainha de França, arrancando-lhe o nariz, para impor a sua vontade a um pobre homem de que não se podia urinar no jardim. Todos os que assistem riem. Aquele homem, “um sedutor de aldeia”, neste teatro de marionetas, é Estaline. A gravidade da História deu nos nossos dias lugar à impostura, à fácil leveza desprovida de significado.
Não sendo um dos melhores romances de Milan Kundera, A Festa da Insignificância não pode deixar de ser lido como uma espécie de “testamento literário”, uma divertida reflexão sobre o destino trágico do ser humano.