O garoto de Bill
Se se traz Bill Murray para um elenco, tem que se deixá-lo ser Bill Murray, e se possível construir o filme à volta dele.
Vincent é Bill Murray, e de facto ninguém como ele personifica hoje essa “tristeza de homem triste”, desiludida e cansada mais do que revoltada. Um Santo Vizinho é (quase) só Bill Murray, que deve ser também o actor menos versátil do mundo, impossível de encafuar dentro de uma personagem que não seja, exactamente, Bill Murray. Nos últimos dez ou doze anos só Sofia Coppola e Wes Anderson souberam filmá-lo; o estreante Theodore Melfi, mesmo sem deixar augurar, com este filme, um futuro extraordinariamente promissor, tem a inteligência bastante para saber que, se se traz Bill Murray para um elenco, tem que se deixá-lo ser Bill Murray, e se possível construir o filme à volta dele. É o que faz Um Santo Vizinho, e partir daí basta-lhe não fazer asneiras para se ganhar. E não faz nenhuma asneira de monta, mesmo se se deixa aguar um bocado nos últimos vinte minutos, em parte redimidos pelo apoteótico longo plano que acompanha o genérico de fecho: Murray, um banco de jardim, uma parede, um vaso, uma mangueira, uma espreguiçadeira, dois cigarros, um par de “headphones” e a voz de Bob Dylan a cantar “come in, she said, I’ll give you shelter from the storm”.
O que falta ao filme em originalidade - pois é a enésima versão da história de amizade entre um velho rezingão e um garoto emocionalmente coxo, quase um Gran Torino em versão “cartoon” - compensa-se nesta espécie de objectividade, nesta noção muito precisa do que é o centro do filme (e a quantidade de planos americanos em que o protagonista é filmado, bem superior à média actual dum filme americano corrente, mostra que Melfi percebeu que o corpo de Murray é um depósito de “gravitas” andante). A justeza do “casting” dos secundários, do miudo (Jaden Lieberher) à mãe dele (Melissa McCarthy), passando pela prostituta russa que é a única “amiga” de Vincent e tinha tudo para ser uma caricatura (até uma prótese na barriga) mas que Naomi Watts milagrosamente sustém antes disso, assegura que Murray, mesmo se o filme é dele, não está sozinho. Se o arco narrativo é previsível - é desenhar o percurso da “humanização” de Vincent, transformar os seus “defeitos” numa medida da sua complexidade interior, descobrir-lhe uma forma de “santidade” - noutra coisa Um Santo Vizinho mostra irrepreensível inteligência: não faz promessas tolas, não promete “outra vida”. É nesta vida - “uma vida de merda”, nas palavras de Vincent - onde as pessoas são exploradas pelos patrões (como a mãe do garoto) ou sugadas pelos bancos (como Vincent) que é preciso encontrar uma medida de consolo. É aí que Dylan e os cigarros caem que nem ginjas: raramente se viu, nos últimos anos, um plano tão eloquente sobre o prazer.
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Vincent é Bill Murray, e de facto ninguém como ele personifica hoje essa “tristeza de homem triste”, desiludida e cansada mais do que revoltada. Um Santo Vizinho é (quase) só Bill Murray, que deve ser também o actor menos versátil do mundo, impossível de encafuar dentro de uma personagem que não seja, exactamente, Bill Murray. Nos últimos dez ou doze anos só Sofia Coppola e Wes Anderson souberam filmá-lo; o estreante Theodore Melfi, mesmo sem deixar augurar, com este filme, um futuro extraordinariamente promissor, tem a inteligência bastante para saber que, se se traz Bill Murray para um elenco, tem que se deixá-lo ser Bill Murray, e se possível construir o filme à volta dele. É o que faz Um Santo Vizinho, e partir daí basta-lhe não fazer asneiras para se ganhar. E não faz nenhuma asneira de monta, mesmo se se deixa aguar um bocado nos últimos vinte minutos, em parte redimidos pelo apoteótico longo plano que acompanha o genérico de fecho: Murray, um banco de jardim, uma parede, um vaso, uma mangueira, uma espreguiçadeira, dois cigarros, um par de “headphones” e a voz de Bob Dylan a cantar “come in, she said, I’ll give you shelter from the storm”.
O que falta ao filme em originalidade - pois é a enésima versão da história de amizade entre um velho rezingão e um garoto emocionalmente coxo, quase um Gran Torino em versão “cartoon” - compensa-se nesta espécie de objectividade, nesta noção muito precisa do que é o centro do filme (e a quantidade de planos americanos em que o protagonista é filmado, bem superior à média actual dum filme americano corrente, mostra que Melfi percebeu que o corpo de Murray é um depósito de “gravitas” andante). A justeza do “casting” dos secundários, do miudo (Jaden Lieberher) à mãe dele (Melissa McCarthy), passando pela prostituta russa que é a única “amiga” de Vincent e tinha tudo para ser uma caricatura (até uma prótese na barriga) mas que Naomi Watts milagrosamente sustém antes disso, assegura que Murray, mesmo se o filme é dele, não está sozinho. Se o arco narrativo é previsível - é desenhar o percurso da “humanização” de Vincent, transformar os seus “defeitos” numa medida da sua complexidade interior, descobrir-lhe uma forma de “santidade” - noutra coisa Um Santo Vizinho mostra irrepreensível inteligência: não faz promessas tolas, não promete “outra vida”. É nesta vida - “uma vida de merda”, nas palavras de Vincent - onde as pessoas são exploradas pelos patrões (como a mãe do garoto) ou sugadas pelos bancos (como Vincent) que é preciso encontrar uma medida de consolo. É aí que Dylan e os cigarros caem que nem ginjas: raramente se viu, nos últimos anos, um plano tão eloquente sobre o prazer.