Estado Islâmico: Washington e Ancara em rota de colisão
A “grande coligação” contra o EI é uma condição indispensável para a intervenção americana. Mas tem uma fragilidade inata: americanos, turcos ou sauditas não têm a mesma visão nem os mesmos objectivos. Na origem da grande divergência entre Washington e Ancara estão visões e objectivos opostos sobre a Síria, em parte motivados pela questão curda.
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A “grande coligação” contra o EI é uma condição indispensável para a intervenção americana. Mas tem uma fragilidade inata: americanos, turcos ou sauditas não têm a mesma visão nem os mesmos objectivos. Na origem da grande divergência entre Washington e Ancara estão visões e objectivos opostos sobre a Síria, em parte motivados pela questão curda.
Síria
Resume Aydin Mustafa, presidente do Conselho de Relações Internacionais (UIK), de Istambul: “As prioridades turcas na região incluem derrubar [o Presidente sírio Bashar] Assad, impedir que grupos curdos assumam de facto o controlo da Síria do Norte, convencer o Governo iraquiano a fazer um compromisso com os grupos sunitas, conter a influência iraniana no Iraque e, por fim, dissuadir o EI de ameaçar directamente os interesses turcos. Destruir o EI não aparece nesta lista.”
Os EUA estão concentrados no Iraque e a sua estratégia na Síria é, no mínimo, ambígua. Ao contrário da visão do Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, Obama recusa-se a transformar a campanha militar contra o EI numa operação para acelerar a queda do regime de Damasco.
Para Erdogan e para o seu primeiro-ministro, Ahmet Davutoglu, o EI é um “diabo menor” quando comparado com Assad. Explica o analista Soli Ozel: “Davutoglu diz que o EI é um produto da raiva. Se a fonte desta raiva, designadamente o regime sírio, permanecer, então esses grupos prosperarão.”
Ancara manteve excelentes relações com Assad até à revolta de 2011. Depressa passou a apoiar a oposição armada, sem se preocupar com a rápida expansão dos jihadistas. O peso da guerra recai largamente sobre a Turquia: acolheu 1,5 milhões de refugiados da guerra civil síria. Ancara argumenta que a mudança de regime em Damasco é uma exigência de segurança nacional. Os generais turcos partilham esta análise. O Médio Oriente mudou profundamente desde 2011, o ano das “primaveras”. Mas Erdogan e Davutoglu mantêm uma firme continuidade nas suas posições. Hoje, a sua estratégia está debaixo de fogo na própria Turquia.
Ancara falhou na tentativa de convencer os americanos a transformar o regime de Assad no seu primeiro alvo na Síria, do mesmo modo que não os convenceu a criar uma zona de exclusão aérea e uma zona-tampão humanitária no Norte da Síria. Os curdos consideram que estas medidas visam impor a supremacia da Turquia no Norte da Síria.
Os EUA não só recusam envolver-se directamente no conflito sírio como rejeitam a ideia de combater dois inimigos ao mesmo tempo. Se têm frágeis aliados em Bagdad, não dispõem de parceiros na Síria. Aqui, o seu objectivo é mais limitado: golpear o EI para conter a sua ofensiva no Iraque.
Os americanos não acreditam na oposição armada síria, composta por 1500 grupos locais, chefiados por “senhores da guerra”, e quando os mais poderosos são o EI e a Frente al-Nusra, vinculada à Al-Qaeda. O Exército Livre da Síria, em que os ocidentais outrora apostaram e que a Turquia tenta desesperadamente reanimar, é uma força marginal. Washington defende uma “solução política” — mesmo sabendo que um compromisso está muito longe no horizonte, dado o grau de polarização da Síria.
Ancara pensa o inverso e insiste que os americanos devem armar todas as forças que se opõem tanto a Assad como ao EI, incluindo a Al-Nusra. Apesar de promessas genéricas, Obama não tem pressa em distribuir mais armas na Síria.
Curdos
A política síria de Erdogan é em parte determinada pela questão curda. Os curdos da Síria tentaram manter-se afastados da guerra entre Assad e os rebeldes, dando prioridade à consolidação do seu território. Em Novembro de 2013, três “cantões” curdos, entre eles o de Kobani, proclamaram a sua autonomia perante Damasco, embora sem cortar todas as pontes.
O principal partido curdo, a União Democrática da Síria (PYD), de Salih Muslim, e o seu braço armado, Unidades de Protecção do Povo (YPG), têm relações históricas com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Quando o EI lançou, em Setembro, o ataque à região de Kobani, Muslim encontrou-se com os serviços secretos turcos, pedindo uma passagem livre para a cidade sitiada, a fim de fazer chegar reforços e armas antitanque. Os turcos expuseram as suas exigências: o PYD deveria romper todas as relações com Damasco, dissolver as suas regiões autónomas, distanciar-se do PKK. Ancara pretenderia ainda que os curdos sírios se integrem no Exército Livre Sírio.
Muslim esclareceu numa entrevista que foi torturado nas prisões sírias mas que a sua prioridade é preservar o território curdo e não derrubar Assad. Perante a resposta, os turcos fecharam o acesso a Kobani. A decisão provocou já um efeito perverso para Ancara: os americanos, que precisam de “parceiros” na Síria, passaram a colaborar com o PYD.
A parada é muito alta. O EI procura arrancar aos curdos o controlo de quase 100 km de fronteira com a Turquia, fazendo a junção com a fronteira iraquiana, reforçando as rotas de abastecimento e tráfico de petróleo que os americanos procuram neutralizar. Mais importante: seria uma imensa vitória de propaganda. Se a cidade cair, o EI demonstrará o fracasso da intervenção americana sem tropas no terreno, porá em causa o futuro da coligação e consolidará a sua posição de líder mundial do jihadismo.
“O Governo turco encara, obviamente, a potencial formação de uma nova entidade curda na sua fronteira sul como uma ameaça maior do que a do EI. Ancara não quer a repetição do cenário do Nordeste iraquiano”, escreve Suat Kinikoglu, director do Centro Estratégico de Comunicação, um think tank de Ancara. “Do ponto de vista puramente turco, é compreensível. No entanto, a Turquia não se pode permitir que Kobani caia.”
“A Turquia retiraria mais benefícios se apoiasse os sírios curdos, pois ganharia influência no desenho de uma futura entidade curda. Que Kobani caia ou não, já pouco interessa, porque a resistência da cidade já se apoderou da imaginação dos curdos. É o mito ideal para ser usado na construção nacional pelos curdos.”
E não se apoderou apenas da imaginação dos curdos sírios, mas também da dos curdos turcos. Erdogan terá aberto uma caixa de Pandora.