A Turquia e a questão curda
É na Turquia que a questão curda tem a sua maior dimensão e complexidade política.
Sendo, simultaneamente, Europa e Médio Oriente, o leste e o sudeste do país interligam-na com essa área geopolítica conturbada e os seus intrincados conflitos. Às suas portas decorrem a violenta guerra civil na Síria, a guerra intermitente no Iraque e as bárbaras atrocidades do ISIL (Estado Islâmico do Iraque e Levante, na sigla Inglesa), sobre as minorias cristãs, yazidis, xiitas e curdas. Consequência da instabilidade geopolítica e da crise humanitária gerada, a questão curda voltou a reentrar na política internacional. Como se pode ver pelas recentes e dramáticas imagens do cerco à cidade síria de Kobani, junto à fronteira turca, pelo ISIL, o problema curdo tem um perfil transnacional. O que explica a repartição das populações curdas por vários Estados? Como se chegou à questão curda actual, onde esta minoria étnica é alvo frequente de violência e sofrimentos provocados pelos próprios Estados onde vive? Impõe-se um breve enquadramento político e histórico.
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Sendo, simultaneamente, Europa e Médio Oriente, o leste e o sudeste do país interligam-na com essa área geopolítica conturbada e os seus intrincados conflitos. Às suas portas decorrem a violenta guerra civil na Síria, a guerra intermitente no Iraque e as bárbaras atrocidades do ISIL (Estado Islâmico do Iraque e Levante, na sigla Inglesa), sobre as minorias cristãs, yazidis, xiitas e curdas. Consequência da instabilidade geopolítica e da crise humanitária gerada, a questão curda voltou a reentrar na política internacional. Como se pode ver pelas recentes e dramáticas imagens do cerco à cidade síria de Kobani, junto à fronteira turca, pelo ISIL, o problema curdo tem um perfil transnacional. O que explica a repartição das populações curdas por vários Estados? Como se chegou à questão curda actual, onde esta minoria étnica é alvo frequente de violência e sofrimentos provocados pelos próprios Estados onde vive? Impõe-se um breve enquadramento político e histórico.
2. Até à I Guerra Mundial os curdos encontravam-se essencialmente repartidos entre o Império Otomano e o Império Persa. Hoje encontram-se nos seus Estados sucessores, respectivamente Turquia, Iraque e Síria (Império Otomano) e Irão (Império Persa). A sua população total é estimada algures entre os 27,5 e os 35 milhões de pessoas. A seguir aos árabes, aos turcos e aos persas/iranianos, os curdos são o quarto maior grupo étnico do Médio Oriente. Não existem, todavia, estatísticas oficiais que permitam dar um número rigoroso, pelo que todos os valores que se possam apontar são meras aproximações. A dispersão territorial e política da população curda acentuou a sua heterogeneidade. Encontram-se repartidos por vários grupos religiosos e linguísticos, a par de divisões tribais e em clãs. Em termos religiosos, existe uma grande predominância de muçulmanos sunitas (rondará os 80% ou até um pouco mais). É significativo o número de alevis (estimado entre 12% a 15 %). Em termos mais residuais, encontram-se também yazidis, judeus e cristãos (na ordem dos 3% ou algo inferior). Quanto à língua curda contém vários dialectos: o curmanji, o sorani, o zaza e o gorani. Os dois primeiros são predominantes, existindo, também, diversos subdialectos. Importa notar que uma parte significativa dos curdos não fala curdo, em qualquer dos seus dialectos. As razões são essencialmente políticas e estão ligadas à proibição legal e/ou marginalização política e social do uso da língua curda, nos Estados onde vivem.
3. A história faz sentir o seu peso na questão curda. O Tratado de Sèvres, assinado em 1920, entre as potências vencedoras da I Guerra Mundial e o Império Otomano/Turquia previa a possibilidade de nascimento de um Estado curdo. À parte os interesses estratégicos das potências europeias na região, a ideia inseria-se na linha dos ideais do Presidente dos EUA, Woodrow Wilson e da fórmula do “direito das Nações disporem de si próprias”. O Tratado de Sèvres nunca chegou a ter validade jurídica, pois não foi ratificado pelo Império Otomano/Turquia. Todavia, o seu texto reflecte problemas bem actuais. No seu artigo 62º, sob a epígrafe “Curdistão”, estabelecia a preparação da “autonomia local para as regiões predominantemente curdas, situadas a leste do Eufrates [...] e a norte da fronteira da Turquia com a Síria e a Mesopotâmia.” Previa, complementarmente, “garantias plenas para a protecção dos assírios-caldeus e outras minorias raciais ou religiosas no interior destas regiões”. Por sua vez, o artigo 64.º considerava uma possível independência: “Se, no prazo de um ano a contar da entrada em vigor do presente Tratado, a população curda [...] demonstrar que uma maioria da população dessas regiões deseja tornar-se independente da Turquia [...]” esta compromete-se “a executar essa recomendação e a renunciar a todos os direitos e títulos sobre essas regiões.” Não foi esse o rumo da história, após a vitoriosa campanha militar de Mustafa Kemal Atatúrk, em 1921-1922, que levou à fundação da moderna República da Turquia em 1923.
4. É na Turquia que a questão curda tem a sua maior dimensão e complexidade política. Isto ocorre por várias razões. Existe uma substancial população de etnia curda (cerca de 18% do total, podendo atingir cerca de 15 milhões ou mais). O território tradicionalmente habitado por populações curdas, situado no leste e sudeste do país, é o mais extenso (na ordem dos 230 mil km2, cerca de 30% do total). A acrescer a isto há a sublevação armada do Partiya Karkeran Kurdistan/Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), iniciada em 1984, à qual o exército turco respondeu com uma violenta repressão. A confrontação durou cerca de uma década e meia, alternando períodos de grande intensidade com outros de relativa acalmia. O saldo trágico foi de mais de 40.000 mortos. Já nessa altura o carácter transnacional da questão emergiu em ligação com o Iraque. Em 1991, a após a derrota de Saddam Hussein que invadira o Koweit, foi estabelecida uma zona de exclusão aérea no norte do Iraque, para proteger as populações curdas. A situação na época gerou duas grandes apreensões à Turquia, as quais têm certas semelhanças com a crise actual provocada pelo ISIL Uma foi humanitária e relacionada com a deslocação de centenas de milhares curdos do Iraque para o seu território. A outra foi estratégica e resultou dos receios de que uma independência de facto do norte do Iraque contagiasse as suas populações curdas. Isso levou a procurar alianças de conveniência com os curdos do Iraque de modo a reprimir a guerrilha do PKK nas montanhas fronteiriças de Kandil, já em território iraquiano. Esta estratégia de jogar com as divisões curdas manteve-se até à actualidade. Com a detenção do líder do PKK, Abdullah Öcalan, em 1999, o conflito entrou numa fase de acalmia militar. Em paralelo, ocorreram, também, melhorias nos direitos culturais e políticos da população curda, em grande parte devido a pressões externas, sobretudo as decorrentes da abertura das negociações de adesão da Turquia à União Europeia.
5. A existência de “danos colaterais” na luta do Estado turco contra os curdos não é uma novidade. Recordamos apenas um caso: os atentados terroristas de Novembro de 2003, em Istambul, onde foram destruídas duas sinagogas, um banco e o consulado britânico, provocando várias dezenas de mortos. Na versão oficial as culpas foram atribuídas elementos ligados à Al-Qaeda. Todavia, um escrutínio atento sugeriu um caso mais complexo. Os autores pertenciam a um grupo islamista que, durante vários anos, lançou ataques contra elementos PKK. O exército turco, durante algum tempo, terá facilitado o seu “trabalho sujo”. As consequências dessa estratégia foram perversas. O extremismo islamista terá sido mobilizado contra os “ateus marxistas” do PKK. Todavia, quando o conflito curdo entrou numa fase de acalmia, insurgiu-se contra o próprio Estado turco. Hoje, a relação da Turquia com o ISIL faz lembrar, de alguma forma, o caso aqui referido e a estratégia de que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Os seus atuais inimigos continuam a ser os nacionalistas curdos, especialmente do PKK, mas também o governo sírio de Bashar al-Assad. A sua inércia militar não é, por isso, uma atitude de particular prudência, derivada da complexidade da situação geopolítica e do risco de baixas inerentes a combates terrestres. É uma estratégia onde se espera que o ISIL faça o “trabalho sujo”, ou seja enfraqueça, o mais possível, os curdos da Síria (vistos como ramificação do PKK) e ataque o regime pró-xiita de Bashar al-Assad, da minoria alauita. Importa recordar: o ISIL adquiriu a dimensão actual, em parte porque a Turquia, até há poucos meses atrás (tal como outros países sunitas em luta pela supremacia no Médio Oriente), foi permissiva no uso do seu território como plataforma de acesso de jihadistas à Síria. Contemporizou, também, com a venda de petróleo no mercado paralelo, através da sua fronteira, o que permitiu ao ISIL obter vultuosos meios financeiros. Os resultados estão à vista. Para além do desastre humanitário, está a fazer efeito de ricochete sobre a própria Turquia, pela propagação da instabilidade às suas populações curdas e risco da confrontação se prolongar no seu território.