Saturno é mesmo aqui

Herman Poole Blount nasceu há 100 anos no Alabama, mas escolheu promover a libertação através da música como Sun Ra, um ser vindo de Saturno. O centenário comemora-se hoje no GNRation (Braga) com um espectáculo de Nuno Rebelo e alunos do Conservatório Calouste Gulbenkian. Amanhã, no Teatro Maria Matos (Lisboa), terão a companhia de Gala Drop, Bruno Pernadas e Mo Junkie.

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Foi a disponibilidade para perseguir a intuição que o levou, em escassos dez anos, da big band de Fletcher Anderson para uma obra que permanece como uma das maiores manifestações de libertação musical que se ouviu até hoje – não por acaso, Ra abandonou o seu verdeiro apelido, Blount, por ser “nome de escravo”. Ao mesmo tempo que o ragtime e o swing faziam parte da sua linguagem, apontava para uma projecção futurista, em que a abordagem ao free incluía a inauguração de um tempo em que o jazz passava a ser íntimo da música eléctrica (sintetizadores, baixo eléctrico, etc.) e da música electrónica (caixas de ritmos e outros dispositivos). Na música de Sun Ra, o presente parecia resultar de duas forças em constante fricção, uma reclamando-o como peça pertencente à tradição, outra forçando a sua visão musical para um terreno desocupado a que só se poderia chamar futuro.

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Foi a disponibilidade para perseguir a intuição que o levou, em escassos dez anos, da big band de Fletcher Anderson para uma obra que permanece como uma das maiores manifestações de libertação musical que se ouviu até hoje – não por acaso, Ra abandonou o seu verdeiro apelido, Blount, por ser “nome de escravo”. Ao mesmo tempo que o ragtime e o swing faziam parte da sua linguagem, apontava para uma projecção futurista, em que a abordagem ao free incluía a inauguração de um tempo em que o jazz passava a ser íntimo da música eléctrica (sintetizadores, baixo eléctrico, etc.) e da música electrónica (caixas de ritmos e outros dispositivos). Na música de Sun Ra, o presente parecia resultar de duas forças em constante fricção, uma reclamando-o como peça pertencente à tradição, outra forçando a sua visão musical para um terreno desocupado a que só se poderia chamar futuro.

Não é, por isso, acidental que Nuno Rebelo escolha a frase acima transcrita do músico visionário, explicativa do porquê de o seu olhar não parar onde as paredes estavam erguidas, como motivo para um dos temas inéditos que compôs para o espectáculo We Travel the Spaceways, uma encomenda do Teatro Maria Matos (Lisboa) e do GNRation (Braga). Nuno Rebelo rebobina o discurso para se corrigir. “Na verdade, a composição é do Sun Ra na mesma, eu só faço os arranjos.” E isto porque o músico fundador dos Mler Ife Dada seleccionou vários trechos de vídeos em que Sun Ra fala sobre a sua visão espiritual e cosmológica da música, determinando em seguida as notas desse segmento oral para criar um novo tema. Daí que, quando o ÍPSILON acompanha um dos ensaios de construção do espectáculo no auditório do Conservatório Calouste Gulbenkian, em Braga, se oiça primeiro a reprodução da frase sobre a intuição, até que o loop vai sendo progressivamente replicado pelo trombone de vara.

Foi uma das abordagens imaginadas por Nuno Rebelo para se relacionar com um grupo de 30 alunos do Conservatório, maioritariamente de 15/16 anos, virgens numa relação menos formal com a prática musical. No primeiro ensaio, recorda Rebelo, após a passagem por alguns temas devidamente anotados em partitura, haveria de desafiá-los a tocar “uma nota qualquer” sobre um acorde de piano. “Eles ficaram incrédulos”, relata. “Depois riram, fizeram as notas e continuavam à gargalhada, como quem diz ‘Este tipo está maluco da cabeça, isto é horrível, mas se é isto que ele quer a gente vai fazendo’.” Apesar do pouco tempo de ensaios, voluntariamente e depois das aulas, as gargalhadas foram dando lugar a sorrisos de quem sabe estar com os dois pés do lado da transgressão. Pode uma nota não estar escrita, existir sem saber qual lhe sucede? Quando Rebelo propõe um exercício em que o grupo fica em autogestão, sopros e cordas obedecendo a indicações genéricas de um líder designado para o efeito, há uma porta a ranger e a deixar entrever um novo horizonte. “Agora eles já respondem com naturalidade a estes desafios, com concentração e, parece-me, com a consciência de que estão a fazer música.”

De facto, a palavra free, naturalmente associada a Sun Ra, remete aqui para uma outra dimensão da liberdade e/ou de libertação. Num percurso académico moldado pela aprendizagem da música escrita, Nuno Rebelo acredita que está igualmente a mostrar a estes alunos o B-A-Bá da música contemporânea. “Uma partitura de música escrita contemporânea pode ter, por exemplo, um rectângulo com várias notas e linhas a ligá-las que nos dizem que ao tocar uma nota tem de se seguir a linha e decidir qualquer a nota seguinte dentro de caminhos já previstos. Se eles são alunos do clássico, a menos que fiquem dedicados à preservação histórica de música de gente que já morreu, irão encontrar isto mais à frente. E assim encontraram mais cedo.”

Naturalmente, Nuno Rebelo não empurra os alunos para o precipício da improvisação livre. Após fazer o download de mais de 60 obras de Sun Ra – como há dois anos fizera para a sua participação no 100º aniversário do nascimento de John Cage, 100 Cage, também no Maria Matos –, escolheu criteriosamente canções (“Space Is the Place”, “Love in Outer Space”, “We Travel the Spaceways”…) que permitissem um mergulho efectivo na música de Sun Ra, mas dentro de limites trabalháveis com o grupo de instrumentistas e coralistas. E para isso era preciso não adiantar demasiada informação logo de início sobre Sun Ra-personagem. “Entrar a matar pode ser contraproducente”, defende. “Se tivesse mostrado logo quem era o Sun Ra e que música fazia eles ficavam assustados. Até nas aulas de improvisação livre que dou num curso superior de jazz na Taller de Músics, em Barcelona, começo por lhes mostrar vídeos de coisas divertidas, como o Han Bennink a tocar numa bateria de queijos.” Ao fim de alguns dias, no final de um ensaio, Nuno Rebelo e Gil Teixeira (dos La La La Ressonance) mostram finalmente excertos de vídeos de Sun Ra aos alunos e apesar de haver quem diga, como piada, que “Saturno seria demasiado civilizado para este senhor”, no dia seguinte o ensaio faz-se despreocupadamente com chapéus em que germinam flores, gorros coloridos e um quarteto de violinos feminino de súbito composto por quatro Nefertitis de chapéu brilhante, tudo preparado pelo próprio Nuno Rebelo durante o dia para que a dramaturgia do concerto venha a espelhar as canções de amor interplanetário e as antenas sintonizadas no espaço sideral (uma forma de protesto de Sun Ra relativa à forma como o Homem ocupa o planeta).

100 Ra

A revelação da dimensão musical de Sun Ra não se limita aos estudantes. Nuno Rebelo, conhecedor sobretudo de gravações mais alinhadas com o free jazz e com a experimentação electrónica, deixou-se também deslumbrar com a profusa obra daquele que escolheu deixar cair o nome recebido da família na sua primeira chegada à Terra – não esqueçamos que da segunda vez veio de Saturno, ou pelo menos de um sítio menos conservador e opressivo do que o Alabama à época da I Guerra Mundial. Para Bruno Pernadas, convidado igualmente a participar na sessão comemorativa do centenário de Sun Ra no Maria Matos (100 Ra), a música deste “sempre fez parte de compilações de jazz que tinha em cassetes” e que lhe chegavam pelas mãos de amigos. Cassetes onde começou a relacionar-se com a música do Art Ensemble of Chicago, de Ornette Coleman ou dos Last Poets. “Como as cassetes não tinham qualquer informação em relação aos grupos, só alguns anos mais tarde descobri quem eram os autores dos temas, e entre eles estava a Sun Ra Arkestra.”

Em resposta a uma citação de Sun Ra no filme A Joyful Noise – “Nature never repeats itself, why should I repeat myself?” –, Pernadas desenvolveu um conceito de “criar algo novo a partir de todas as ideias e ferramentas que caracterizam a sua música ao nível de composição, improvisação e abordagem artística”. A aplicação passou então pela escolha de sete temas em que se propõe trabalhar “desenvolvimento melódico, impacto sonoro, polifonia, ideia de continuidade, improvisação colectiva, não-repetição estrutural, elementos rítmicos, dinâmica, textura e cores.” A aproximação far-se-á igualmente pela utilização de duas baterias, a presença de um piano eléctrico, vocalistas convidados e um naipe de sopros. Também os Gala Drop quiseram evitar a reinterpretação do reportório de Sun Ra, optando por “criar música nova de alguma maneira informada / inspirada pelo que ele fez”. O concerto do grupo incluirá uma peça de electrónica, secções apenas de percussão, textos da autoria de Ra e outras variações em que a ligação ao músico se fará, muito provavelmente, via continente africano.

Embora tenha levado algum tempo a “criar empatia” com a música de Sun Ra, Afonso Simões, baterista dos Gala Drop, revela que assistir este ano ao concerto da Askestra em Lisboa “foi uma experiência determinante para perceber tudo o que ali se passava a nível de entrosamento e direcção de músicos, formas de lidar com silêncios, harmonias versus gestão de caos”. “Para mim, a grandeza do Sun Ra tem que ver com uma visão cosmológica muito particular que se traduzia, por exemplo, na maneira como se vestiam, nas letras e nos aspectos cénicos, impossíveis de dissociar da música.” Mas a música continua a ser um poço de surpresas, tal a abrangência do seu discurso e a capacidade gregária de juntar uma miríade de estilos num composto inquisidor e coerente na sua desordem. “O Sun Ra era quase um Mler Ife Dada do jazz”, comenta Nuno Rebelo, referindo-se a essa convivência desmedida de referências e de explosão de possibilidades. O músico partiu para 100 Ra à espera de se rever no lado free de Ra. E, afinal, encontrou “uma inesperada proximidade” nas suas canções. Saturno, qualquer que seja a perspectiva, não fica mesmo assim tão longe.