Não nos passava pela cabeça

Jorge Silva Melo, encenador, cineasta, evoca neste crónica os seus Brecht. De Luís Miguel Cintra a Miguel Borges. Dos tempos de "românticos idílios pequeno-burgueses, a que alguns chamam utopias, que disparate", ao tempo dos epitáfios.

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Luís Miguel Cintra em "Tambores na Noite" Paulo Cintra

E os operários eram umas pessoas que íamos ver na Outra Banda e a quem recitávamos poesias de Carlos de Oliveira ou Ramos Rosa.
Por muito que ele diga, ao abandonar, pequeno-burguês, a insurreição Spartaquista de Berlim, por muito que Tambores na Noite (1919) de Brecht termine com o tremendo “sou um porco e um porco vai para casa”, a mim nunca me passou pela cabeça que Andreas Kragler, o protagonista, não fosse austro-húngaro e distinto, bem parecido e austero como era, único, o Luís Miguel (Cintra) desses anos.
Sim, foi espantadíssimo que vi – uma única vez, terá sido em 1977, no Goethe Institut de Curt Meyer Clason – o  inquietante Baal de Brecht filmado para televisão pelo inteligentíssimo Volker Schlöndorff em 1970. Filmado para televisão. E devíamos agora colocar aqui uma boa dúzia de pontos de exclamação.
Sim, todos sabíamos que quem criou (em 1918, em plena guerra que ainda não se sabia seria a Primeira Mundial) o Baal de Brecht foi Oskar Homolka, o imenso. Sabíamos, por termos lido, que, nesses anos sangrentos, um Novo Realismo vinha contrariar à bruta (Otto Dix!) a veemência romântica do expressionismo, sim, sabíamos isso. Mas, por muito Rimbaud que recitássemos, éramos bem comportadinhos e não dizíamos palavrões..
Ao atribuir a Rainer Werner Fassbinder o papel de Baal, Schlöndorff não fez apenas uma distribuição luminosa, esse contrato permitiu-lhe falar dos seus camaradas bávaros, este filme de poética ficção também é um retrato documental. Sim, este é um documentário sobre esses bávaros omnívoros que, entre comunidades familiares, sexualidades a inventar, descobertas políticas e literárias, cooperativas teatrais, cerveja, muita cerveja, cocaína, acção, dinheiro esbanjado, naquelas ociosas juventudes em que foram queimando as breves vidas, prolongavam o irreprimível vento de revolta que vinha de 1968, Rudi Dutschke, nosso mártir. Aqueles mesmo que, poucos anos depois, viveriam a tragédia sem solução dos Baader-Meinhoff, derradeiros românticos alemães, tão perto destes Baais.
Já isso fizera Schlöndorff num filme esquecido (e penso nisso agora; qual a sua importância no meu primeiro, Passagem?), a sua versão do Michael Kohlhaas de Kleist com o genial David Warner e a tão perdida Anna Karina, filme incerto que vi no Eden (era, puro logro, vendido como filme de aventuras) em que a imparável revolta do vendedor de cavalos servia para repensarmos a justiça, o estado, o ímpeto individualista (“sem condições objectivas”, dizia-se), a fúria esquerdista de quem, ao morrer, declarou “num país onde não defendem os meus direitos, eu não quero  viver”.
Sim, Schlöndorff seguiu o ditado amigo de Brecht, pegou em Kleist, pegou em Brecht, não lhes jurou fidelidade, usou-os sem respeito, apropriou-se prosaicamente deles para pensar em como viviam, dilacerados, ambiciosos, refugiados numa impotente revolta, auto-centrados, auto-fágicos, os desesperados filhos dos que perderam a guerra, a Segunda. E encontrou o  seu amor, a Margarette von Trotta, aqui ainda actriz.
Nada sabíamos, aqui, neste Portugal colonialista e passadinho a ferro deste suicídio que foi tão colectivo. Vivíamos românticos idílios pequeno-burgueses, a que alguns chamam utopias, que disparate. E eu usava camisas da Nazaré, sim, mas o sobretudo era da Loja das Meias e até punha badedas nos banhos de imersão, éramos uns Jeremy Irons aqui desta província, sonhando a Cambridge dos comunistas. Nem Baal tinha ainda passado para o repertório decadente de David Bowie, retomando o romantismo que precisamente Brecht fustigara.
Só voltei ao jovem Brecht muitos anos  mais tarde, arrastado pela fúria e pelo tremor do Miguel Borges, amado actor com ferida sempre exposta. Mas já era tempo de retrocessos, já Kurt Cobain morrera, já os mineiros tinham sido derrotados pela sangrenta Thatcher, já Cavaco fizera a rodagem do carrito, já a fúria passara a estar apenas estampada nas tee-shirts dos turistas..
Sim, com A Selva das Cidades e com Baal que dirigi nos Artistas Unidos (em 1998 e em 2003 ) e à volta do turbilhão que é o Miguel Borges, eu já não estava a falar dos meus amigos, de gente que eu conhecia, dos meus contemporâneos, não. Era já da nostalgia que se tratava, depois de tantas mortes, com Danny Le Rouge já na Europa. Já eram epitáfios.
Eram espectáculos tristes, tão tristes.
E com esses dois actores, o Luis Miguel e o Miguel, pude ainda mergulhar na fonte disto tudo, Georg Büchner. O Luis foi, em 1978, o meu Woyzeck, tão irmão do Kragler dos Tambores; o Miguel foi o Danton , desbragado Baal, em 2012. (E eu hoje tenho tantas saudades do José Airosa, meu admirável Ekkart no Baal).
Tudo tão triste.

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E os operários eram umas pessoas que íamos ver na Outra Banda e a quem recitávamos poesias de Carlos de Oliveira ou Ramos Rosa.
Por muito que ele diga, ao abandonar, pequeno-burguês, a insurreição Spartaquista de Berlim, por muito que Tambores na Noite (1919) de Brecht termine com o tremendo “sou um porco e um porco vai para casa”, a mim nunca me passou pela cabeça que Andreas Kragler, o protagonista, não fosse austro-húngaro e distinto, bem parecido e austero como era, único, o Luís Miguel (Cintra) desses anos.
Sim, foi espantadíssimo que vi – uma única vez, terá sido em 1977, no Goethe Institut de Curt Meyer Clason – o  inquietante Baal de Brecht filmado para televisão pelo inteligentíssimo Volker Schlöndorff em 1970. Filmado para televisão. E devíamos agora colocar aqui uma boa dúzia de pontos de exclamação.
Sim, todos sabíamos que quem criou (em 1918, em plena guerra que ainda não se sabia seria a Primeira Mundial) o Baal de Brecht foi Oskar Homolka, o imenso. Sabíamos, por termos lido, que, nesses anos sangrentos, um Novo Realismo vinha contrariar à bruta (Otto Dix!) a veemência romântica do expressionismo, sim, sabíamos isso. Mas, por muito Rimbaud que recitássemos, éramos bem comportadinhos e não dizíamos palavrões..
Ao atribuir a Rainer Werner Fassbinder o papel de Baal, Schlöndorff não fez apenas uma distribuição luminosa, esse contrato permitiu-lhe falar dos seus camaradas bávaros, este filme de poética ficção também é um retrato documental. Sim, este é um documentário sobre esses bávaros omnívoros que, entre comunidades familiares, sexualidades a inventar, descobertas políticas e literárias, cooperativas teatrais, cerveja, muita cerveja, cocaína, acção, dinheiro esbanjado, naquelas ociosas juventudes em que foram queimando as breves vidas, prolongavam o irreprimível vento de revolta que vinha de 1968, Rudi Dutschke, nosso mártir. Aqueles mesmo que, poucos anos depois, viveriam a tragédia sem solução dos Baader-Meinhoff, derradeiros românticos alemães, tão perto destes Baais.
Já isso fizera Schlöndorff num filme esquecido (e penso nisso agora; qual a sua importância no meu primeiro, Passagem?), a sua versão do Michael Kohlhaas de Kleist com o genial David Warner e a tão perdida Anna Karina, filme incerto que vi no Eden (era, puro logro, vendido como filme de aventuras) em que a imparável revolta do vendedor de cavalos servia para repensarmos a justiça, o estado, o ímpeto individualista (“sem condições objectivas”, dizia-se), a fúria esquerdista de quem, ao morrer, declarou “num país onde não defendem os meus direitos, eu não quero  viver”.
Sim, Schlöndorff seguiu o ditado amigo de Brecht, pegou em Kleist, pegou em Brecht, não lhes jurou fidelidade, usou-os sem respeito, apropriou-se prosaicamente deles para pensar em como viviam, dilacerados, ambiciosos, refugiados numa impotente revolta, auto-centrados, auto-fágicos, os desesperados filhos dos que perderam a guerra, a Segunda. E encontrou o  seu amor, a Margarette von Trotta, aqui ainda actriz.
Nada sabíamos, aqui, neste Portugal colonialista e passadinho a ferro deste suicídio que foi tão colectivo. Vivíamos românticos idílios pequeno-burgueses, a que alguns chamam utopias, que disparate. E eu usava camisas da Nazaré, sim, mas o sobretudo era da Loja das Meias e até punha badedas nos banhos de imersão, éramos uns Jeremy Irons aqui desta província, sonhando a Cambridge dos comunistas. Nem Baal tinha ainda passado para o repertório decadente de David Bowie, retomando o romantismo que precisamente Brecht fustigara.
Só voltei ao jovem Brecht muitos anos  mais tarde, arrastado pela fúria e pelo tremor do Miguel Borges, amado actor com ferida sempre exposta. Mas já era tempo de retrocessos, já Kurt Cobain morrera, já os mineiros tinham sido derrotados pela sangrenta Thatcher, já Cavaco fizera a rodagem do carrito, já a fúria passara a estar apenas estampada nas tee-shirts dos turistas..
Sim, com A Selva das Cidades e com Baal que dirigi nos Artistas Unidos (em 1998 e em 2003 ) e à volta do turbilhão que é o Miguel Borges, eu já não estava a falar dos meus amigos, de gente que eu conhecia, dos meus contemporâneos, não. Era já da nostalgia que se tratava, depois de tantas mortes, com Danny Le Rouge já na Europa. Já eram epitáfios.
Eram espectáculos tristes, tão tristes.
E com esses dois actores, o Luis Miguel e o Miguel, pude ainda mergulhar na fonte disto tudo, Georg Büchner. O Luis foi, em 1978, o meu Woyzeck, tão irmão do Kragler dos Tambores; o Miguel foi o Danton , desbragado Baal, em 2012. (E eu hoje tenho tantas saudades do José Airosa, meu admirável Ekkart no Baal).
Tudo tão triste.