Como deixámos o ébola espalhar-se
No início de Setembro, com mais de 1800 mortes confirmadas em países da África Ocidental, ainda não havia uma resposta mundial coordenada para a epidemia do ébola. No início desta semana, foi noticiado o primeiro caso de contágio fora do continente — em Madrid. A doença já matou 3400 pessoas, infectou 7500 e ameaça alastrar-se.
Tom Frieden recorda a mulher jovem com um cabelo lindo, pintado de louro e meticulosamente entrançado, de forma elaborada, provavelmente por alguém que a amava muito. Estava deitada de cabeça para baixo, com meio corpo fora do colchão. Estava morta há horas e as moscas já tinha encontrado a pele nua das suas pernas.
Outros dois corpos estavam por perto. Os pacientes acamados que ainda não tinham sucumbido diziam dos mortos: “Por favor, levem-nos daqui para fora.”
Frieden, director dos Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA, sabia que não era um assunto simples tratar apropriadamente de um corpo carregado de vírus do ébola. São precisas quatro pessoas com fatos de protecção, uma para cada canto do saco de cadáveres. Naquele dia triste de finais de Agosto, numa ala exclusiva para doentes do ébola no hospital de Monróvia, na Libéria, as equipas funerárias já tinham levado 60 vítimas para um camião para serem cremadas.
Ao longo dos anos, Frieden assistiu a muitas mortes, mas isto era muito pior do que estava à espera, uma praga com escala medieval. “Uma cena tirada do Dante”, descreveu.
Abalado, voltou aos Estados Unidos a 31 de Agosto e imediatamente resumiu a situação por telefone ao Presidente Barack Obama. A janela de acção estava a fechar-se, disse ao Presidente nesse telefonema de 15 minutos.
Essa conversa, quase seis meses depois de a Organização Mundial de Saúde (OMS) ter ficado a saber de um surto de ébola na África Ocidental, fez parte de uma tomada de consciência por parte dos líderes mundiais de que a batalha contra o vírus estava a ser perdida. No início de Setembro, com mais de 1800 mortes confirmadas na Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa, ainda não havia uma resposta global coordenada. Responsáveis americanos alarmados perceberam que tinham de chamar o Exército.
Obama acabou por ordenar a mobilização de três mil oficiais para a África Ocidental; cerca de 200 começaram a chegar no início deste mês. Irão juntar-se a eles funcionários de saúde de países como o Reino Unido, China e Cuba. O Canadá e o Japão estão a enviar equipamento de protecção e laboratórios móveis. Organizações sem fins lucrativos, como a Gates Foundation [de Bill Gates], também estão a contribuir. Mas ainda não é nada claro que esta resposta musculada seja suficiente para debelar a epidemia antes de ela ceifar dezenas de milhares de vidas.
Esta é uma crise cujo desfecho está em aberto e que envolve uma ameaça microscópica em movimento. Na semana passada, surgiu a notícia perturbadora de que a epidemia tinha atravessado o oceano Atlântico para um hospital no Texas, onde um liberiano tinha sido diagnosticado com o vírus. [Na terça-feira, ficou-se também a saber que uma auxiliar de enfermagem contraiu ébola num hospital de Madrid, depois de tratar de um missionário e médico espanhol infectado na Serra Leoa, que acabou por morrer a 25 de Setembro; a mulher, de 40 anos, começou a apresentar os primeiros sintomas cinco dias depois. Este foi o primeiro caso conhecido de contágio fora de África.]
Como é que a situação saiu assim de controlo?
O vírus ultrapassou com facilidade a resposta titubeante que teve. A OMS, um braço das Nações Unidas, é responsável por coordenar a acção internacional em crises como esta, mas sofreu cortes no orçamento, perdeu muitas das suas mentes mais brilhantes e foi lenta a disparar o alarme mundial contra a epidemia.
Os surtos anteriores de ébola tinham sido debelados com rapidez, mas essa experiência revelou-se agora enganadora e os responsáveis não anteviram a escala potencial do desastre. As suas imaginações não corresponderam à virulência do vírus.
“Retrospectivamente, poderíamos ter respondido mais depressa. Algumas das críticas são apropriadas”, reconheceu Richard Brennan, director do Departamento de Gestão do Risco e Resposta Humanitária da OMS. Mas acrescentou: “Aceitamos algumas críticas, mas também acho que temos de colocar as coisas em perspectiva, que o surto tem uma dinâmica diferente de tudo o que tínhamos visto antes e que, penso, apanhou todos desprevenidos.”
A epidemia expôs uma falta de correspondência entre as aspirações dos responsáveis da saúde mundial e a realidade do controlo de doenças infecciosas. Altos responsáveis fizeram reuniões para delinear estratégias à distância sobre como combater doenças emergentes e o bioterrorismo, enquanto médicos e enfermeiros que estão na linha da frente não têm sequer luvas de látex, máscaras de protecção, líquidos para reidratação ou sequer funcionários para carregar os corpos para a morgue.
“Não podemos esperar por essas reuniões de alto nível onde no meio de cocktails e petit-fours se discute o que se vai fazer”, exclama Joanne Liu, chefe internacional dos Médicos Sem Fronteiras, quando soube de mais uma iniciativa da ONU. O seu grupo esteve entre os primeiros na resposta à conflagração do vírus e manteve o seu pessoal na África Ocidental ao longo da crise.
A África Ocidental estava mal equipada para um desastre como o ébola, porque a guerra civil e a pobreza crónica deram cabo dos sistemas de saúde locais e há poucos médicos e enfermeiros. Os funcionários da saúde na região nunca tinham tido de lidar com um surto de ébola e naqueles primeiros meses críticos não sabiam o que estavam a ver. Na Primavera, a epidemia parecia estar a desaparecer, trazendo um excesso de confiança aos responsáveis. E foi então que o vírus saltou das aldeias rurais para as cidades populosas.
As tradições locais na forma como se lida com os cadáveres levaram a mais infecções. Alguns africanos-ocidentais acreditam que o dia em que morremos é o dia mais importante da nossa vida. O adeus final pode ser um ritual aficionado, no qual o corpo é lavado e vestido e em algumas aldeias transportado pela comunidade, com amigos e familiares a partilhar a bebida favorita do defunto, colocando as chávenas junto aos seus lábios antes de beberem.
E, finalmente, o próprio vírus desempenhou um papel fundamental na aceleração da crise. O ébola, apesar de não ser tão contagioso como outros vírus, é invulgarmente letal e aterrador. Muitos funcionários de saúde estrangeiros e voluntários abandonaram a região e muito poucos foram a correr tomar o seu lugar. Esta praga é tanto biológica como psicológica e o medo pode espalhar-se ainda mais depressa do que o vírus.
Um vírus não está realmente vivo, no sentido formal da palavra, já que não pode fazer nada fora do seu portador. O ébola é um vírus filiforme, parece um fio de esparguete. O invólucro proteico envolve uma cadeia regular de ARN, o “primo” mais simples do ADN. Podemos dizer que é um conjunto de informação pura com instruções para a sua replicação.
O ébola é um dos vírus que causam “febre hemorrágica viral”. O que o torna tão mortal é o facto de ser capaz de se apoderar dos mecanismos de muitos tipos de células, reproduzindo-se rapidamente. Deita abaixo ou desvia parte do sistema imunitário e deixa a outra parte em roda livre, causando na vítima febre, dores de cabeça, vómitos, diarreia e desidratação. A morte pode surgir dias depois, através de múltiplas falhas de órgãos.
O ébola não é nem de longe nem de perto tão contagioso como, por exemplo, o sarampo ou a gripe. Só é transmitido através de fluidos corporais depois de a febre e outros sintomas terem ocorrido. O período de incubação, entre a infecção e o aparecimento dos sintomas, dura normalmente uma semana, mas pode ir até às três. As pessoas infectadas podem percorrer grandes distâncias até começarem a espalhar o vírus. Os primeiros sintomas são semelhantes aos da malária ou gripe, dificultando um diagnóstico adequado.
Os primeiros casos de ébola apareceram no final de 2013, na Guiné-Conacri, na floresta tropical do distrito de Gueckedou, próximo das fronteiras com a Libéria e a Serra Leoa. Ninguém sabe ao certo quando é que o vírus saltou para a população humana ou a partir de que animal ou espécie — o morcego da fruta é uma possibilidade — mas julga-se que a primeira vítima foi uma menina de dois anos ou alguém próximo dela.
Os médicos começaram por pensar que estavam perante um caso de febre de Lassa, uma febre hemorrágica viral semelhante ao ébola, quando dezenas de pessoas ficaram doentes e mais de metade delas morreram. Mas, a 23 de Março, a OMS colocou um post no seu site:
“O Ministério da Saúde da Guiné-Conacri notificou a OMS de um surto veloz da doença de ébola em áreas florestais do Sudeste da Guiné-Conacri. Até 22 de Março de 2014, foram relatados um total de 49 casos, incluindo 29 mortes (um rácio de letalidade de 59%).”
O vírus passou da Guiné-Conacri para a Libéria, onde duas pessoas morreram no final de Março. A 1 de Abril, a Serra Leoa afirmou que dois dos seus cidadãos tinham morrido na Guiné-Conacri, provavelmente devido ao ébola, e que os seus corpos tinham sido devolvidos ao país natal.
No mesmo dia, a OMS apelou à calma.
“Isto ainda é relativamente pequeno. Os maiores surtos ultrapassaram os 400 casos”, disse numa conferência de imprensa em Genebra o porta-voz da OMS Gregory Hartl, referindo-se aos surtos anteriores no Congo e Uganda.
A nível internacional, a OMS optou por qualificar o surto de ébola de dois, numa escala de um a três, sendo três o nível mais sério de emergência de saúde pública.
Kent Brantly, de 33 anos, é um cristão devoto que nesta Primavera trabalhava para a organização de auxílio Samaritan’s Purse (com sede na Carolina do Norte) num hospital missionário da Monróvia. O hospital é conhecido como ELWA, de Eternal Love Winning Africa [Amor Eterno Conquista África]. Mudara-se para Monróvia no Outono anterior com a mulher, Amber, e os dois filhos, para uma missão de dois anos. Viviam numa casa com dois quartos, confortável, brincavam na praia ali perto e mergulhavam no recife. “Antes do ébola, a vida na Libéria era boa”, diz.
Quando ele e os colegas souberam do surto nos finais de Março, decidiram montar uma unidade de isolamento para a hipótese de começarem a chegar doentes infectados. Fizeram um download de um guia de 1998 sobre como controlar as febres virais hemorrágicas e deram treino aos funcionários do hospital sobre como se manterem seguros.
Muitos membros da equipa ficaram desconfortáveis com a decisão de abrir uma ala para o ébola e queixaram-se a Jerry Brown, o director liberiano do hospital. Brown, de 44 anos, é um homem que emana calma no meio do caos, uma virtude que viria a ser vital nos meses que se seguiram.
“Estamos só a precaver o futuro, não vá dar-se o caso”, disse aos seus trabalhadores.
O único espaço disponível era a capela no pátio do hospital, um bloco de betão amarelo com cobertura em chapa de zinco, onde os trabalhadores se juntavam todas as manhãs para as orações. Levaram para lá seis camas, que separaram com cortinas de plástico. Limparam o chão e as paredes. Colocaram uma placa à porta que diz “Unidade de isolamento. Só é permitida a entrada a pessoal autorizado.”
E depois esperaram.
Não chegaram doentes de ébola. O ritmo de infecções na Guiné-Conacri desacelerou significativamente, e na Libéria e Serra Leoa o número de casos novos caiu para zero em quase todo o mês de Abril e Maio.
Alguns hospitais desmantelaram as suas unidades de isolamento. O ELWA manteve-a por precaução. “Achávamos que nos tínhamos safado”, diz Brantly.
O bairro de lata New Kru Town, em Monróvia, não tem água canalizada pública, não tem casas de banho, não tem sistema sanitário, não tem electricidade. As pessoas vivem em barracas de madeira e metal apinhadas umas nas outras. A maioria não tem água em casa, a não ser quando a chuva encharca o bairro.
Algures entre finais de Maio e inícios de Junho, pelo menos seis pessoas de New Kru Tu apareceram com ébola. Havia uns rumores malucos de que alguém tinha envenenado a sua comida.
Brown recebeu um telefonema na noite de 11 de Junho de alguém do Ministério da Saúde da Libéria que perguntou: “Ainda têm a unidade do ébola?” “Sim”, respondeu Brown.
Os funcionários foram a correr limpar a capela com cloro e Brown foi à procura de funcionários que estivessem dispostos a trabalhar na unidade com Brantly.
“Doutor, se me pedir para fazer alguma coisa, eu faço por si. Mas trabalhar naquela unidade? Não vou”, respondeu uma enfermeira.
Outra disse que tinha dores de cabeça e que não se sentia bem. Uma terceira afirmou que era o único ganha-pão de duas crianças e não o faria. Finalmente, Brown encontrou uma enfermeira na sala de operações que estava disponível para entrar.
Antes da meia-noite, uma ambulância atravessou o portão do hospital missionário. Lá dentro iam dois doentes com ébola, uma mulher jovem e o tio, mas só a mulher entrou no hospital. O tio morreu na ambulância.
Inicialmente, os doentes davam entrada no hospital um de cada vez. Mas rapidamente o fluxo se intensificou. Um dos novos pacientes era ele próprio médico, Melvin Korkor, que contraiu o vírus, juntamente com cinco enfermeiras e outros quatro funcionários do seu hospital, que ficava no condado de Bong, a muitas horas de carro. Disseram-lhe que tinha 10% de hipóteses de sobreviver.
Korkor pensa ter contraído o vírus a partir de uma das suas enfermeiras quando lhe tocou com a mão despida para ver se ela tinha febre. Antes de partir para Monróvia para receber tratamento, disse à mulher: “A única coisa que quero que me leves é a Bíblia.”
No ELWA, Korkor lia a sua Bíblia — particularmente o salmo 91 (“Porque Ele te livrará do laço do caçador e da peste perniciosa”) — e bebia 12 litros de líquido reidratante por dia. Tapava o nariz quando comia, para não vomitar.
Quatro dias depois, já se sentia um bocadinho melhor e apercebeu-se de que iria viver.
Todos os seus nove colegas morreram.
Numa crise como esta, os Estados Unidos dependem da agência Centros de Prevenção e Controlo de Doenças (CDC), que tem “detectives” treinados para correr para qualquer lugar do mundo de um momento para o outro para detectar uma epidemia. Mas os americanos não podem simplesmente chegar a um país e desatar a dar ordens. O CDC tem de ser convidado. E mesmo nessa altura tem só um papel de apoio aos responsáveis locais e à OMS.
No início deste surto, o CDC enfrentou a resistência burocrática da representação regional da OMS em África. Os americanos queriam uma liderança maior na resposta ao surto, incluindo a recolha de informação e a mobilização de recursos. Frieden, do CDC, pediu a Keiji Fukuda, antigo funcionário do CDC e actual vice-director-geral da OMS para a segurança sanitária, para intervir. Fukuda voou até à sede regional da OMS no Congo e convenceu os seus colegas a deixarem que o CDC desempenhasse um papel mais relevante.
No início de Julho, Frieden, de 53 anos, teve de controlar várias crises. Foram encontrados num armazém do Instituto Nacional de Saúde norte-americano tubos contendo vírus da varíola da década de 1950. O fiasco seguiu-se a notícias de que o CDC tinha enviado sem querer amostras de antrax de um laboratório para outro. Enquanto lidava com estes embaraços, Frieden assistia a uma explosão dos números do ébola na Libéria.
“Está de volta. Está em vários países e não temos uma resposta suficientemente robusta. É uma segunda vaga”, disse a si próprio.
No ELWA, Brown ficou desalentado por ver que os governantes liberianos pareciam assoberbados e paralisados. A Libéria, atingida por duas guerras civis, é um dos países mais pobres do mundo, e a profunda falta de confiança no Governo torna difícil aos funcionários da saúde realizar campanhas de saúde pública.
“As pessoas estavam sentadas a discutir em vez de agir”, diz Brown. “E gradualmente o ébola alastrava-se à sociedade.”
Os médicos e enfermeiros do ELWA iam trabalhar com máscaras de protecção, gorros, batas, botas e luvas, enquanto empregados com baldes de cloro polvilhavam superfícies numa batalha constante contra o inimigo invisível. Um dia, Brantly, protegido da cabeça aos pés, apenas identificável pelos seus olhos azuis a condizer com a bata, falou para uma câmara num vídeo que estava a ser montado pela Samaritan’s Purse. Pediu aos espectadores que rezassem e dessem dinheiro, e depois disse que aquilo que ele e os colegas mais precisavam era de médicos, enfermeiros, paramédicos e outros voluntários.
“Por favor, venham ajudar-nos”, afirmou.
Enviou emails a amigos no Texas: “Acho que só estamos a ver a ponta do icebergue.”
Às 4h00 de 20 de Julho, um amigo conduziu Brantly e a família ao Aeroporto Internacional Roberts. Despediu-se da mulher e dos filhos, que iam ao casamento do seu irmão, no Texas. Era esperado que partisse na semana seguinte.
Mais tarde, nessa manhã, Brantly foi para o trabalho para começar a vigiar uma nova unidade de 20 camas de doentes com ébola que a Samaritan’s Purse ajudou a construir no lado oposto da rua do hospital principal. Ele e outros colegas começaram a transferir os seis doentes do espaço improvisado na capela para a nova unidade, chamada ELWA2. Nancy Writebol, outra missionária americana, ajudou, como de costume. Era conhecida como a “Dama da Lixívia” porque todos os dias fazia uma mistura de cloro e treinava outras higienistas sobre como descontaminar o hospital.
Na manhã de 23 de Julho, Brantly sentiu-se febril. Talvez andasse a trabalhar de mais, pensou. Talvez tivesse malária.
Não teve tanta sorte.
Brantly nunca saberá ao certo como contraiu o vírus do ébola, apesar de suspeitar que aconteceu durante um turno de uma noite inteira em que deu entrada a dois doentes em estado grave na unidade de isolamento. Ambos morreram em poucas horas.
Rapidamente o vírus levou-o para as portas da morte. Teve 40º de febre, vomitou sangue e combateu a diarreia e as náuseas. Mal conseguia respirar.
Tornou-se o primeiro ser humano a receber um medicamento experimental contra o ébola chamado ZMapp, que a Samaritan’s Purse fez chegar à Libéria. A partir do momento em que ficou doente, não pôs os pés fora de casa até ser transferido para o Emory University Hospital em Atlanta, num avião especialmente equipado.
Writebol também adoeceu, recebeu o ZMapp e acabou por ser levada para Atlanta. Nenhum dos dois sabia na altura do frenesim mediático à volta da sua doença ou da histeria nas redes sociais porque alguns americanos temiam que a sua transferência originasse uma epidemia nos Estados Unidos.
Subitamente, o mundo começava a prestar atenção.
A 24 de Julho, a OMS subiu a crise para o nível três, o mais alto, mas não declarou uma emergência de saúde mundial.
Mesmo quando os responsáveis de saúde apressaram o passo, a epidemia acelerava ainda mais. Imensos médicos e enfermeiros começavam a ficar doentes e muitos estavam a morrer, incluindo um médico amado na Serra Leoa, o xeque Umar Khan.
Patrick Sawyer, um americano-liberiano cuja irmã morreu de ébola, e que foi hospitalizado com uma doença não diagnosticada, foi à Nigéria e esteve em contacto com vários nigerianos antes de ser isolado no hospital e morrer a 25 de Julho. Os epidemiologistas chamam a situações destas “exportação” do vírus. Há mais pessoas em Lagos, capital nigeriana, do que na Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa juntas.
“Foi aí que eu deixei de dormir”, diz Frieden.
No final de Julho, com a epidemia ao rubro, Liu, a chefe dos Médicos Sem Fronteiras, pediu uma reunião com a directora-geral da OMS, Margaret Chan, na sede da organização, em Genebra.
Chan, especialista no vírus SARS e na gripe das aves, dirige a OMS desde Novembro de 2006. Nos últimos anos, a sua organização tem assistido a cortes orçamentais e a mudança de prioridades. A OMS é responsável pela coordenação global das emergências de saúde, mas o organismo legislativo que a controla optou repetidamente por dar ênfase às doenças não transmissíveis, como as doenças cardíacas e cancro, em vez das infecciosas.
Liu, canadiana francófona, tirou a especialidade de pediatria de urgências, e na maior parte das duas últimas décadas trabalhou nos Médicos Sem Fronteiras nas zonas do planeta mais devastadas pela guerra e desastres naturais.
A 30 de Julho, implorou a Chan que declarasse uma emergência internacional. Chan disse-lhe que ela estava a ser muito pessimista, afirma. Liu responde-lhe: “Doutora Chan, não estou a ser pessimista, estou a ser realista.”
Pouco depois, Chan foi à África Ocidental encontrar-se com os presidentes da Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa, e anunciar um fundo inicial de 100 milhões de dólares para deter o surto.
A 8 de Agosto, a OMS declarou emergência internacional.
Chan não quis prestar declarações para este artigo. Fukuda, da OMS, diz que se alguém lhe perguntar se a sua organização fez um bom trabalho ele dirá: “Raios, não.”
Mas depois de seis viagens a África durante a epidemia, assistiu a uma verdade mais profunda: as organizações internacionais podem dar ajuda com laboratórios e epidemiologistas, mas do que estes países com pobres recursos realmente precisam é de médicos e enfermeiros que estejam na linha da frente, e de recursos básicos. Em África, os pacientes disseram-lhe: “Não temos comida suficiente.”
Fukuda visitou uma clínica onde 25 funcionários adoeceram com ébola e 23 morreram. Os médicos continuavam a ir trabalhar mesmo quando, ao voltar para casa, eram ostracizados por vizinhos receosos. “Isto é mesmo um alto nível de heroísmo”, afirma.
Num sinal de voto de confiança na OMS para coordenar a resposta, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, nomeou a 12 de Agosto como coordenador para o ébola David Nabarro, um homem de 65 anos habituado a lidar com crises. Nabarro tinha trabalhado na gripe das aves e no rescaldo do tsunami de 2004 no Índico. Estava de férias com a família numa praia do Quénia quando recebeu o telefonema a pedir que tomasse a situação em mãos.
Ao longo do mês seguinte, viajou para 21 cidades em três continentes, tentando montar uma coligação e mostrando a todos um plano de contenção com quatro caminhos possíveis que a epidemia poderia seguir. A melhor das hipóteses mostrava que terminaria em meados do próximo ano. A pior exibia a “epicurva” a aumentar na direcção errada, a caminho da vertical, a caminho de uma catástrofe inimaginável.
Ao invés de evitarem esta tempestade viral, muitos ocidentais têm-se atirado para o olho do furacão. E é aí que encontram o pessoal médico e auxiliar africano que se mantém no seu posto de trabalho nas condições mais perigosas.
Num dia de Agosto, deram a Liu um fato de plástico amarelo, luvas e máscara de protecção para ir ver doentes do ébola num centro dos Médicos sem Fronteiras em Kailahun, na Serra Leoa. Liu levou um balde até junto de um dos moribundos, que estava a vomitar. Deu-lhe um lenço para assoar o nariz e segurou-lhe na mão. “Desculpe-nos”, disse ao homem. Que tragédia esta, pensou, que seja o ébola a decretar que este homem terá de morrer só, sem ninguém lhe poder agarrar na mão a não ser uma estranha enfiada num fato espacial.
Os Estados Unidos têm enviado dezenas de pessoas das equipas de resposta a desastres, incluindo estrategas do Departamento de Defesa, funcionários da Agência americana para o Desenvolvimento Internacional e cientistas do CDC. Uma das enviadas foi Leisha Nolen, com 37 anos, que em Agosto voou para a Serra Leoa quando já ia no seu segundo mês de trabalho directo com este surto.
A 12 de Agosto, ela foi até Port Loko, cidade que segundo as estatísticas oficiais registava um número baixo de casos de ébola. Nolen inquiriu duas pessoas do pessoal médico local: como tinham ouvido falar de possíveis casos do ébola? E sabiam através dos chefes locais ou de familiares das vítimas? As pessoas doentes apareciam frequentemnte no hospital? Tinha sido enviada uma ambulância para as recolher? Faziam sempre análises ao sangue?
Nolen depressa percebeu que os responsáveis locais não conseguiam manter-se a par de quem adoecia. Os doentes nem sempre chegavam ao hospital e nem sempre havia camas disponíveis para aqueles que chegavam. Era frequente as estradas ficarem submersas e havia apenas uma ambulância para toda a região [com uma área superior à do Algarve].
Pediu para ver o registo de casos que se suspeitassem ser de ébola. Os responsáveis passaram-lhe para as mãos uma compacta pilha de papéis. Cada uma daquelas folhas manuscritas representava um caso suspeito, a maioria ainda nem tinha sido oficialmente declarado. Ficou em estado de choque. “Eles afundavam-se a um ritmo vertiginoso”, diz Nolen.
A Presidente da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, criticou a forma como os seus cidadãos reagiram à epidemia. A 19 de Agosto, emitiu uma mensagem ao país: “Fomos incapazes de controlar este surto porque [o] temos vindo sucessivamente a negar, porque há uma certa cultura e tradição na forma como se lida com os cadáveres, porque não foram respeitadas as indicações do pessoal médico e os avisos do Governo.”
No dia a seguir, a 20 de Agosto, Sirleaf mandou as forças de segurança vedar a favela de WestPoint, na capital, Monróvia, situada numa península defronte ao oceano Atlântico. Até à chegada por via marítima ficou controlada. Os protestos não se fizeram esperar: os jovens apedrejaram a polícia, que por sua vez tentou dispersar a multidão com disparos para o ar e gás lacrimogéneo. Um adolescente foi atingido em ambas as pernas e morreu no Hospital de Redemption.
Um pouco mais de uma semana depois, o Governo terminou a quarentena e os habitantes celebraram na rua o levantamento das barricadas e o desaparecimento dos soldados. Mas o vírus não estava prestes a desaparecer. No final de Agosto, a OMS anunciou 3685 casos na Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa, e 1841 mortes. Esta era apenas a contagem oficial e os especialistas crêem que o número verdadeiro é cerca de 21 ou 22 vezes maior.
No início de Setembro, governos e principais organizações de saúde não tinham ainda chegado a um acordo de como enfrentar a epidemia. Ao contrário do que aconteceu noutras situações de desastre, como por exemplo no sismo que atingiu o Haiti em 2010, a ONU não tinha qualquer dispositivo pronto no terreno. E, além de um guia com 20 páginas divulgado pela OMS sobre como lidar com o vírus, não era claro como iriam as várias organizações reagir e pô-lo em prática.
“Seis meses depois do pior surto de ébola de que há memória, o mundo está a perder a batalha [de conter o vírus]”, afirmou a 2 de Setembro Liu, dos Médicos Sem Fronteiras, à ONU. Pela primeira vez, Liu implorou aos vários países que mobilizassem os seus meios militares — um tipo de alerta que normalmente os Médicos Sem Fronteiras fazem sempre que há situações de emergência de saúde pública.
Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial, estava muito frustrado. Como médico e especialista em doenças infecto-contagiosas, Kim já tinha convocado uma reunião de emergência para 3 de Setembro que incluiria os principais decisores, tanto governamentais como do sector privado. Cerca de 50 pessoas acotovelavam-se na Sala de conferências do 12.º andar da sede do Banco Mundial em Washington. Gayle Smith, do Conselho Nacional de Segurança americano, iria participar por telefone. Um funcionário sénior da OMS assistiria por videoconferência. A reunião prolongou-se por duas horas. Frieden deixou um alerta terrível: “O tipo de resposta que está a ser dado [para combater o vírus] é como ter um atirador do tamanho de uma ervilha contra um elefante enraivecido.” Kim alertou: “É o futuro do continente que está em perigo.”
Na primeira semana de Setembro, responsáveis do Governo americano chegaram a uma conclusão devastadora: a resposta civil nunca seria suficientemente célere para superar a epidemia. O CDC já tinha mobilizado para o terreno 30 dos seus funcionários, aos quais se juntariam outros tantos da equipa de salvação nacional e auxílio às vítimas, mas o que uns e outros tinham pela frente era um desafio demasiado grande. Somente o Exército teria capacidade para uma mobilização rápida e em tão larga escala. Para atrair voluntários, a Casa Branca e o Pentágono já tinham iniciado negociações para abrir um hospital de campanha que tratasse pessoal médico e auxiliares de enfermagem, caso viessem a adoecer. Os estrategas militares americanos já no terreno alertavam Washington para a necessidade de 500 camas para os pacientes. Aos vários serviços governamentais era pedido a resolução de complexas questões de logística. A 7 de Setembro, Obama disse no programa da NBC Meet the Press que era sua intenção mobilizar o Exército para providenciar equipamento, apoio logístico e qualquer outro auxílio que fosse necessário na África Ocidental.
A região tem actualmente centenas de casos confirmados de ébola e não há maneira de controlar e tratar os doentes e moribundos. A 9 de Setembro, Sirleaf enviou por escrito um apelo urgente a Obama: “Estou a ser absolutamente honesta quando digo que a esta velocidade nunca conseguiremos travar a cadeia de transmissão e o vírus vai esmagar-nos.” No dia seguinte, houve uma reunião na Casa Branca que juntou altos funcionários da Administração Obama para discutir opções para uma intervenção militar. “Foi exigido mais trabalho de casa sobre o ‘como’ [da intervenção militar] e que reportassem dois dias depois”, refere um dos funcionários. Na manhã de terça-feira, 16 de Setembro, um mês depois de quase ter sucumbido ao ébola, Kent Brantly encontrou-se com Obama na Sala Oval. O Presidente estava prestes a partir para Atlanta, onde, no quartel-general do CDC, iria anunciar que os Estados Unidos estavam dispostos a mobilizar 3 mil militares e apoio médico para a África Ocidental, como parte de um programa de apoio num total de 750 milhões de dólares.
Obama ainda disse a Brantly que ele precisava de engordar uns quilitos. O médico sorriu e aquiesceu: tinha perdido mais de 18 na Libéria.
Brantly apelou a Obama para não atrasar nem mais um dia a chegada de ajuda a África. O que Obama tinha para anunciar dali a pouco era sem dúvida muito importante, mas apenas se chegasse a tempo e horas, isto é, no imediato, disse. Lembra-se de ouvir Obama afirmar: “Estou a esforçar-me. Estou a esforçar-me o mais que posso para que isto se torne uma realidade.” “[O ébola] é um fogo dos infernos... Enganamo-nos se pensarmos que o imenso Atlântico nos protege dessas chamas”, disse Brantly nesse dia no Capitólio, edifício onde funciona o Congresso dos EUA.
Os números do vírus cresceram de forma ainda mais assustadora. A 23 de Setembro, o CDC divulgou um relatório que estimava que, na ausência de respostas mais eficazes e céleres, 1,4 milhões de casos de ébola poderiam eclodir na Libéria e Serra Leoa até 20 de Janeiro de 2015. Esses números não incluem a Guiné-Conacri, onde rareiam os dados sobre a saúde pública. Uma reacção mais vigorosa na Nigéria conseguiu limitar o número de casos a oito mortes; um outro surto, isolado, foi também noticiado no Congo.
A 26 de Setembro, Obama participou numa cimeira de Saúde na Casa Branca, onde estiveram presentes muitos altos funcionários de Saúde de vários países. Estava lá também Melvin Korkor, o médico liberiano contagiado com ébola e que foi tratado no Hospital ELWA, em Monróvia. Em Fevereiro, muitos meses antes, já a Casa Branca tinha dado a conhecer a agenda para aquela cimeira, num esforço transnacional para travar ameaças biológicas de qualquer tipo. Quando essa agenda foi anunciada, havia uma tempestade de neve. O que ninguém sabia é que já então o ébola grassava na África Ocidental. Frieden, o director do CDC, disse que o ébola tinha sido um teste. “E nós, o mundo, falhámos nesse teste.”
Quando a estação das chuvas chega à Monróvia, os céus ficam cinzentos, o sol rareia e os aguaceiros podem prolongar-se por horas. O ébola já fechou escolas, edifícios municipais, vários bancos. No entanto, e apesar de a economia ter estancado, as ruas asfixiam com o tráfego.
Crianças em calções, descalças, correm para os carros que param nos cruzamentos para vender doces, bolachas, pastilhas elásticas, sacos de plástico e limpa-pára-brisas. Os mercados de rua continuam abertos e há música a sair das bancas.
Os próximos passos nesta epidemia cabem, em parte, à matemática. Até sexta-feira, 3 de Outubro, a OMS dava conta de 7470 casos confirmados ou potenciais, 3431 mortes na Guiné, Serra Leoa e Libéria. Actualmente, cada pessoa infectada estará a infectar mais duas. Para contrariar esta curva ascendente, travá-la até, cabe às autoridades conseguir, de alguma forma, inverter esta lógica matemática. Só se poderá dizer que a epidemia estará debelada quando se chegar à média de ter um paciente com ébola a infectar menos de uma pessoa.
Muito recentemnete, e com a epidemia a crescer de forma exponencial, Frieden salientou que a matemática tem vindo a mostrar que este é um surto que levará o vírus do ébola a outros países — poucos dias depois de ter dito isto, o vírus chegou a Dallas.
A ajudar militar americana tem chegado de forma gradual à Africa Ocidental. Na base de todos os planos está a tentativa de levar o maior número possível de pessoas para centros de tratamento, onde possam ficar em quarentena. O Exército está a construir 17 desses centros, cada um com capacidade para cem camas, mas isso vai levar semanas a concluir.
Os responsáveis por travar a epidemia terão de alcançar algo que ainda não conseguiram: ser ainda mais agressivos, mais impiedosos e mais persistentes do que o próprio vírus — essa força cega e implacável que a única coisa que sabe fazer é seguir as instruções dos seus genes.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post