Fernando Guerra, o guardião de memórias de Siza Vieira (na Ásia e não só)
O fotógrafo de arquitectura acompanhou, durante três semanas, a viagem “histórica” de Siza Vieira e Carlos Castanheira pela Ásia. O diário de bordo vai-se transformar num livro
Durante três semanas, do outro lado do mundo, foram para todo o lado — ou quase. Ningbo, Jiangsu, Huaian, Taipei, Macau, entre outros. No ArchDaily, a história começa assim: “Há um mês, três das principais figuras da arquitectura portuguesa — o Pritzker Álvaro Siza, o arquitecto Carlos Castanheira e um dos mais proeminentes fotógrafos de arquitectura, Fernando Guerra — começaram uma aventura fora do comum.”
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Durante três semanas, do outro lado do mundo, foram para todo o lado — ou quase. Ningbo, Jiangsu, Huaian, Taipei, Macau, entre outros. No ArchDaily, a história começa assim: “Há um mês, três das principais figuras da arquitectura portuguesa — o Pritzker Álvaro Siza, o arquitecto Carlos Castanheira e um dos mais proeminentes fotógrafos de arquitectura, Fernando Guerra — começaram uma aventura fora do comum.”
Agora, já passaram quase dois meses desde que os três portugueses embarcaram numa travessia de 22 dias pela Ásia, para ver projectos, espreitar obras, inaugurar edifícios, visitar exposições (incluindo “Shadow of light / Portrait of Siza”, de Fernando Guerra, em Macau). Tudo com a assinatura Siza Vieira.
Uma “viagem histórica”, nas palavras de Fernando Guerra, o fotógrafo que, nos últimos anos, mais tem acompanhado o Pritzker 92, e que, no seu Instagram, foi mostrando alguns apontamentos desta jornada. “Não por mim, mas pelo Siza.” Porque, “ao contrário de Portugal”, viram “obra que está a acontecer”. Como o “Edifício sobre a água”, construído sobre um lago artificial, em Huaian, que foram inaugurar e que Fernando fotografou. “Lá fora recebem-no muito bem e têm condições para fazer obras que, neste momento, ninguém em Portugal tem. Mesmo na Europa as coisas avançam muito devagar. Na China, vê-se obra a acontecer e são coisas bem construídas.”
Não quer dizer que, em Portugal, o trabalho de Siza não seja “reconhecido”, evidencia, ao telefone com o P3. É-o, “principalmente por arquitectos”. Para Fernando Guerra, o facto de parte do acervo do arquitecto ter sido doado ao Centro Canadiano de Arquitectura, em Montreal, é “óptimo”. “Lá têm uma equipa de pessoas só dedicadas a isso. É uma instituição muito mais neutra. (…) Aqui ia ser muito complicado, sempre a olhar para a falta de dinheiro.” E recorda conversas com o arquitecto em que ele dizia, “completamente convencido”, que “o Pavilhão de Portugal qualquer dia vai abaixo”.
Diário de bordo a caminho
Dias depois da despedida “muito emocional” (“Passei três semanas com ele e nunca saberemos quando será a próxima vez”), Fernando chegou a casa. Dias depois, Fernando olhou para algumas das mais de 25 mil fotografias que fez durante a viagem, autênticas “pérolas”, e publicou um pequeno texto no Instagram com um dos vários desenhos que Siza foi apanhado a rabiscar durante aquelas três semanas. No díptico, feito em sacos de enjoo durante um voo, vê-se as mãos de Siza a retratar o próprio fotógrafo.
Com o desenho a repousar em cima da mesa da sala, Fernando pergunta: “Então… Depois de tantos dias na estrada, como é que te sentes quando chegas a casa e, mais importante, como é que começas de novo?”
Com um livro, por exemplo. Uma espécie de diário de bordo. “Apanhei o Siza em todas as situações possíveis.” Não foi a primeira vez que viajou com arquitecto, mas nunca tinha estado tanto tempo e “tão só” com ele. Com ele e com Carlos Castanheira, “que faz parte de tudo”: “Por muitos clientes que tivéssemos, no final do dia estávamos os três sozinhos. Foi muito íntimo.”
Desenhar “obsessivamente"
No Instagram de Fernando Guerra (@fernandogguerra) podemos seguir uma ínfima parte dessas situações. A maioria das imagens veio do iPhone de Fernando, outras são de clientes ou assistentes dos arquitectos locais. Vemos Siza a rever projectos, Siza a fumar, Siza numa conferência, Siza numa “selfie” dos três, Siza a desenhar, a desenhar, a desenhar, “obsessivamente”, seja durante um almoço ou numa tela em branco. Ele desenha assim tanto?
“É conhecido por passar o tempo a esquiçar”, admite o fotógrafo. “Um dia, a meio da tarde, estava muito cansado. Pediu papel e lápis e foi para uma sala sozinho fazer desenhos. Como se fosse um miúdo. É a maneira dele relaxar e é tão engraçado ver uma pessoa agarrar num lápis e em papel para relaxar. Eu estava ao lado e foi muito giro. Ele ficava bem depois de fazer esses desenhos.” Serão publicados no futuro livro, ainda sem qualquer tipo de previsão de lançamento. Uma obra que só surgiu na sua mente agora. “Nem sequer pensei nesse diário até porque, se pensasse, não sabia se ia acontecer.” Por isso, dedicou-se “completamente” a estar com ele. “Tentei ao máximo fazer o registo de tudo o que acontecer, registei o som de entrevistas, por exemplo.”
Como um guardião de memórias? Como se fosse um trabalho documental? “Tenho medo que isso soe pretensioso, mas tem sido esse o meu papel. É uma oportunidade tão grande para uma pessoa que faz fotografia... E como tenho viajado com ele, tenho tido muitas oportunidades. Tenho o melhor arquivo do Siza de sempre. (…) O lado pessoal, que eu consegui nos últimos anos, para mim não tem preço.” E tudo começou há 16, 17 anos, quando enviou para o atelier de Siza Vieira fotografias da Piscina da Marés, às quais o arquitecto respondeu, por carta. “Algo que ninguém faz.” O retrato preferido foi feito em Londres, em 2009, quando Siza recebeu a Medalha de Ouro do RIBA pela sua carreira (ver à esquerda). “Parece aquilo que é: um mestre.”
Noutros instantâneos, Siza dança em frente a uma tela em branco, erguida em frente a um Picasso, falso. Na primeira fotografia da série, Fernando escreveu “Fake Picasso / Real Siza”. E desfia uma nova história: “No último dia em Macau, o cliente levou uma tela em branco. Queria que o Siza fizesse um desenho. E eu estou a vê-lo desenhar e a única coisa que posso fazer é registar. Ali estava o Siza no meio de Macau, num hotel super Las Vegas, cheio de néones, nada a ver com ele, a desenhar, com uma reprodução do Picasso na parede.” Sem “tiques de estrela”, diz. “É uma delícia que seja uma delícia.”
Artigo actualizado às 12h47