Guilherme foi abandonado na roda, mas a sua história chegou até nós com um ramo de salsa

Projecto do Arquivo Distrital do Porto, financiado pela Gulbenkian, permitiu tratar e digitalizar milhares de ficheiros de crianças entregues à Roda dos Expostos no século XIX.

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Sabíamos do poder aromático e medicinal da salsa. Mas, ao vermos como aquele raminho resistiu quase dois séculos para nos contar um pouco da história de uma das milhares de crianças entregues na roda dos expostos do Porto, não podemos deixar de lhe creditar outros poderes. A planta-documento é um dos mais de 500 sinais que foram encontrados junto de relatórios de admissão dos enjeitados - as chamadas Partes da Directora - que eram diariamente escritos pelas responsáveis da Casa da Roda. Uma parte destes registos, do período entre 1813 e 1884, está agora disponível, graças a um projecto do Arquivo Distrital do Porto (ADP), financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Durante séculos, a Roda dos Expostos recolheu, alimentou e ajudou a criar - enviando para as chamadas amas de fora - milhares de crianças por esse país fora, nas cidades onde este mecanismo foi institucionalizado. No Porto, há registo de despesas do município, desde o século XVI, com as mulheres que criavam os enjeitados deixados à porta de igrejas e conventos na calada da noite. Mas só a partir do seculo XVII, mais precisamente a 6 de Julho de 1689, é que a cidade passou a ter uma casa dedicada a receber estes filhos que as mães não queriam, ou não podiam, criar. Era na Rua dos Caldeireiros, em frente ao Padrão de Santo Elói, com ligação directa ao já extinto hospital Dom Lopo.

A Roda foi mudando de morada e de gestão que, sendo inicialmente municipal, passou a ser da Santa Casa da Misericórdia - embora paga pelo município - até voltar às mãos da edilidade, em 1838. Mais tarde nesse século, o serviço, designado então Hospício dos Expostos, ficaria sob a alçada da Junta do Distrito, cujo arquivo foi herdado pelas futuras - e já extintas também, assembleias distritais. Foi na antiga sede desta, na Rua Antero de Quental, que todo este espólio se conservou - um termo mal empregue, dadas as inadequadas condições - até que há três anos se iniciou o processo de transferência de todo este material - mais de 181 metros lineares de documentos - para o Arquivo Distrital.

Mais do que uma métrica quantificável, o trabalho de limpeza e tratamento desse acervo, seguido da organização, descrição e digitalização de uma parte do mesmo, pôs os técnicos e responsáveis pelo AdP em contacto com a biografia, ou parte delas, de milhares de pessoas. “Eram bebés, só queriam colinho, e foram abandonadas”, reflecte Sónia Gomes, que se pôs a ler, para descrever, as partes da directora, com os seus sinais e piedosas mensagens, numa altura em que regressava ao arquivo depois de uma licença de maternidade.

Graças ao trabalho da equipa liderada pela directora do ADP, Maria João Pires de Lima, podemos consultar (presencialmente ou online), mais de oito mil processos de entrada na Casa da Roda. Podemos ficar a saber um pouco da história de Guilherme, de Augusto, de Carlota, de Albino (que ali entrou com um galão preto), de Joaquim Arnaldo (entregue com uma fita cor-de-rosa) e Barnabé, os bebés identificados no relatório da directora do trabalhoso dia 18 de Abril de 1826, documento esse que inclui ainda a entrada de Francisca, já do dia anterior.

Imagina-se, pelas descrições existentes em várias fontes - que não há representações do interior da casa - que nessa, como noutras noites, as amas de leite, dormindo ali mesmo, junto à roda, eram acordadas pelo soar de uma campainha activada pela rotação do mecanismo. E assim, madrugada dentro, aquelas mulheres começavam a cuidar dessas crianças, muitas delas em estado muito debilitado e que acabavam por morrer ao seu cuidado nas horas seguintes. As que sobrevivessem eram entregues a uma família, a da ama de fora, escolhida em concelhos dos arredores do Porto, sempre no campo, e identificada também nos registos de saída da casa. E, a partir dos sete anos, podiam passar a viver com essa família, se esta tivesse vontade e condições para tal, ou ser entregue a uma outra.

O arquivo da Casa da Roda abre-nos a porta para o universo quase secreto daquela instituição só de mulheres, e liderada por essa figura tutelar, a ama-seca, ou directora. Segundo as historiadoras Inês Amorim - responsável pelo mestrado em História e Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto - e Patrícia Alves, que frequentou aquele curso, esta escrevia para cada exposto um escrito com os dados principais, que era colocado nos berços, escrevia também a parte, e fazia um mapa diário e mensal de entradas e saídas. Além de tudo isto, cabia-lhe escolher as amas mais confiáveis para recolher os expostos, assistir aos baptismos, e colocar, ao pescoço daqueles bebés, uma medalha com o seu número de identificação, para além de um sem número de tarefas ligadas à logística da própria casa.

Mostrando-nos o que se passa lá dentro - as despesas, as amas contratadas, as crianças que lá entravam e os casos de quem as ia, um dia, lá buscar - esta documentação põe-nos também diante de uma condição, a do abandono, não apenas aceite como, já se vê, social e institucionalmente regulamentada. Em sete décadas do seculo XVIII, o número de expostos no porto quintoplicou, chegando aos mil em 1780. As casas situavam-se em zonas que permitissem evitar a vigilância de vizinhos. E para não intimidar quem fosse abandonar um filho, até os quadrilheiros da polícia tinham ordem para não passar por ali, recordou, na apresentação do projecto, na passada quinta-feira, Patrícia Alves. Que, com Ana Moreira, trabalhou, desde 2007, aquele espólio, tendo acabado por participar no estudo e salvaguarda do mesmo.

Este projecto do Arquivo Distrital do Porto traz outra mais-valia. Muitas pessoas que mergulharam, um pé que seja, nos meandros da genealogia - disciplina tornada mais acessível com a disponibilização online dos registos de baptismo, casamento e óbito de muitas paróquias do país - já se depararam com um antepassado referenciado, ao ser baptizado, como exposto. Se, por acaso, este tiver sido deixado aos cuidados da Roda do Porto, agora é possível conhecer algo mais sobre a sua vida. Nem que seja para perceber, como na história de Guilherme, que a mãe confiava nos poderes sobrenaturais de um raminho de salsa.

Exposição até 6 de Novembro
Quem quiser conhecer mais de perto os meandros da Roda dos Expostos do Porto pode ver, até 6 de Novembro, a mostra documental que o Arquivo distrital organizou nos claustros do edifício onde está instalado, na Rua das Taipas, a propósito da conclusão do projecto de preservação da documentação recolhida na antiga Assembleia Distrital.

No âmbito deste trabalho, e graças a um apoio de 15 mil euros da Fundação Calouste Gulbenkian, o AdP conseguiu levar a cabo, durante um ano, um projecto, “Partes da directora”, no qual foi feito o tratamento técnico (arquivístico e de conservação e restauro) de 6.063 processos, constituídos pelos relatórios diários enviados pela directora da Casa da Roda (as “partes”) ao responsável pela instituição (o provedor da Santa Casa da Misericórdia ou o vereador da Câmara Municipal do Porto), entre 1813 e 1884, com algumas lacunas cronológicas.

Estes relatórios incluíam os bilhetes e os sinais (objectos) deixados com as crianças, e que alegadamente serviriam para as identificar mais tarde. Ao longo do projecto foram tratados 22.449 documentos em papel e mais de 500 sinais, correspondentes a cerca de 23,5% da totalidade da série designada Partes da Directora, mas entretanto, ao ritmo possível, explica a directora do AdP, Maria João Pires de Lima, trataram-se mais dois mil processos. Todos podem ser consultados presencialmente e 1940 estão já disponíveis online. É possível chegar a estes em http://pesquisa.adporto.pt, usando o código de referência PT/ADPRT/ACD/CRPRT ou colocando, no campo título, o termo Casa da Roda do Porto.

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Sabíamos do poder aromático e medicinal da salsa. Mas, ao vermos como aquele raminho resistiu quase dois séculos para nos contar um pouco da história de uma das milhares de crianças entregues na roda dos expostos do Porto, não podemos deixar de lhe creditar outros poderes. A planta-documento é um dos mais de 500 sinais que foram encontrados junto de relatórios de admissão dos enjeitados - as chamadas Partes da Directora - que eram diariamente escritos pelas responsáveis da Casa da Roda. Uma parte destes registos, do período entre 1813 e 1884, está agora disponível, graças a um projecto do Arquivo Distrital do Porto (ADP), financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Durante séculos, a Roda dos Expostos recolheu, alimentou e ajudou a criar - enviando para as chamadas amas de fora - milhares de crianças por esse país fora, nas cidades onde este mecanismo foi institucionalizado. No Porto, há registo de despesas do município, desde o século XVI, com as mulheres que criavam os enjeitados deixados à porta de igrejas e conventos na calada da noite. Mas só a partir do seculo XVII, mais precisamente a 6 de Julho de 1689, é que a cidade passou a ter uma casa dedicada a receber estes filhos que as mães não queriam, ou não podiam, criar. Era na Rua dos Caldeireiros, em frente ao Padrão de Santo Elói, com ligação directa ao já extinto hospital Dom Lopo.

A Roda foi mudando de morada e de gestão que, sendo inicialmente municipal, passou a ser da Santa Casa da Misericórdia - embora paga pelo município - até voltar às mãos da edilidade, em 1838. Mais tarde nesse século, o serviço, designado então Hospício dos Expostos, ficaria sob a alçada da Junta do Distrito, cujo arquivo foi herdado pelas futuras - e já extintas também, assembleias distritais. Foi na antiga sede desta, na Rua Antero de Quental, que todo este espólio se conservou - um termo mal empregue, dadas as inadequadas condições - até que há três anos se iniciou o processo de transferência de todo este material - mais de 181 metros lineares de documentos - para o Arquivo Distrital.

Mais do que uma métrica quantificável, o trabalho de limpeza e tratamento desse acervo, seguido da organização, descrição e digitalização de uma parte do mesmo, pôs os técnicos e responsáveis pelo AdP em contacto com a biografia, ou parte delas, de milhares de pessoas. “Eram bebés, só queriam colinho, e foram abandonadas”, reflecte Sónia Gomes, que se pôs a ler, para descrever, as partes da directora, com os seus sinais e piedosas mensagens, numa altura em que regressava ao arquivo depois de uma licença de maternidade.

Graças ao trabalho da equipa liderada pela directora do ADP, Maria João Pires de Lima, podemos consultar (presencialmente ou online), mais de oito mil processos de entrada na Casa da Roda. Podemos ficar a saber um pouco da história de Guilherme, de Augusto, de Carlota, de Albino (que ali entrou com um galão preto), de Joaquim Arnaldo (entregue com uma fita cor-de-rosa) e Barnabé, os bebés identificados no relatório da directora do trabalhoso dia 18 de Abril de 1826, documento esse que inclui ainda a entrada de Francisca, já do dia anterior.

Imagina-se, pelas descrições existentes em várias fontes - que não há representações do interior da casa - que nessa, como noutras noites, as amas de leite, dormindo ali mesmo, junto à roda, eram acordadas pelo soar de uma campainha activada pela rotação do mecanismo. E assim, madrugada dentro, aquelas mulheres começavam a cuidar dessas crianças, muitas delas em estado muito debilitado e que acabavam por morrer ao seu cuidado nas horas seguintes. As que sobrevivessem eram entregues a uma família, a da ama de fora, escolhida em concelhos dos arredores do Porto, sempre no campo, e identificada também nos registos de saída da casa. E, a partir dos sete anos, podiam passar a viver com essa família, se esta tivesse vontade e condições para tal, ou ser entregue a uma outra.

O arquivo da Casa da Roda abre-nos a porta para o universo quase secreto daquela instituição só de mulheres, e liderada por essa figura tutelar, a ama-seca, ou directora. Segundo as historiadoras Inês Amorim - responsável pelo mestrado em História e Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto - e Patrícia Alves, que frequentou aquele curso, esta escrevia para cada exposto um escrito com os dados principais, que era colocado nos berços, escrevia também a parte, e fazia um mapa diário e mensal de entradas e saídas. Além de tudo isto, cabia-lhe escolher as amas mais confiáveis para recolher os expostos, assistir aos baptismos, e colocar, ao pescoço daqueles bebés, uma medalha com o seu número de identificação, para além de um sem número de tarefas ligadas à logística da própria casa.

Mostrando-nos o que se passa lá dentro - as despesas, as amas contratadas, as crianças que lá entravam e os casos de quem as ia, um dia, lá buscar - esta documentação põe-nos também diante de uma condição, a do abandono, não apenas aceite como, já se vê, social e institucionalmente regulamentada. Em sete décadas do seculo XVIII, o número de expostos no porto quintoplicou, chegando aos mil em 1780. As casas situavam-se em zonas que permitissem evitar a vigilância de vizinhos. E para não intimidar quem fosse abandonar um filho, até os quadrilheiros da polícia tinham ordem para não passar por ali, recordou, na apresentação do projecto, na passada quinta-feira, Patrícia Alves. Que, com Ana Moreira, trabalhou, desde 2007, aquele espólio, tendo acabado por participar no estudo e salvaguarda do mesmo.

Este projecto do Arquivo Distrital do Porto traz outra mais-valia. Muitas pessoas que mergulharam, um pé que seja, nos meandros da genealogia - disciplina tornada mais acessível com a disponibilização online dos registos de baptismo, casamento e óbito de muitas paróquias do país - já se depararam com um antepassado referenciado, ao ser baptizado, como exposto. Se, por acaso, este tiver sido deixado aos cuidados da Roda do Porto, agora é possível conhecer algo mais sobre a sua vida. Nem que seja para perceber, como na história de Guilherme, que a mãe confiava nos poderes sobrenaturais de um raminho de salsa.

Exposição até 6 de Novembro
Quem quiser conhecer mais de perto os meandros da Roda dos Expostos do Porto pode ver, até 6 de Novembro, a mostra documental que o Arquivo distrital organizou nos claustros do edifício onde está instalado, na Rua das Taipas, a propósito da conclusão do projecto de preservação da documentação recolhida na antiga Assembleia Distrital.

No âmbito deste trabalho, e graças a um apoio de 15 mil euros da Fundação Calouste Gulbenkian, o AdP conseguiu levar a cabo, durante um ano, um projecto, “Partes da directora”, no qual foi feito o tratamento técnico (arquivístico e de conservação e restauro) de 6.063 processos, constituídos pelos relatórios diários enviados pela directora da Casa da Roda (as “partes”) ao responsável pela instituição (o provedor da Santa Casa da Misericórdia ou o vereador da Câmara Municipal do Porto), entre 1813 e 1884, com algumas lacunas cronológicas.

Estes relatórios incluíam os bilhetes e os sinais (objectos) deixados com as crianças, e que alegadamente serviriam para as identificar mais tarde. Ao longo do projecto foram tratados 22.449 documentos em papel e mais de 500 sinais, correspondentes a cerca de 23,5% da totalidade da série designada Partes da Directora, mas entretanto, ao ritmo possível, explica a directora do AdP, Maria João Pires de Lima, trataram-se mais dois mil processos. Todos podem ser consultados presencialmente e 1940 estão já disponíveis online. É possível chegar a estes em http://pesquisa.adporto.pt, usando o código de referência PT/ADPRT/ACD/CRPRT ou colocando, no campo título, o termo Casa da Roda do Porto.