Tal como se usa o preto e branco para representar um passado que todos sabemos que foi a cores, é bastante credível que exista uma Paris de 1700 onde todos falam em verso.
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Tal como se usa o preto e branco para representar um passado que todos sabemos que foi a cores, é bastante credível que exista uma Paris de 1700 onde todos falam em verso.
Apesar de fantasiosamente versejada, Cyrano de Bergerac assenta em acções dramáticas que coincidem com acções físicas, ou não fosse esta uma peça de capa e espada. De igual modo, há aspectos materiais pressupostos na dramaturgia que são de uma poética das coisas, desde o vozeirão de Cyrano vindo não se sabe de onde para expulsar o mau actor, passando pela escuridão da cena de varanda em que Cyrano e Christian se confundem, até ao lusco-fusco do crepúsculo que mostra que Cyrano sabe de cor a carta que Christian teria escrito.
Mesmo estas cenas, dependentes do jogo de vozes, precisam de certa materialidade para que a comunicação entre actores e espectadores seja o mais completa possível. Na verdade, é-lhe essencial, se tivermos em conta que esta peça é uma alegoria sobre a oposição entre mente e matéria, paixão carnal e amor espiritual – uma cisão que, mesmo depois de reconhecido o erro de Descartes, continua a fazer mossa na nossa cultura cristã de casamentos com separação de carne e espírito.
Mas isso é a peça, ou, pelo menos, uma teoria sobre o que é a peça. Felizmente, para isso temos, em parte, o filme com Depardieu, que, como outros, liberta o teatro da necessidade de representar tal e qual o cenário das ficções originais, e lhe permite, até, no lugar de uma árvore, por exemplo, pôr um poste de electricidade, dessa maneira alargando as metáforas até onde o encenador entender. As escolhas da encenação para materializar determinado texto, segundo o que crê, é que fazem distinto o seu labor. Neste espectáculo, Bruno Bravo optou por eliminar a maior parte das coisas que deveriam estar à vista, confiando nas referências que o texto faz, e eliminou também o movimento físico implícito nas falas, colocando os actores a falar para a plateia, não entre si.
Boa parte da peça ficou por fazer, se considerarmos que para cada fala de uma peça há movimentos e pensamentos possíveis que cabe aos actores definir. O texto foi apresentado na sua pureza, diriam uns, ou na sua incompletude, diriam outros. Os aspectos dramáticos do texto perderam a prioridade, para os aspectos líricos e narrativos. O que acontece é uma espécie de audioteatro, a cuja récita assistimos sossegadamente. Cenário, adereços, figurinos são também secundarizados. Para que isso impressionasse, no entanto, era preciso que os actores interpretassem de tal maneira o texto que não se sentisse falta de espadas, capas, penas, papéis, lágrimas e sangue. Entende-se o que as personagens sentem e sabe-se o que sucede, mas de um modo austero, assente apenas na expressão verbal. Os actores arriscam pouco, já que não se atravessam nem expõem verdadeiramente a sua vulnerabilidade, quer física quer emocional. O caso é tanto mais grave quanto, na obra e, quer-se crer, na experiência que ela propõe, a força das personagens vai de mão dada com a sua presença de espírito. Assim, o jogo parece a feijões. Ao fazer uma versão tão lírica, prescindido do corpo, e, afinal, relativizando a importância do nariz, a encenação opta por mostrar a grandeza de espírito de Cyrano e falha a principal lição: corpo e mente são um só.