O Nobel da Literatura premiou a "música discreta" de Patrick Modiano
Para alguns o maior escritor francês vivo, Modiano foi o escolhido da Academia Sueca. A sua obra, em que são recorrentes os tópicos da memória e da ocupação alemã, está profundamente marcada por uma história pessoal feita de perdas e ausências.
Em entrevista para o site da Academia Sueca – a primeira desde que soube da distinção –, Modiano contou que estava na rua quando soube da novidade, mostrando-se surpreendido por ter sido o escolhido deste ano. “Nunca pensei que isto me pudesse acontecer, estou muito tocado, cheio de emoções”, reagiu o autor para quem escrever é algo natural que começou muito novo a fazer.
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Em entrevista para o site da Academia Sueca – a primeira desde que soube da distinção –, Modiano contou que estava na rua quando soube da novidade, mostrando-se surpreendido por ter sido o escolhido deste ano. “Nunca pensei que isto me pudesse acontecer, estou muito tocado, cheio de emoções”, reagiu o autor para quem escrever é algo natural que começou muito novo a fazer.
“É algo que faz parte da minha vida desde o início”, continou ainda. Quando questionado sobre o livro da sua obra que sugeriria àqueles que ainda não o conhecem, Modiano disse não ser capaz de escolher por ter “a sensação de estar sempre a escrever o mesmo livro”. “De forma descontinuada”, explicou. “É como se eu parasse para fazer um intervalo e então depois continuasse com a próxima etapa do mesmo livro.”
Ideia que defendeu entretanto na conferência de imprensa que deu na sua editora em Paris. “O que eu quero saber são as razões pelas quais me escolheram", disse Modiano, repetindo: "Tenho a impressão de que escrevo o mesmo livro há 45 anos". Para o francês, receber o Prémio Nobel da Literatura "é irreal" por todas as memórias de infância que guarda. Lembra-se, por exemplo, de quando Albert Camus foi premiado, "devia ter uns 12 anos". "Parece-me irreal ser agora confrontado com as pessoas que sempre admirei", acrescentou.
Esta é uma escolha inesperada, já que Modiano não integrava sequer o “top ten” dos autores que as casas de apostas davam como sendo os candidatos mais prováveis ao prémio deste ano. Até ontem, os favoritos eram o queniano Ngugi wa Thiong'o, o japonês Haruki Murakami e a bielorrussa Svetlana Aleksijevitj. Mas também é verdade que a Academia Sueca surpreende tantas vezes que uma escolha verdadeiramente inesperada teria sido atribuir o prémio a um Murakami ou a um Philip Roth.
Considerado por alguns críticos o mais importante escritor francês vivo, Patrick Modiano, nascido em Boulongne-Billancourt, nos arredores de Paris, em 1945, publicou o seu primeiro romance, La Place de l'Étoile, em 1968. Sem estudos universitários, dirá mais tarde que se tornou escritor porque não podia fazer mais nada.
Dez anos após este livro de estreia, que foi bem acolhido pela crítica e lhe valeu alguns prémios menores, recebeu o prestigiado prémio Goncourt por Rue des Boutiques Obscures (1978), que foi também o seu primeiro livro editado em Portugal, pela Relógio D’Água, com o título Na Rua das Lojas Escuras.
Modiano já recebera em 1972 o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa com Les Boulevards de Ceinture, e ao longo dos últimos anos tem sido galardoado, pelo conjunto da sua obra, com os mais importantes prémios literários franceses e europeus. “É um autor reconhecido internacionalmente, mas nunca foi um autor popular, que vendesse muito em lado nenhum”, diz Manuel Alberto Valente, que publicou vários títulos de Modiano em sucessivas editoras, da D. Quixote e da ASA à Porto Editora, onde saiu em 2011 o romance Horizonte (L’Horizon, 2010).
Valente não tem dúvidas de que Modiano “é uma das grandes vozes da literatura francesa”, e se os seus livros não são best sellers, diz, é talvez “por causa da sua escrita, a que a crítica francesa chama ‘la petite musique de Modiano’, e pela sua obsessão com o tema da memória”.
Para Manuel Alberto Valente, um caso em que essa “arte da memória” a que se referiu o secretário da Academia Sueca conflui exemplarmente com o interesse de Modiano pelo período da ocupação nazi de Paris é Dora Bruder (1997), que a Asa publicou com o mesmo título. Mas o tema está já presente nos seus primeiros romances, informalmente conhecidos como a “trilogia da ocupação”.
Ausência e perda
Nascido em 1945, o escritor não viveu a Segunda Guerra, mas esta sua fixação temática tem óbvias raízes nas suas próprias origens. Os seus pais conheceram-se na França ocupada. A mãe, a actriz belga Louisa Colpeyn – futura intérprete de filmes de Becker, Autant-Lara ou Godard –, era tradutora quando conheceu Alberto Modiano, um italiano de origem judaica que viveu a ocupação com uma falsa identidade (Henri Lagroux) e que parece ter sido protegido por personalidades influentes na elite francesa pró-nazi.
Ainda hoje se sabe pouco sobre as exactas circunstâncias que permitiram a este judeu italiano não apenas sobreviver, mas amealhar uma considerável fortuna na França ocupada por Hitler. Patrick, que costumava encontrar-se com o pai em locais pouco íntimos, como estações de comboios ou átrios de hotéis, tinha 17 anos quando decidiu não o voltar a ver.
Também a mãe esteve muito pouco presente na sua infância e adolescência, o que o aproximou ainda mais do seu irmão Rudy, dois anos mais novo, com quem viveu em Paris na casa dos avós maternos. A morte do irmão, com apenas seis anos, destruiu definitivamente a infância de Patrick Modiano e fará com que os temas da perda, da ausência, do vazio, da identidade fragmentada, venham a ser dominantes na sua obra literária.
O crítico Yannick Pelletier sublinha ainda que o escritor pratica uma “arte da indefinição e da dualidade”. Os seus protagonistas são muitas vezes seres paradoxais, como o colaboracionista Lacombe Lucien do notável filme com o mesmo nome, cujo argumento Modiano escreveu para o cineasta Louis Malle. O anti-herói do filme é um rapaz que se torna colaborador dos nazis após uma tentativa frustrada de aderir à Resistência.
Na sua conturbada adolescência, Patrick Modiano encontra um apoio fundamental num amigo da mãe, o célebre escritor Raymond Queneau, que lhe dá aulas particulares, o introduz nos meios literários e o apresenta aos responsáveis da editora Gallimard.
Descontados alguns empregos efémeros – cobriu a revolta estudantil do Maio de 68 como jornalista da Vogue –, Modiano dedica-se há muito em exclusivo à sua obra literária. Casou-se em 1972 com Dominique Zehrfuss, filha do arquitecto Bernard Zehrfuss, de quem tem duas filhas, a realizadora de cinema Zina Modiano e a cantora e escritora Marie Modiano.
O escritor vive em Paris e tem fama de raramente aparecer em sessões públicas ou de dar entrevistas. “É muito discreto e leva uma vida bastante recatada”, confirma Manuel Alberto Valente, que o convidou várias vezes para vir a Portugal, sempre sem sucesso. A Porto Editora está agora em negociações com a Gallimard, adianta o editor, para publicar os dois últimos livros de Modiano – L’Herbe des Nuits (2012) e Pour Que Tu Ne Te Perdes Pas Dans Le Quartier (2014) – e para “eventualmente recuperar” alguns dos seus livros mais antigos que nunca chegaram a ser publicados em Portugal.
Além dos cerca de trinta romances que publicou, Modiano escreveu vários argumentos para cinema, quer originais, quer adaptações de obras suas, tendo trabalhado com cineastas como Patrice Leconte, Pascal Aubier, Jean-Paul Rappeneau ou o chileno Raoul Ruiz.
Cronista de Paris
Anne Ghisoli, directora da Gallimard, reconheceu que a escolha da Academia Sueca “foi uma surpresa” e espera agora que “o prémio favoreça a reputação global de um dos mais consumados escritores” publicados pela editora. “É um mestre da escrita sobre a memória e a ocupação, que assombra e alimenta a sua obra”. Mas Ghisoli chama também a atenção para uma dimensão do autor que é menos vezes referida: a de um “cronista de Paris, das suas ruas, do seu passado e do seu presente”.
Este prémio vem também demonstrar, diz a livreira, que “apesar do ambiente depressivo que se vive hoje”, “a ficção francesa contemporânea está bem e de saúde”. São “boas notícias”, diz, “num país muitas vezes obcecado com as suas glórias passadas”.
Patrick Modiano recebeu oito milhões de coroas suecas (cerca de 877 mil euros) e tornou-se o 11.º autor nascido em França a receber o Nobel da Literatura. A opção pelo critério do local de nascimento foi assumida pelo próprio secretário permanente da Academia Sueca, Peter Englund, e terá sido um modo de evitar decidir se autores que se tornaram cidadãos da França, como o russo Ivan Bunin (premiado em 1933) ou o chinês Gao Xingjian (Nobel da Literatura de 2008), são efectivamente escritores franceses. Mas ao excluir-se todos os que não nasceram no actual território da França, está-se a dispensar, por exemplo, Albert Camus (premiado em 1957), nascido na então Argélia francesa.
Desde 1901, foram já premiados com o Nobel da Literatura 111 escritores, entre os quais estão apenas 13 mulheres. A última distinção foi exactamente entregue a uma mulher: a contista canadiana Alice Munro, premiada no ano passado. Munro foi considerada a "mestre do conto contemporâneo". José Saramago foi até agora o único autor português a ser distinguido com o Nobel da Literatura. O prémio tem um valor pecuniário de oito milhões de coroas suecas (cerca de 877 mil euros). Em 2012, a Academia reduziu o prémio de dez milhões de coroas suecas (cerca de um milhão de euros) para o valor actual.
Este é o quarto prémio atribuído pela Academia Sueca este ano depois do Nobel da Medicina (John O'Keefe, May-Britt Moser, Edvard Moser), da Física (Isamu Akasaki, Hiroshi Amano, Shuji Nakamura) e da Química (Eric Betzig, Stefan Hell, William Moerner). Nesta sexta-feira será atribuído o Prémio Nobel da Paz pelo Comité Nobel Norueguês.
O escritor fez saber que em Dezembro viajará a Estocolmo para receber o Nobel, juntamente com a sua família, a quem dedicou o prémio.