Um épico identitário magistralmente narrado
Saga familiar que percorre quase dois séculos da história americana. Um épico identitário magistralmente narrado
O anterior romance do norte-americano Philipp Meyer (n. 1974), Ferrugem Americana (Bertrand, 2011), tem lugar num cenário pós-industrial, feito de velhas minas de carvão derruídas, de campos de escórias e de pilhas de aço enferrujado. É neste ambiente de decrepitude sombria, sempre tenso, numa comunidade corroída pela pobreza e por um desespero interiorizado, que Meyer coloca as personagens desse poderoso romance que, entre outras coisas, disseca os efeitos, nos dias de hoje, da dissolução do sonho americano de “prosperidade eterna”. Em O Filho, o segundo e esperado romance, Meyer arrisca tudo numa ambiciosa saga familiar – um pouco à maneira de John dos Passos – que percorre cerca de dois séculos da História Americana e atravessa sete gerações dos McCullough, desde os tempos dos cowboys de antes da Guerra Civil até ao pós 11 de Setembro.
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O anterior romance do norte-americano Philipp Meyer (n. 1974), Ferrugem Americana (Bertrand, 2011), tem lugar num cenário pós-industrial, feito de velhas minas de carvão derruídas, de campos de escórias e de pilhas de aço enferrujado. É neste ambiente de decrepitude sombria, sempre tenso, numa comunidade corroída pela pobreza e por um desespero interiorizado, que Meyer coloca as personagens desse poderoso romance que, entre outras coisas, disseca os efeitos, nos dias de hoje, da dissolução do sonho americano de “prosperidade eterna”. Em O Filho, o segundo e esperado romance, Meyer arrisca tudo numa ambiciosa saga familiar – um pouco à maneira de John dos Passos – que percorre cerca de dois séculos da História Americana e atravessa sete gerações dos McCullough, desde os tempos dos cowboys de antes da Guerra Civil até ao pós 11 de Setembro.
No começo, Eli McCullough, um homem de cem anos, nascido no dia da Declaração da Independência americana, descreve o Texas que ele ainda conheceu: “As árvores nunca tinham sentido um machado; a terra era fértil e lustrosa, como todos os animais que lá viviam. Erva pela altura do peito, solo fundo e negro nas terras baixas, e mesmo as encostas mais íngremes estavam cheias de flores silvestres: columbina, tremocilha-azul, anémona, roda-de-fogo e estrela-da-tarde. Não era o lugar rochoso e árido que é hoje.” Eli McCullough foi raptado ainda criança pelos índios Comanche, depois de lhe terem assassinado toda a família. “Aos dez anos eu já tinha cavado quatro sepulturas”, e continua: “Aos doze anos eu já tinha matado a maior pantera alguma vez vista no condado.” Eli cresceu entre os Comanches, comeu vísceras cruas e ainda quentes de bisonte, aprendeu a ser um índio. Mas anos depois voltou para a sociedade dos brancos para erguer um império de gado e de petróleo à custa do roubo de terras. Os McCullough perpetuam-se ao longo de gerações presos a um sistema de violência e de ganância. Se quiséssemos isolar um tema para este extraordinário romance, seria o das implicações morais em redor da ausência de escrúpulos, da cobardia moral, de uma cruel auto-preservação, quando o que interessa é apenas prosperar economicamente.
Partindo da história de uma família, que no caso servirá de metáfora a um país, Philipp Meyer disseca os mecanismos da ascensão e queda de um império económico. Daí a epígrafe de Edward Gibbon, de Declínio e Queda do Império Romano, que (muito bem) escolheu para abrir o romance: “... as vicissitudes do destino, que não poupam o homem nem a mais gloriosa das suas obras… sepultam impérios e cidades num túmulo comum.”
Quando os McCullough se instalaram no Texas, o último dos estados a ser anexado, que era então território de caça dos comanches, no tempo em que o “o único problema era manter o escalpe preso à cabeça”, a história era escrita a sangue nas grandes planícies (mais tarde também com petróleo), para além do roubo de terras e de gado nada mais interessava. É aí que também começa a história do filho de Eli, Peter McCullough, o que “tinha desaparecido e ninguém tinha nada de bom a dizer sobre ele”. Peter fora testemunha, ainda muito jovem, do abate impiedoso de uma família mexicana, e esse acontecimento haverá de lhe trazer um enorme sentimento de culpa de que nunca se livrará ao longo da vida, ele é a grande decepção da família, aquele a quem o pai, Eli, se referirá como a “semente da minha destruição”.
A história tem três narradores, para além de Eli e de Peter, há ainda Jeanne Anne, a neta de Eli. Dezenas de anos depois é a ela que cabe preservar a enorme riqueza acumulada, para isso tem que lutar para adquirir o respeito dos competidores masculinos nos negócios da família. Jeanne Anne funciona um pouco como o contraponto de violência dos antepassados, apesar de continuar a perpetuar um sistema que assenta apenas na ganância pelo lucro.
Ao escrever uma espécie de crónica da destruição do Oeste, Philipp Meyer oferece ao leitor um singular épico identitário de um país que nasce e se ergue na ausência de escrúpulos e de princípios morais, escondendo-se por trás de uma narrativa de mitos heróicos dos primeiros colonizadores. Com um extraordinário poder narrativo, e articulando magistralmente os três diferentes narradores (em várias épocas temporais e usando diferentes registos), Meyer consegue esboçar uma nova cartografia emocional da América num tempo em que deixou de fazer sentido falar-se em “sonho americano”, a ideia em que assentou todo um império durante quase dois séculos.