CAM, o hangar multidisplinar
Um lugar para a experimentação artística, documentação e estudo: o livro agora editado celebra o percurso do Centro de Arte Moderna
O crítico Ernesto de Sousa afirmou em 1977 no seu manifesto Alternativa Zero que, estranhamente, não existia ainda em Portugal um centro cultural. Um lugar para a experimentação artística, documentação e estudo. O livro agora editado celebra o percurso do primeiro centro, o CAM, e das actividades que acolheu. A escassez de manifestações culturais da década de 1980, ainda com a década da revolução bem presente, conheceu com o CAM um sinal contrário. Uma abertura ao mundo através da cultura erudita, por vezes com manifestações de grande radicalidade que na arquitectura do CAM não se verificam. O curador do livro, o aquitecto Nuno Grande, estruturou um périplo através dos seus principais protagonistas na programação e na curadoria. O “hangar museu”, como o apelida, já tem o seu lugar na segunda metade do século XX português. O Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian fez 30 anos.
A estrutura do livro revela a contribuição do CAM para a cidade de Lisboa, que, de aí em diante, teve acesso institucional a eventos multidisciplinares no âmbito das práticas artísticas. Chegou assim a abordagem à performance e ao happening bem como à música mais extremada no âmbito do jazz. Para além do edifício do arquitecto britânico Leslie Martin, abordam-se nesta obra o ACARTE, a colecção e a programação que incluía a artes performativas e o jazz. Os textos de António Pinto Ribeiro (que trabalhou com Madelena Azeredo Perdigão, fundadora do ACARTE em 1984), Jorge Molder e Isabel Carlos revelam os limites a as potencialidades da arquitectura e a sua relação com a colecção e as exposições. A historiadora Raquel Henriques da Silva analisa as políticas de aquisição no contexto da arte portuguesa e André Silveira aborda o momento de integração na Comunidade Europeia através da Primeira Exposição Diálogo sobre Arte Contemporânea na Europa. De todas as contribuições emerge uma ideia transversal, a possibilidade do erro e afirmação e apologia do que é experimental. As fotografias dos vários eventos procuram ilustrar um momento que, hoje, em 2014 pode ser plenamente compreendido e com este estabelecer pontos de contacto. Mas hoje não há ainda um sinal político para emergir da nova escassez dominante.
A decisão foi tomada pela Fundação Gulbenkian em 1979. Nesse mesmo ano o arquitecto Leslie Martin começaria o seu projecto para o CAM a partir dos estudos preliminares do arquitecto José Sommer Ribeiro que escolheu a localização do novo centro, na extremidade sul do parque, e acompanhou o projecto. Depois do processo de concurso de arquitectura que levou à construção (1959-1969) da sede da Fundação Gulbenkian, com projecto de Ruy Athouguia, Pedro Cid e Alberto Pessoa, a cidade ficou com uma das suas melhores peças de arquitectura moderna. O CAM não teve essa unanimidade crítica. As razões prendem-se mais com o desenho e menos com a abordagem ao programa. O confronto entre a sofisticação do desenho nos edifícios da fundação e uma eventual menor sofisticação no desenho de Leslie Martin, onde o predomínio da estrutura sobre o espaço e a opção por materiais mais correntes não resulta numa estratégia espacial clara, relegou o edifício para segundo plano. Mas o CAM possui qualidades e está enquadrado numa forma de ler o mundo e a cultura urbana que a crítica dos anos sessenta apelidou de mega-estrutural.
O texto de Nuno Grande procura enquadrar e valorizar conceptualmente o projecto do CAM através das actas, dos desenhos e das fotografias de arquivo. O autor inclui o CAM num dos filões críticos das décadas de 1960 e 1970 e evidencia a contribuição do projecto de Leslie Martin para esse debate. O tema da flexibilidade, da informalidade e da transformabilidade monotorizou alguns espaços museuológicos ocidentais, como o Centro Georges Pompidou em Paris ou o centro de criação artística P.S.1 em Nova Iorque, ambos manifestos radicais sobre arte e arquitectura e sobre a limitação do museu de matriz oitocentista ou moderna. Leslie Martin terá sido influenciado por esse ambiente e também pelas obras do então jovem arquitecto Norman Foster e o CAM terá sido uma incursão híbrida nesse campo experimental.
Para trás tinham ficado no percurso de Leslie Martin obras de referência influenciadas por Alvar Aalto como o edifício de tijolo com uma praça central, o Gonville & Caius College, em Cambridge ou o Royal Festival Hall no South Bank em Londres projectado no âmbito do London County Council. Em Lisboa utilizou uma estratégia de bloco único, que se percebe apenas do parque. Para a rua existe um único ponto de contacto com a entrada. Concebido a partir de uma grelha modular, escalonado em terraços, uma opção característica da arquitectura britânica do pós-guerra, o CAM possui um espaço expositivo principal, cheio de luz natural, com dois pisos desencontrados em conexão visual com este. Esta opção pressupõe uma permanente reinvenção da museografia ou de uma estratégia egg in box. A estrutura predomina. O desafio do CAM será sempre como transfigurar o hangar.
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O crítico Ernesto de Sousa afirmou em 1977 no seu manifesto Alternativa Zero que, estranhamente, não existia ainda em Portugal um centro cultural. Um lugar para a experimentação artística, documentação e estudo. O livro agora editado celebra o percurso do primeiro centro, o CAM, e das actividades que acolheu. A escassez de manifestações culturais da década de 1980, ainda com a década da revolução bem presente, conheceu com o CAM um sinal contrário. Uma abertura ao mundo através da cultura erudita, por vezes com manifestações de grande radicalidade que na arquitectura do CAM não se verificam. O curador do livro, o aquitecto Nuno Grande, estruturou um périplo através dos seus principais protagonistas na programação e na curadoria. O “hangar museu”, como o apelida, já tem o seu lugar na segunda metade do século XX português. O Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian fez 30 anos.
A estrutura do livro revela a contribuição do CAM para a cidade de Lisboa, que, de aí em diante, teve acesso institucional a eventos multidisciplinares no âmbito das práticas artísticas. Chegou assim a abordagem à performance e ao happening bem como à música mais extremada no âmbito do jazz. Para além do edifício do arquitecto britânico Leslie Martin, abordam-se nesta obra o ACARTE, a colecção e a programação que incluía a artes performativas e o jazz. Os textos de António Pinto Ribeiro (que trabalhou com Madelena Azeredo Perdigão, fundadora do ACARTE em 1984), Jorge Molder e Isabel Carlos revelam os limites a as potencialidades da arquitectura e a sua relação com a colecção e as exposições. A historiadora Raquel Henriques da Silva analisa as políticas de aquisição no contexto da arte portuguesa e André Silveira aborda o momento de integração na Comunidade Europeia através da Primeira Exposição Diálogo sobre Arte Contemporânea na Europa. De todas as contribuições emerge uma ideia transversal, a possibilidade do erro e afirmação e apologia do que é experimental. As fotografias dos vários eventos procuram ilustrar um momento que, hoje, em 2014 pode ser plenamente compreendido e com este estabelecer pontos de contacto. Mas hoje não há ainda um sinal político para emergir da nova escassez dominante.
A decisão foi tomada pela Fundação Gulbenkian em 1979. Nesse mesmo ano o arquitecto Leslie Martin começaria o seu projecto para o CAM a partir dos estudos preliminares do arquitecto José Sommer Ribeiro que escolheu a localização do novo centro, na extremidade sul do parque, e acompanhou o projecto. Depois do processo de concurso de arquitectura que levou à construção (1959-1969) da sede da Fundação Gulbenkian, com projecto de Ruy Athouguia, Pedro Cid e Alberto Pessoa, a cidade ficou com uma das suas melhores peças de arquitectura moderna. O CAM não teve essa unanimidade crítica. As razões prendem-se mais com o desenho e menos com a abordagem ao programa. O confronto entre a sofisticação do desenho nos edifícios da fundação e uma eventual menor sofisticação no desenho de Leslie Martin, onde o predomínio da estrutura sobre o espaço e a opção por materiais mais correntes não resulta numa estratégia espacial clara, relegou o edifício para segundo plano. Mas o CAM possui qualidades e está enquadrado numa forma de ler o mundo e a cultura urbana que a crítica dos anos sessenta apelidou de mega-estrutural.
O texto de Nuno Grande procura enquadrar e valorizar conceptualmente o projecto do CAM através das actas, dos desenhos e das fotografias de arquivo. O autor inclui o CAM num dos filões críticos das décadas de 1960 e 1970 e evidencia a contribuição do projecto de Leslie Martin para esse debate. O tema da flexibilidade, da informalidade e da transformabilidade monotorizou alguns espaços museuológicos ocidentais, como o Centro Georges Pompidou em Paris ou o centro de criação artística P.S.1 em Nova Iorque, ambos manifestos radicais sobre arte e arquitectura e sobre a limitação do museu de matriz oitocentista ou moderna. Leslie Martin terá sido influenciado por esse ambiente e também pelas obras do então jovem arquitecto Norman Foster e o CAM terá sido uma incursão híbrida nesse campo experimental.
Para trás tinham ficado no percurso de Leslie Martin obras de referência influenciadas por Alvar Aalto como o edifício de tijolo com uma praça central, o Gonville & Caius College, em Cambridge ou o Royal Festival Hall no South Bank em Londres projectado no âmbito do London County Council. Em Lisboa utilizou uma estratégia de bloco único, que se percebe apenas do parque. Para a rua existe um único ponto de contacto com a entrada. Concebido a partir de uma grelha modular, escalonado em terraços, uma opção característica da arquitectura britânica do pós-guerra, o CAM possui um espaço expositivo principal, cheio de luz natural, com dois pisos desencontrados em conexão visual com este. Esta opção pressupõe uma permanente reinvenção da museografia ou de uma estratégia egg in box. A estrutura predomina. O desafio do CAM será sempre como transfigurar o hangar.