A rainha de uma country que não existe
Chamem-lhe country, chamem-lhe folk, ela não quer saber. Está só, como sempre, a cantar-se a si própria: Marissa Nadler, July, disco temático sobre o amor falhado e outros demónios.
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A estes, a menina dedica as seguintes palavras: “As pessoas que me acham depressiva não atentam nas letras – há muita esperança nelas. E na realidade, não quero saber. Se a minha música não é para eles, não têm de a ouvir. Há imensos cantores pop neste mundo com uma visão do mundo às bolinhas, e podem muito bem entregar-se a eles”.
Considerem-se as águas desde já separadas: quem tiver medo do escuro que fique em casa no sábado – dia em que Marissa actua no Amplifest, no Porto – e domingo – em que surge na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. July, o seu mais recente e mais conseguido álbum, será o cerne de um concerto em que Nadler surgirá acompanhada de guitarras acústicas, tendo a seu lado Janel Leppin no violoncelo, teclas e segundas vozes.
A obra de Nadler já vai numa década e até agora viu-a passear por territórios de uma folk pastoral ingénua, versões de Cohen, guitarras eléctricas, flirts com a country. A sua voz costumava ser mais aguda e florida – agora adopta um tom mais cerimonioso e grave, cada sílaba a receber a atenção que merece, de modo a que lhe sintamos o peso.
“Estou mais velha”, diz, no seu registo sempre ponderado e honesto, “e é natural que a minha voz mude ao longo dos anos. Também comecei a usar um registo mais grave e uso menos vibrato. Em geral sou melhor cantora hoje”.
Não se pode diminuir o peso que a voz tem num disco como July, em que as palavras e a guitarra acústica em esparsos dedilhados – bem como, ocasionalmente o piano – ocupam o centro. O que vem dos dedos, o que vem da garganta, tudo é lento e reptilíneo, criando uma atmosfera fantasmagórica, uma espécie de country do além. Ao redor, a slide-guitar, as teclas, as cordas, compensam a gravitas da voz com uma sensação de falta de imponderabilidade. Mas não digam que July é etéreo, que ela não gosta.
“Não estou certa que ‘etéreo’ fosse uma palavra que usaria para descrever o disco, visto soar leve e flutuante e em certos sentidos o disco é muito pesado”, diz Nadler, talvez não notando a contradição que há entre afirmar que o disco é pesado e defender que as letras têm muita esperança. Ou talvez não haja, talvez seja mesmo assim.
Certo é que July cria, pela sua unidade sónica, um universo que, nunca chegando a ser sufocante, é carregado de mistério, uma qualidade que Nadler atribui a Randall Dunn, o produtor, que sabe “trabalhar atmosferas muito bem”.
Se os anteriores álbuns de Nadler soavam a uma sucessão de tiros em todas as direcções vagamente folk, July é uma só estocada, com todos os elementos em consonância: escrita e arranjos caminham de mãos dadas criando um todo homogéneo. “Temos uma visão unificada de atmosfera e luxo”, diz, referindo-se de novo a Dunn. A sua “preocupação principal é a escrita”, mas ela não consegue escolher: “Queria um bom álbum e queria esta atmosfera”.
O luxo é particularmente notório nos arranjos de cordas de uma canção como 1923, cortesia de “Eyvind Kang, que escreveu um arranjo maravilhoso”. O tema soa um pouco a uma versão feminina do Cohen de Songs of Love and Hate e se Nadler confirma que adora o bardo também sustenta que “não quis fazer de modo algum uma versão feminina dele”.
A haver um assunto em July é o amor – e não é obrigatoriamente um amor feliz. O canto de Nadler dirige-se quase sempre a um “tu” ausente e a sensação com que ficamos é que a partida do “tu” não foi recebida com desafogo. Tamanha é a coerência temática (juntamente com a musical) que ficamos com a impressão de que July pode muito bem ser uma forma de disco-conceptual, e que em cada canção Nadler encarna uma personagem. Nada mais errado:
“Não há cá personagens. Isto sou eu a cantar-me e sempre assim foi”. Uma resposta destas traz implicações à interpretação do ouvinte: há em July imensas referências a álcool; já as havia, aliás, ao longo da obra de Nadler, bem como uma menção à codeína (uma droga simpática que era muito do agrado de Townes Van Zandt). Percebe-se porque é que Nadler refere que este álbum é pesado quando, a este respeito, afiança que se fica “por dizer que estou muito feliz por já não beber. O resto é pessoal”.
Postas assim as coisas não há como fugir ao óbvio: Nadler usou “este disco como ferramenta para processar alguns dos momentos mais difíceis na [sua] vida pessoal. O amor é uma coisa maravilhosa, e a minha visão do amor não é escura ou negativa, é apenas honesta. O amor não é um conto de fadas e há muita complexidade nas relações entre as pessoas”, diz ela.
Apesar de July ser um disco extraordinário, provavelmente o mais belo do ano, e aquele em que todo o talento que Nadler anunciava a espaços em cada disco se confirma sem oscilações e sustentado num corpus instrumental extraordinariamente unificado, ela não acredita que tenha atingido o cume das suas possibilidades.
“Concordo que é o meu álbum mais forte, mas penso que é um processo natural de aprendizagem e evolução”, diz, mas continua “a defender o [seu] trabalho anterior”. Simplesmente “são discos diferentes”, acrescenta. “Agora escrevo na primeira pessoa e vou buscar muitos géneros diferentes porque não estou interessada em ficar agarrada a um só género”.
Se decidirem sair de casa amanhã ou no domingo podem muito bem sair do concerto sem saber como catalogar Marissa Nadler. Mas o que quer que seja que tenhais visto será, sem dúvida, uma experiência única de uma espantosa, lenta, dolorosa, subtil e bela catarse pessoal. Podem chamar-lhe country; ou até fado, se quiserem. Ela não se importa porque tem a beleza do seu lado.