Contra uma “sociedade segregadora e assassina”, o “radical pode ser razoável”
Guilherme Boulos é o rosto da luta popular brasileira à esquerda de Lula e Dilma. Coordena o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que durante o Mundial protagonizou uma das acções de protesto de maior impacto internacional – a “Copa do Povo”.
Mas está a melhorar. A construção de um condomínio de 16 prédios de nove andares, que está a chegar ao fim, vai ajudar a tirar muitas famílias da situação de habitação precária em que se encontram. O projecto é do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que ocupou o terreno, conseguiu reivindicá-lo junto das autoridades e a seguir se encarregou da obra.
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Mas está a melhorar. A construção de um condomínio de 16 prédios de nove andares, que está a chegar ao fim, vai ajudar a tirar muitas famílias da situação de habitação precária em que se encontram. O projecto é do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que ocupou o terreno, conseguiu reivindicá-lo junto das autoridades e a seguir se encarregou da obra.
Quando o PÚBLICO chegou à sede do MTST, no mesmo bairro, os activistas – que são também os moradores – estavam a assistir, alguns comovidos, a um vídeo sobre esta vitória. Uma entre outras. Na noite anterior, tinham ocupado outro terreno no Morumbi, onde os receberam com tiros para o ar. Meses antes, durante o Mundial de futebol, protagonizaram uma ocupação que lhes deu ressonância internacional – a “Copa do Povo”, da qual saíram vencedores, terreno na mão (no vídeo, realizado pelo grupo de realizadores activistas Coletivo Revira-Lata, a noite da ocupação de Itaquera).
Falámos com Guilherme Boulos, da coordenação nacional do MTST, uma das organizações de contrapoder mais activas no país. Licenciado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, com 32 anos, é o rosto do movimento. Critica os governos do PT, tanto de Lula da Silva como de Dilma Rousseff, por não serem suficientemente de esquerda. Mas também sabe elogiar. No fundo, diz, o que quer é que se cumpra a lei.
O que é o MTST?
É um movimento de luta por moradia digna e reforma urbana, que surgiu em 1997. Na época muito ligado ao Movimento [dos Trabalhadores Rurais] Sem-Terra, que fez essa luta no campo. O MTST trouxe esse debate para a cidade. Hoje, 85% da população brasileira é urbana. O problema da terra da cidade se agravou muito. O MTST surgiu com a perspectiva de democratizar o acesso a terra e a moradia. E ao mesmo tempo lutar por uma nova lógica. A cidade brasileira, e a latino-americana, é extremamente segregada. Tem uma separação rigorosa entre centro e periferia, entre pobre e rico, muros sociais muito claros.
Quem são as pessoas que integram o movimento?
Na base, cerca de 50 mil famílias de trabalhadores sem-tecto. É o maior movimento urbano do Brasil. É organizada por ocupações de terras que estavam sendo usadas pela especulação imobiliária. A Constituição Federal brasileira exige que tenham função social. O direito à propriedade não é absoluto. Precisa servir à sociedade. Quando as terras não cumprem função social, estão numa situação ilegal. E o movimento busca fazer cumprir essa lei.
E a estrutura organizativa?
Tem vários tipos de coordenação colectiva – não tem presidente. E se esforça para construir um trabalho colectivo, tanto na base como na direcção, da coordenação dos apartamentos e das ocupações às coordenações regionais, estaduais e nacional. São colegiados. Boa parte dos dirigentes eram trabalhadores sem-tecto que entraram numa ocupação buscando casa.
Quantos prédios ocupam neste momento?
O MTST privilegia ocupação de terrenos urbanos. Outros movimentos mais locais ocupam bastantes prédios. O número geral de ocupações é o que ninguém tem. Nós temos um levantamento mínimo do número do MTST, e mesmo nacionalmente isso é precário. No estado de São Paulo, temos 18. Outras cinco no Distrito Federal [Brasília], algumas em Fortaleza, Rio de Janeiro e Pernambuco. A força maior é São Paulo, Distrito Federal e Ceará.
Preocupam-se com o perfil do proprietário quando ocupam terrenos?
O movimento busca combater a especulação imobiliária. Não vamos ocupar o terreninho do Seu João de 500 metros quadrados, um cara que herdou um espólio, de classe média-baixa e família trabalhadora – isso não faz o menor sentido dentro da lógica do movimento, que é combater peixe grande. O movimento ocupa essencialmente terreno de grandes empresas do sector imobiliário e da construção, que são os grandes proprietários de terra urbana no Brasil, e terras endividadas, que não pagam IPTU [imposto predial territorial urbano].
Como reagem os proprietários? Chamam a polícia?
No Brasil, temos um problema sério. A Polícia Militar é extremamente violenta e repressiva. Nos despejos, isso acontece de forma drástica. As famílias, além de perderem suas casas, são aviltadas, agredidas… O maior cúmplice é o poder judiciário. O judiciário consegue ser o mais conservador dos três poderes. O legislativo é conservador. Assim como o executivo. No entanto, de quatro em quatro anos tem controlo social. O judiciário, não. É o poder mais elitizado e preconceituoso do Brasil. Dá despejo automaticamente. Não busca saber se o proprietário exercia a função social da propriedade. Por vezes, nem se o cara é proprietário.
Sem querer estereotipar, que histórias de vida se encontram no movimento?
Tem-se uma ideia que o sem-tecto é um morador de rua. Não é verdade; é uma mitificação. O Brasil tem 5,8 milhões de famílias em défice habitacional. Mais de 20 milhões de pessoas não têm onde morar. Não estão nas ruas. Estão pagando aluguéis que não conseguem mais pagar. A família ganha 900 reais e paga 600 de aluguel. Essa é uma situação muito frequente. Muitas vezes têm de optar entre pagar o aluguel ou comprar comida. Várias famílias moram numa única casa – de favor em casa de parente, em cómodo de fundo. E famílias que moram em favelas e áreas de risco. Essa é a condição geral das famílias que actuam no MTST.
E você, como chegou ao movimento?
Pela via da militância. A proposta do movimento não é só de moradia. O MTST luta por uma transformação social. Entende a moradia como um facto importante, a luta pela reforma urbana e a mudança das relações de poder. Esse projecto não é só dos sem-tecto. Há pessoas que são militantes, que vêem no MTST uma alternativa importante, grande, mobilizadora. Os partidos de esquerda, aqui e em boa parte do mundo, estão muito desconectados do povo. Fazem debates muito distantes da realidade. Entrei no MTST por acreditar que uma transformação social vem da base, dos trabalhadores mais pobres e da sua acção popular.
A sua coluna na Folha de São Paulo dá expressão adicional ao movimento. Acha que ajuda também a normalizar o movimento e a retirá-lo da marginalidade?
Há uma tentativa permanente de desmoralização. É uma coisa impressionante. A elite brasileira é muito atrasada. Sequer conseguiu viver integralmente com a democracia. É muito autoritária, quer da democracia o que lhe interessa – o livre mercado, as liberdades individuais –, mas o direito de manifestação, de mobilização popular, de resistência, ainda é inaceitável. Tem espaços como a coluna na Folha que mostram que o movimento não surgiu do nada querendo destruir a todos. Ao contrário: tem posições coerentes, questiona as contradições dessa sociedade e é a expressão dessas contradições. Isso ajuda a trazer um sector da sociedade a uma certa solidariedade. Mas não temos ilusões de criar um consenso social.
Definiria as vossas exigências – e vontades – como razoáveis ou radicais?
O radical pode ser razoável. As reivindicações do MTST são mais do que razoáveis: pedimos que se cumpra a Constituição. Não pedimos socialismo, revolução. Pedimos que se cumpra a função social da propriedade, que se garanta o direito a moradia digna que é assegurado no artigo 5.º da Constituição Federal, que se garanta as condições básicas de igualdade que a legislação brasileira assegura. Nada mais do que o razoável. Realismo passa também por ter perspectivas, sonhos e posições radicais, sim, porque o que está aí é uma sociedade segregadora, assassina, que destrói a vida de milhões em nome da riqueza de milhares.
Falando em realismo, argumentava recentemente na Folha que se as famílias morassem de facto nas casas ou terrenos ocupados isso acarretaria o risco de gerar novas favelas.
Não queremos que as pessoas saiam de uma condição de moradia precária para ir para outra. Queremos uma moradia dentro de um planeamento urbano com serviços públicos, qualidade educacional, uma moradia digna. Isso é dever do Estado brasileiro. O movimento ocupa terras para pressionar o capital imobiliário e o Estado, e obter programas habitacionais regularizados, e não a favelização. O curioso é que a imprensa brasileira acredita que inventou a roda quando vai a um acampamento e diz: “Ninguém mora aqui, isto é uma farsa”. As pessoas não moram de facto nas ocupações porque a gente inclusive o impede. As pessoas devem ficar nas suas condições precárias, até terem uma moradia digna. Se elas forem para as ocupações com tudo o que têm, não tem como frear, como controlar esse processo de favelização.
O que pensa sobre o programa Minha Casa Minha Vida [MCMV]?
É uma faca de dois gumes. Por um lado, foi o maior programa habitacional da história do Brasil para moradia popular. O Brasil não tinha nenhum programa habitacional federal relevante. Tinha o BNH [Banco Nacional de Habitação], que a ditadura militar criou e acabou na década de 1980, e que era voltada essencialmente para a classe média. O MCMV apareceu com um diferencial positivo: não é baseado na lógica de financiamento, que não atende a quem mais precisa. 70% do défice habitacional brasileiro são famílias que ganham menos de três salários mínimos. Alguém que está nessa condição não tem como comprovar capacidade de pagamento e pegar um financiamento. A única possibilidade é com subsídio estatal. Desse ponto de vista, o MCMV trouxe um certo avanço. É preciso reconhecer. Por outro lado, não foi feito para resolver o défice habitacional brasileiro. Foi feito para resolver o prolema de liquidez do capital da construção civil, depois da crise do estouro da bolha de 2008 nos EUA.
Como?
As grandes empresas da construção no Brasil entraram em pânico. Todas elas tinham capital aberto na bolsa de valores. Foram bater na porta do Presidente Lula. E o Lula lançou um programa de 33 mil milhões de reais. De quebra, tratava a questão habitacional. Mas o MCMV não resolve o défice. A lógica é dar lucro para as empreiteiras. Por isso, produz moradias ruins, pequenas e mal localizadas. O que prevalece é a lógica de lucro das construtoras, não a de qualidade, localização, bem-estar, planeamento urbano. A prova de que não só não resolve o défice como acaba expandindo a especulação imobiliária é que, em 2008, o número de famílias que não tinham onde morar era de 5,3 milhões. O MCMV foi lançado em 2009 e já entregou 1,7 milhões de moradias. Mas, em 2012, o défice habitacional era de 5,8 milhões de famílias. Aumentou. A cada moradia que ele produzia geravam-se novos sem-tecto. Pelo problema do aluguel. A política habitacional do governo não tocou na especulação imobiliária.
É possível travar esse aumento?
Uma medida só não é capaz, naturalmente. O movimento tem defendido algumas medidas essenciais. Primeira: uma nova lei do inquilinato com regulação do mercado imobiliário, controlo do reajuste de aluguel urbano. Não dá para uma questão como aluguel, tão importante socialmente, ficar apenas nos critérios da lei de mercado. O proprietário decide especulativamente aumentar, a família não pode pagar, tem de ir embora para um lugar pior.
Pode aumentar discricionariamente?
Sim. Não tem limite legal de reajuste nem de novos contratos. É preciso uma lei que estabeleça como tecto do reajuste de aluguel o índice inflacionário. Isso ocorreu no Brasil noutras épocas. Ocorreu em outros países. Somos muitas vezes acusados de comunismo e isso está longe de ser comunista. É regulação com que o capitalismo conviveu ao longo de toda a sua história. Outra medida importante seria fazer cumprir o estatuto da cidade. O Estado tem de ter mecanismos para incidir no valor da terra. O estatuto da cidade permite que, se o proprietário está com a terra ociosa, vai pagar cinco anos de IPTU progressivo. Se não construir depois desses cinco anos, o Estado pode tomar a terra pagando com títulos da dívida pública.
Não acontece hoje?
Hoje, a desapropriação é quase um benefício para o proprietário porque é paga em valor de mercado. É preciso fortalecer o mecanismo que se chama desapropriação-sanção, que é com título da dívida pública. Outra medida que achamos importante para conter o valor do aluguel é a política de locação social, que existe em vários lugares da Europa. O Estado adquire prédios e terrenos na região central e faz um aluguel subsidiado. Ou seja, controla o valor de mercado por baixo. Quando faz aluguel subsidiado, incide sobre o mercado como um todo.
A “Copa do Povo” teve impacto internacional. Foi a grande vitória do movimento até agora?
Foi uma grande vitória, sem dúvida. Conseguimos comprar o terreno pelo MCMV para atender aquelas famílias. Mas conseguimos outras no mesmo processo. Foi criada uma comissão federal de prevenção de despejos forçados. Foram feitas mudanças para priorizar o Minha Casa Minha Vida Entidades. Hoje, menos de 2% de todas as unidades entregues pelo MCMV foram pelo Entidades, mas é uma semente interessante. Tira a figura da construtora e o movimento faz a gestão directa da obra. Isso é impressionante. Esta obra onde nós estamos, com o mesmo recurso que as construtoras estão fazendo 39 metros quadrados, no Entidades estamos fazendo 63 com três dormitórios. Com o mesmo dinheiro. Porque você tira a lógica da rentabilidade e transforma o que seria lucro em qualidade e aumenta os apartamentos.
Sentem que têm uma voz na definição de políticas públicas para a habitação?
Ainda é muito baixa. Quem tem voz de verdade é o sector imobiliário. É o que de facto molda a política brasileira. Por conta dessa lógica perversa da relação de financiamento de campanha eleitoral com compromisso de governo. É um sector muito poderoso. Recebeu muito dinheiro público. Não só pelo MCMV, mas também pelo Programa de Aceleração do Crescimento e pelo banco de fomento. Hoje, o sector imobiliário tem mais força de que em qualquer outro momento da história do país. Temos conseguido minimamente estabelecer um contrapeso.
Como está a ver esta campanha presidencial?
Um cenário muito difícil. O ruim contra o menos ruim. A Marina [Silva], para se viabilizar, segue o velho caminho de se mostrar confiável para o sector financeiro. As propostas dela são aberrantes. Ela pretende políticas sociais e ao mesmo tempo uma política económica neoliberal. Não dá para fazer círculo quadrado. A Presidente Dilma não representa uma alternativa popular. Não governou para a maioria. Muito embora tenha mantido uma política económica menos a gosto do mercado financeiro – mas também não foi uma política de combater o capital, de maior regulação, de ampliar direitos –, tem dificuldade de diálogo com o sector organizado da sociedade.
O cenário para nós é muito difícil, entre as principais candidaturas. Tem candidaturas de esquerda, como a da Luciana Genro do PSOL, que se identificam com o movimento. A Luciana Genro veio nos ouvir, colocou as propostas do MTST [no seu programa eleitoral]. Só que, pela forma como se organiza o sistema político brasileiro, onde o poder económico é o que prevalece nas eleições, sabemos que não tem muita alternativa. Não estamos vendo boas perspectivas e acreditamos que a mudança real, as reformas populares que o Brasil precisa vão ser obtidas partindo de uma reforma política. Com esse sistema eleitoral, com modelo de financiamento privado das campanhas, dificilmente vamos conseguir ter candidatos com condições de vitória e que ao mesmo tempo representem um projecto popular.
Que reformas podem ser feitas?
No sistema político em particular, o ponto básico é o financiamento público de campanha eleitoral – que neste momento é privado. Porque vai diminuir de forma considerável o principal gatilho da corrupção e da apropriação privada do Estado pelas grandes empresas. Mas não pára por aí. Tem de ter mecanismos de participação popular maior. Tem de ter mecanismos de controlo dos mandatos, tanto no executivo como no legislativo. Essa mesma reforma política tem de comportar uma reforma do judiciário, um grau de controlo social do judiciário, de controlo público. Garantir uma participação mais expressiva de mulheres e negros, que são permanentemente sub-representados na democracia brasileira…
Quotas?
Quotas, sim.
Quais são os problemas que afectam o Brasil que deveriam ser priorizados neste próximo mandato presidencial?
A pauta dos trabalhadores é a das reformas populares que são travadas no Brasil há décadas. Tem de ter um governo que busque de facto fazer mudanças em favor da maioria, da distribuição de renda e da igualdade social. Precisaria pautar reforma urbana, reforma agrária, reforma política, reforma tributária progressiva, imposto sobre grandes fortunas, democratização dos meios de comunicação, desmilitarização das polícias e uma mudança radical na política económica, que passe por uma auditoria da dívida pública e uma revisão de prioridades no orçamento brasileiro, acabar com o superavit primário, que é uma aberração neoliberal. Um programa que englobe essas medidas seria um programa de governo popular.